11 de agosto de 2020

As antinomias de Perry Anderson

Os ensaios de Perry Anderson sobre a história do marxismo mostram sua deslumbrante erudição e amplitude de visão histórica. Mas o trabalho do marxista britânico também foi profundamente moldado por sua mudança de perspectiva política, à medida que suas esperanças sessentistas na revolução socialista deram lugar a uma leitura mais sóbria das crises do capitalismo.

George Souvlis

Jacobin

Perry Anderson no Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre, 2013. (@fronteirasweb / Flickr)

Poucos historiadores podem rivalizar com a capacidade de Perry Anderson de escrever de forma inteligente sobre questões tão diversas como a Grécia antiga, a cultura e a teoria política e os desenvolvimentos contemporâneos do Brasil à Itália. Mas se a erudição do historiador britânico o fez se destacar no mundo das letras, também o fez seu compromisso de toda a vida com a política socialista. Na verdade, a maioria das análises de Anderson concentra-se neste último ponto, menos na interpretação dos argumentos históricos e fundamentos epistemológicos que fundamentam suas pesquisas.

Mas podemos obter uma melhor compreensão de Anderson quando adotamos a abordagem da história intelectual que ele próprio emprega. Isso significa primeiro ler a obra do intelectual como uma "totalidade intencional", com o objetivo de detectar suas contradições e omissões, sejam conscientes ou não. Mas também é importante historicizar sua abordagem, lançando luz sobre seu contexto intelectual, social e político.

Com Anderson, podemos fazer isso de forma particularmente proveitosa quando olhamos para suas tentativas de lidar com a história do marxismo - e em particular, a tradição “marxista ocidental” que se desenvolveu fora dos países socialistas de estado. Em combinação com seus julgamentos muitas vezes fulminantes sobre os vários marxistas ocidentais, Anderson perseguiu sua própria busca para superar seu legado - não como um exercício inútil na história intelectual, mas em uma tentativa de arrancar as raízes das muitas deficiências da esquerda.

A trilogia sobre a história do marxismo

O primeiro livro de Anderson sobre esse tema foi Considerações sobre o Marxismo Ocidental, publicado em setembro de 1976. Ele examinou os diferentes marxismos que se desenvolveram na Europa Ocidental do pós-guerra, organicamente ligados aos partidos comunistas de influência soviética.

Anderson afirmou que a "principal marca registrada" do marxismo ocidental é que "é um produto da derrota". Para ele, a incapacidade da Revolução Russa de se espalhar pelo exterior definiu seu caráter interno stalinista, que por sua vez moldou as teorias propