1 de agosto de 2020

A Revolução Portuguesa e a libertação das mulheres

Após a queda do regime fascista de Portugal em 1974, um movimento radical surgiu para desafiar a quase total falta de direitos concedidos às mulheres. A violenta repressão do primeiro protesto do movimento mostrou o quão difícil seria sua luta - mas seu ativismo ajudou a criar uma transformação duradoura.

Rafaela Cortez

Jacobin

O grupo feminista Movimento da Libertação daa Mulheres (MLM) de Portugal.

Quando Isabel Telinhos saiu do apartamento toda arrumada no dia 13 de janeiro de 1975 - salto alto, saia justa, cílios postiços e uma peruca loira cacheada como Marilyn Monroe - ela não tinha ideia do que aconteceria em seguida.

“Trouxe meu filho comigo e tudo, como todas essas outras mulheres. Era para ser um pequeno protesto, apenas alguns jornalistas, para que pudéssemos conversar sobre os problemas e conseguir alguma cobertura em revistas.” O protesto ocorreu após diversas ações do grupo feminista Movimento de Libertação das Mulheres de Portugal. “Sentimos que precisávamos de um alerta radical. Se não for radical, nada muda. Em qualquer situação política, as ações devem ser radicais”.

Já se passaram mais de quarenta e cinco anos desde aquela fatídica tarde de segunda-feira em 1975. O MLM organizou uma apresentação no Parque Eduardo VII, o maior parque central de Lisboa. Mas quando chegaram as cerca de quinze mulheres, foram recebidas por uma multidão de homens: “Uma multidão que rapidamente se transformou em horda”, lembra o conceituado jornalista português Adelino Gomes. “Não era apenas um grupo de pessoas assobiando para essas mulheres. Era uma horda”, frisa Adelino. “Em certo um ponto, quando elas começaram a andar, esses homens começaram a persegui-las, e a coisa toda saiu do controle.”

Adelino Gomes é conhecido em Portugal pela cobertura da Revolução dos Cravos, ou 25 de Abril, o golpe militar de 1974 em que o Movimento das Forças Armadas dissidentes (Movimento das Forças Armadas, ou MFA) derrubou o regime fascista de cinco décadas. Inicialmente instruída a ficar em casa, a população logo inundou as ruas em apoio ao MFA e distribuiu cravos vermelhos aos soldados. Adelino relatou os últimos suspiros da ditadura para uma emissora para a qual os censores oficiais o proibiram de trabalhar. Ao percorrer o caminho do Terreiro do Paço ao Largo do Carmo, repetia ao microfone exatamente o que ouvia da multidão: “Abaixo a guerra colonial! Abaixo o fascismo! ”

Encontrando-o na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, perguntei-lhe porque tinha estado lá para a ação de MLM. “Bem, tinha todos os fatores que o tornavam interessante. Era um protesto, em primeiro lugar; das mulheres, em segundo lugar; de um movimento de libertação das mulheres, terceiro; um movimento onde elas não apenas listariam suas demandas, mas literalmente incendiariam os símbolos da opressão das mulheres. ”

E havia muitos deles. Isabel Telinhos recorda, sobretudo, as brochuras pornográficas, os tachos e as panelas, mas também as coroas de cabelo de noiva, as vassouras, os panos de pó, os brinquedos sexistas, a Carta de Orientação ao Casado de Francisco Manuel de Melo (carta do século XVII onde o autor defende, entre outras coisas, que o melhor livro para uma mulher é o travesseiro e o aro de bordado), e ainda os Códigos Civil e Penal.

“Quero dizer, se você não cobrisse isso, ou você era um idiota e deveria deixar o jornalismo, ou estava completamente (o que era muito provável) distraído - e digo isso como uma crítica profunda - distraído com tudo o mais que estava acontecendo naquele momento. E depois havia um outro fator, que, para o bem ou para o mal, está sempre presente: estava logo ali na esquina”, ri Adelino.

Ele não está exagerando. A redação da Rádio Clube Português ficava a cinco minutos a pé do Parque Eduardo VII. Madalena Barbosa, feminista emblemática e fundadora do Movimento de Libertação das Mulheres, também tinha um apartamento ao virar da esquina, onde muitas mulheres se refugiaram naquele dia. De acordo com vários relatos, cerca de dois mil homens as perseguiram segurando cartazes que diziam "Fora com elas!" e "Isso é ridículo." “Eles estavam me cercando... gritando 'vamos despi-la!'... tentando tombar a van onde nossos filhos brincavam de cabeça para baixo”, Isabel me conta. “E você sabe que quando se trata de grandes multidões, você só precisa de uma pessoa para tentar algo antes que todo mundo comece a fazer.”

Se o comportamento terrível dos homens parece difícil de entender, a razão pela qual eles estavam lá não é tão misteriosa. Poucos dias antes, em 11 de janeiro, o semanário líder Expresso publicou um artigo sem assinatura que anunciava em tom de brincadeira que “segundo informações confiáveis”, o encontro apresentaria “o strip-tease de uma noiva, de uma dona de casa e de uma vampira, que usaria a flor de laranjeira, [uma flor tradicionalmente associada à pureza e à castidade] o avental e o biquíni como combustível para o fogo.” E, de fato, esses estereótipos estavam lá: a noiva, a dona de casa e a vamp, um arquétipo sexista que retrata as mulheres como objetos sexuais. Isabel Telinhos, com sua peruca loira e saia justa, foi a vampira daquele dia. “Elas são os que mais recebem vaias”, disse ela.

Mas a verdade começa e termina aí. Anos depois do protesto, ainda há rumores de que sutiãs foram queimados - ideia rejeitada por todos os presentes. A ativista feminista Maria Antónia Palla, uma das primeiras mulheres jornalistas de Portugal, lembra a fofoca: “É tudo mentira. Acho que nunca descobrimos quem começou a espalhar isso, mas é mentira... Fiquei lá até o fim, até irmos todas para o apartamento da Madalena Barbosa, e isso não existia”. Isabel concordou: “Ninguém ia queimar sutiãs”.

Nada foi queimado naquele dia - o incêndio nunca aconteceu. Mas, o que realmente aconteceu naquela tarde de 1975, nove meses após a revolução, foi que as mulheres que saíram às ruas para protestar por seus direitos foram forçadas a fugir. Elas foram insultadas, assediadas, agredidas e perseguidas.

Quarenta e cinco anos depois, Isabel admite que existem alguns detalhes que ela não consegue mais identificar. Mas ela se lembra vividamente de quando se virou para um homem que queria despi-la e conseguiu gritar de volta: "'Bem, vamos despi-lo primeiro!' Era isso. Eu nem pensei duas vezes. Eu só senti que precisava me defender.” Ela passou horas a fio no Parque Eduardo VII naquele dia, gritando de volta para a multidão, tentando encontrar uma saída. “É terrível como - em meio à alegria e liberdade trazida pelo 25 de Abril, onde todos se reuniam em sindicatos para lutar por seus direitos - tantos homens foram lá porque ouviram que as mulheres estavam se despindo. Isso foi brutal”, Isabel lamentou ao telefone. “O espetáculo que os homens deste país, sem discriminação de cultura, classe ou ideologia, deram ontem à tarde no Parque Eduardo VII, veio mais uma vez para confirmar que há uma razão para a existência de movimentos feministas”, escreveu a jornalista Lourdes Féria no Diário de Lisboa do dia seguinte. “Alguns fotógrafos dos jornais correram de um lado para o outro, quase babando de luxúria enquanto gritavam: ‘Onde elas estão? Eles já se despiram?'”

Muitas das pessoas que lá estiveram ainda têm dificuldade em explicar o que aconteceu. Afinal, eram apenas algumas dezenas de mulheres, muitas acompanhadas de seus filhos, fazendo algo muito semelhante ao que os movimentos feministas faziam no exterior. Manuela Tavares, co-fundadora e diretora da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), que escreveu a mais completa tese de doutorado sobre feminismo em Portugal, explica que as ativistas estavam, de certa forma, tentando imitar o que as feministas francesas fizeram no anos 1960 e 1970: “Houve um ato realmente simples em que colocaram uma coroa de flores na Tumba do Soldado Desconhecido, mas dedicada à sua esposa. Porque mais desconhecida do que o soldado desconhecido é a esposa do soldado desconhecido”, ela ri. A inscrição dizia: Il y a plus inconnu que le soldat inconnu: sa femme ("Há alguém ainda mais desconhecido do que o soldado desconhecido: sua esposa"). E, de certa forma, elas queriam receber o mesmo tipo de atenção.

Abuso das liberdades

O Movimento de Libertação das Mulheres foi fundado em 7 de maio de 1974, menos de um ano antes do protesto que nunca aconteceu. Mais cedo naquele dia, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa haviam sido absolvidas do caso que ficou conhecido como “As Três Marias”, onde foram acusadas de “abuso da liberdade de imprensa”e “ultraje à decência pública 'graças ao' conteúdo pornográfico” do seu livro recém-publicado, Novas Cartas Portuguesas.

Concluída em 1972, Novas Cartas Portuguesas não é uma obra literária de fácil digestão. É uma homenagem ao clássico do século XVII As Cartas Portuguesas, obra com cinco apaixonadas e angustiadas cartas de amor supostamente escritas por uma freira portuguesa, Mariana Alcoforado, ao oficial francês que a seduziu e abandonou para evitar escândalo. Não é apenas uma coleção de cartas ou poemas, embora certamente seja ambos, e não pode ser simplesmente descrito como um manifesto feminista, embora, de certa forma, seja.

O livro foi assinado coletivamente pelas Três Marias (até hoje ninguém sabe qual Maria escreveu o quê). Elas não estavam falando apenas pelas três, mas por todas as Marias, Marianas e Maria Anas; por todas as mulheres reprimidas em um país profundamente católico que não tinha nada a oferecer a elas além de um papel matrimonial e de apoio. Novas Cartas Portuguesas rompe com a autoridade patriarcal do regime fascista, criticando não só o lugar da mulher na sociedade, mas também a continuação do projeto colonial de Portugal.

“Compraz-se Mariana com o seu corpo, lia Manuela Tavares quando a visitei na UMAR (originalmente chamada de União de Mulheres Antifascistas e Revolucionárias), um lugar onde várias gerações de feministas se encontraram desde sua fundação em 1976. Caminhamos pelo “Jardim das Três Marias” para chegar a um sala aberta cheia de livros e fileiras e mais fileiras de arquivos e pôsteres sobre prostituição, violência sexual e violência doméstica. A chuva caía calmamente lá fora quando começamos a falar sobre o protesto, MLM e Novas Cartas Portuguesas.

“Acredito que o Novas Cartas Portuguesas foi um tapa na cara de uma sociedade conservadora produto de quarenta e oito anos de fascismo, de trevas”, diz Manuela. “Foi um poderoso apelo à ação.” Lendo para mim suas partes favoritas do livro, ela revela que ela começou a levantar bandeiras vermelhas antes mesmo de sua publicação, quando um funcionário da gráfica reclamou do conteúdo para seu gerente. Vários exemplares ainda chegaram à circulação em Lisboa, mas então os censores oficiais conseguiram o livro, que foi imediatamente banido. O Ministério Público estadual instaurou um processo judicial contra as autoras e Romeu de Melo, diretor da editora.

O processo se referia ao conteúdo pornográfico do livro como o principal motivo para apreender o livro, mas Duarte Vidal, o advogado de defesa de Maria Isabel Barreno, acreditava que o verdadeiro objetivo era censurar suas duras críticas ao governo fascista. Em sua defesa, argumentou: “Naturalmente preocupado que uma acusação de natureza política contra os três talentosas escritoras fosse mais um escândalo, que se soma a tantos outros que humilham a imagem do país... os censores portugueses, com um maquiavelismo típico das suas consciências pobres, encaminharam as três escritores à polícia encarregada da investigação de crimes comuns, como autoras de um livro pornográfico”.

Se a ideia era evitar outro escândalo, o tiro saiu pela culatra. Cópias do livro foram contrabandeadas para fora de Portugal e traduzidas em várias línguas, e durante os dois anos em que o processo se arrastou, o caso tornou-se uma célebre causa internacional, gerando protestos mundiais em apoio às escritores. Em 1973, a primeira Conferência Internacional Feminista de Planejamento em Cambridge votou unanimemente pelo apoio às Três Marias como a primeira ação feminista internacional.

A audiência da sentença foi adiada e depois adiada novamente. Finalmente, em 7 de maio de 1974, poucos dias após a revolução, as Três Marias foram absolvidas de todas as acusações. Naquela mesma noite, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno decidiram dar início a um movimento de libertação feminina - MLM. Esta foi “a primeira associação feminista em Portugal que colocou o problema do aborto, da sexualidade e da violência contra as mulheres na agenda política do país”, afirma Manuela. Mas, apesar de sua popularidade no exterior e da urgência das questões que elas estavam discutindo - e neste momento, milhares de mulheres estavam morrendo nos cem a duzentos mil abortos clandestinos inseguros realizados a cada ano - o movimento não foi necessariamente bem recebido.

Irene Flunser Pimentel, historiadora e investigadora da Universidade NOVA de Lisboa, afirma que “estas mulheres do MLM sofreram com o atraso extremo de Portugal nunca tendo tido um movimento estritamente feminista”. Feminismo, ela argumentou, "era para mulheres burguesas privilegiadas." Havia a ideia na esquerda de que "a luta de classes tinha uma solução e que as mulheres que faziam parte desse movimento feminista eram burguesas e não tinham a menor ideia sobre a vida e as lutas das mulheres proletárias".

"No início do século XX, em Portugal”, acrescenta, “o movimento das sufragistas femininas republicanas lutou principalmente pelo direito ao voto e à instrução”. No entanto, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 1970, 31 por cento das mulheres ainda eram analfabetas, o dobro dos homens. “Ninguém lia. Era muito difícil alcançar as pessoas porque, na época, você as alcançava por meio de panfletos”.

Mas essa não é a única razão por trás da falta de reconhecimento do MLM em Portugal. Se hoje a palavra “feminismo” ainda é um tanto controversa, naquela época era quase “suja”. Maria de Lourdes Pintasilgo - uma lutadora ao longo da vida pelos direitos das mulheres, criadora da Comissão sobre a Condição da Mulher e até agora a única mulher primeira-ministra de Portugal - não gostava do termo. Ela escreveu que “‘feminismo’é uma palavra arcaica, com má reputação e sem força dinâmica.”

Relembrando as lutas feministas em 1978, Madelena Barbosa explica porque ganhou má fama: “Quarenta e oito anos de salazarismo significaram a doutrinação das mulheres com o mito da maternidade abnegada, a esposa dedicada e virgem incorrupta, enquanto a censura nos impedia de conhecer a realidade das lutas das mulheres em todas as partes do mundo... Feminismo tornou-se assim um termo de conotações negativas e risíveis para as mulheres portuguesas que, na sua maioria, até hoje, ainda não sabem o real significado político das lutas das mulheres. ”

Irene concorda que a censura teve um papel destrutivo no que a portuguesa conquistou durante o liberalismo republicano do início do século XX: “Uma das coisas principais do Estado Novo, para além da polícia secreta, proibição de partidos políticos, e tudo mais, era censura. ... Houve um grande hiato - quarenta e oito anos é muito tempo. Não acho que as pessoas percebam como esse tipo de longevidade molda a memória e a mentalidade coletivas.

“Segunda classe”

O Código Civil aprovado em 1966 foi mais do que claro sobre o papel pretendido paras as mulheres. Uma seção sobre “Poder conjugal” proclamava: “O marido é o chefe da família, e cabe a ele, nessa qualidade, representá-la e decidir em todos os atos da vida conjugal”.

Como me diz a historiadora Irene Flunser Pimentel - perita no Estado Novo fascista e co-autora de um livro sobre as mulheres portuguesas no século XX -, o papel das mulheres sob o primeiro-ministro António de Oliveira Salazar limitava-se ao casamento, ao trabalho doméstico e à educação dos filhos : “O que estava no Código Civil, afinal.” Na época, o Código Civil de Portugal encarnava a ideia do homem como chefe de família, “e tudo partia daí. Porque se o homem era o chefe da família, quem lhe devia obediência? Sua esposa e filhos. Todas as regras vinham daí. ”

Em uuma entrevista de 2016 ao Diário de Notícias, Irene lamenta que, embora o estatuto de “portugueses de segunda categoria”, normalmente utilizado para referir -se aos portugueses nascidos nas colônias, tenha terminado em 1950, “as mulheres continuaram a ser de segunda categoria até 1976”, dois anos após a Revolução dos Cravos que proclamou a liberdade para todos.

Com a derrubada da ditadura, em meio a um processo revolucionário em curso, o Código Civil ainda afirmava que os homens podiam abrir a correspondência das mulheres, ou que a perda da virgindade (a virgindade feminina, claro) era motivo para a anulação do casamento. Os homens tinham autoridade quase completa sobre suas esposas, filhos e propriedades.

E se aos olhos da lei as mulheres ainda eram inferiores aos homens, na cabeça das pessoas não havia muita dúvida: “Foi uma triste demonstração de misoginia portuguesa que provou que, afinal, o 25 de Abril ainda não havia conseguido combater as mentalidades existentes”, suspira Adelino Gomes, referindo-se aos acontecimentos daquela tarde de janeiro. “Vou usar uma palavra aqui: eles 'provocaram' o 'homem ibérico'. E o 'homem ibérico' nem precisa ser provocado para mostrar suas verdadeiras cores.” Adelino refere-se a um infame processo judicial em 1989, quando duas turistas foram violadas no Algarve. O Supremo Tribunal de Justiça decidiu que, embora o caso fosse moralmente repreensível, as duas jovens “contribuíram muito para a sua concretização”, pois “não hesitaram em pedir carona aos transeuntes, mesmo no território dos chamados homens ibéricos.” “São expressões da tristeza cultural e civilizacional desta comunidade”, reclama Adelino.

Não seria a última vez, provocado ou não, que o “homem ibérico” se revelaria. Nem seria a última vez que a culpa cairia sobre as vítimas. Ainda em 2017, o desembargador Neto de Moura justificou a violência doméstica com base no caso extraconjugal da vítima. O julgamento, que atraiu uma tempestade de críticas, dizia:

"Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem.
Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte.
Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte.
Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse.
Com estas referências pretende-se, apenas, acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso se vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.
Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente que fez o arguido X cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida."

O homem ibérico ainda não está extinto. As revisões subsequentes dos códigos Civil e Penal não puderam desfazer a misoginia profundamente semeada que ainda pode ser encontrada, até hoje, em nossas instituições. Quase cinquenta anos depois, a luta que as Três Marias e as mulheres do MLM começaram ainda está longe de acabar.

Aborto não é crime

O Movimento de Libertação das Mulheres não durou muito depois do protesto que as trouxe ao Parque Eduardo VII: “Houve grandes contradições e acabaram por se separar”, diz Manuela. “No geral, achamos que o MLM fez o que podia”, escreveu Madalena Barbosa em 1978. Afinal, para um movimento tão efêmero, o MLM incomodou muita gente. E teve grandes implicações no tecido social, cultural e político português.

“Todas essas mulheres pertenciam aos mesmos círculos”, observa Irene, “que podem não ter estado no MLM per se, mas também eram feministas e tinham as mesmas demandas. Quando conheci a Madalena Barbosa, ela já fazia parte de um centro de documentação feminista, do qual eu também fazia. Lá, encontrei muitas daquelas mulheres lutando pela descriminalização do aborto”.

A descriminalização do aborto foi uma das demandas mais radicais do MLM. Em 1975, Maria Teresa Horta, Célia Metrass e Helena de Sá Medeiros publicaram o primeiro livro sobre o aborto em Portugal - “Aborto: Direito ao Nosso Corpo”. O livro defendia que “o aborto não é um problema moral, religioso ou médico, mas sociopolítico. ... A decisão de fazer o aborto só cabe à gestante que tem (ou deveria ter) o direito de controlar o próprio corpo”.

Embora nunca tenha feito parte do MLM, Maria Antónia Palla também lutou a maior parte da sua vida pela descriminalização. Nos anos 60, Maria Antónia Palla foi uma das primeiras mulheres inscritas no sindicato dos jornalistas. Ela também foi uma das primeiras mulheres admitidas na redação do Diário Popular, jornal do qual foi demitida em maio de 1968 por cobrir a revolta estudantil em Paris sem permissão.

“Eu estava envolvida principalmente na defesa da liberdade de imprensa, mas sempre me interessei pelas questões femininas”, ela me conta. Em 1974, ela e a colega Antónia de Sousa começaram a produzir uma série de documentários sobre a situação da mulher em Portugal, até fevereiro de 1976, ou seja, quando decidiram fazer um episódio sobre o aborto. Em “O Aborto Não É um Crime”, decidiram filmar uma mulher que optou por fazer o aborto em casa, com a ajuda de médicos de uma clínica em Cova da Piedade.

As imagens mostraram-se muito explícitas para os telespectadores, que responderam com uma tempestade de críticas à emissora pública RTP. A série foi rapidamente cancelada e os autores formalmente acusados de “ultraje à moral pública” e “incitamento ao crime”: “Ficou claro, nesses dois anos, que havia liberdade para tudo, mas não para as mulheres decidirem se queriam ter filhos, ou que as mulheres decidissem o que se passava com o seu corpo”, suspira Maria Antónia.

Milhares de mulheres sofreram desnecessariamente com interrupções clandestinas da gravidez. Muitas não tinham como pagar pela anestesia e, mesmo quando pagavam, ela era geralmente administrada por parteiras sem qualificação para fazê-lo. É irônico, Maria Antónia aponta, “que no meio de tudo isso, é minha reportagem que é indecente”.

A audiência aconteceu em 1979, três anos depois de o programa ir ao ar na RTP: “Pelo menos ajudou a avançar a causa e, nessa medida, senti que não era totalmente inútil. Mas é muito desagradável ficar esperando por um julgamento por três anos.” Quando finalmente foi chamada, ela admite a sorte que teve: “Tanto a juíza quanto a promotora eram feministas. Elas mecheram alguns pauzinhos e conseguiram pegar o caso, porque havia esse [outro] promotor que queria me condenar”. Ela ri porque, após o julgamento, ela e o promotor até se tornaram amigos.

Em 1976, Albino Aroso, médico e secretário de Estado do governo provisório de Francisco de Sá Carneiro, publicou a Lei do Planeamento Familiar, que permitia às mulheres o acesso a estas consultas. Esta medida rendeu-lhe a alcunha de “Pai do Planeamento Familiar”, “mas queríamos muito mais”, acrescenta Maria Antónia. “Queríamos uma lei que descriminalizasse o aborto.”

E ainda assim, o aborto não seria descriminalizado tão cedo. Demorou trinta e um anos depois que O Aborto Não é Um Crime foi ao ar, antes de realmente deixar de ser [um crime]. Depois de uma derrota estreita em um referendo de 1998, nrepetido em 2007, 59,3 por cento da população respondeu “sim” à descriminalização das rescisões voluntárias - embora apenas nas primeiras dez semanas de gravidez. A descriminalização foi aprovada no parlamento pouco depois, com votos a favor dos socialistas, dos comunistas, do bloco de esquerda e dos verdes.

Embora tenha sido uma vitória para o movimento feminista, há questões levantadas na primeira brochura do Movimento de Libertação das Mulheres em 1975 que ainda não foram respondidas até hoje. Além de exigir a revisão do Código Civil e o direito a salário igual para trabalho igual, as ativistas também exigiram, por exemplo, o reconhecimento do trabalho doméstico pelo Estado, ou creche gratuita para todas as mulheres. “Curiosamente, ainda hoje, a imagem que as pessoas têm do MLM é que éramos todas mulheres tolas, assim como as feministas do início do século XX eram chamadas de loucas e histéricas, quando isso era instrumental”, diz Maria Isabel Barreno em entrevista de 2006 para o Público. “Hoje, os princípios que defendemos são considerados normais e respeitáveis e defendidos por todas as organizações políticas.”

Para a historiadora Irene Flunser Pimentel, a descriminalização do aborto é um dos maiores legados do MLM. “Talvez seja uma ilusão da minha parte, infelizmente, porque foi um movimento muito isolado e, acima de tudo, derrotado. Mas não há dúvida de que essas mulheres na linha de frente iniciaram um esforço que teria muitas ramificações posteriormente, como na questão do aborto”. Mas não apenas o aborto. Irene também menciona a reforma do Código Civil de 1977, substituindo o “poder conjugal” pelo “dever de cooperação” para ambos os cônjuges. Isso se deve muito à Comissão da Condição da Mulher, agora denominada Comissão da Igualdade e dos Direitos da Mulher, da qual Madalena Barbosa também fez parte.

“No longo prazo, [a reforma do Código Civil] foi talvez a maior mudança, pelo menos aos olhos da lei. Claro, a principal questão é que há uma grande lacuna entre a lei e a ação - hoje seria muito interessante analisar como essas mudanças fluíram de cima para baixo.”

O que faremos com nossa liberdade?

Para Adelino Gomes, o legado do MLM representa “o farol para um caminho que ainda não foi trilhado. Ainda hoje, eu estava olhando as fotos das três [a noiva, a dona de casa e a vamp], tão jovens e tão corajosos, e isso me emociona. É a luta inacabada de mulheres como Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno - mulheres de sensibilidade poética e literária que lutaram com a literatura, que usaram as armas da sua condição”.

Isabel Telinhos, que se arrumou toda naquela tarde de segunda-feira, acredita que o legado do protesto de 1975 não ficou apenas papel. “Na época, conseguimos chamar a atenção de muitas pessoas e ajudar muitas mulheres a perceberem que a vida era mais do que apenas lavar roupa”, disse ela por telefone. Pouco antes de desligarmos, ela acrescentou: “Foi bom. Foi maravilhoso."

Todos com quem conversei concordam que há um longo caminho pela frente. Por exemplo, Irene diz que “hoje em dia, as mulheres trabalham tanto quanto os homens e só Deus sabe quantas horas mais quando chegam em casa, e há estudos sobre isso”. Ela reclama que as mulheres não têm tempo para estudar, para pensar, para o lazer, "para tudo!"

Um caminho menos percorrido é o combate à violência doméstica. Irene compara a falta de discussão sobre esta questão desfavoravelmente à França: “Aqui, a violência doméstica só é discutida e tratada em termos de leis, quando deveria ser algo sobre todos deveríamos falar”. É como se o velho ditado português, “não se põe a colher entre marido e mulher” - ou seja, apenas cuide da sua vida - ainda valesse. Mas, Irene brinca, "de acordo com a lei, você precisa colocar a colher!"

Conseguimos muitas liberdades em 25 de Abril mas, como me disse Maria Antónia Palla, “a liberdade é algo pelo qual devemos lutar todos os dias”. Naquele dia em 1974, ela “estava na rua às 7h. Foi muito emocionante.” Ela estava no Largo do Carmo, onde o Estado Novo se rendeu ao Movimento das Forças Armadas, e voltou direto para a redação de O Século Ilustrado onde trabalhava: “Só que eu não sabia o que escrever. Quer dizer, eu estava colocando uma folha de papel e jogando no chão, outra folha de papel, outra no chão.” Por fim, ela propôs uma frase que, até hoje, ainda está em sua mente: “Agora que a liberdade é nossa, o que vamos fazer com ela?”

Sobre a autora

Rafaela Cortez é uma jornalista radicada em Lisboa que escreve sobre direitos humanos e as vidas, lutas e peculiaridades das pessoas que conhece.

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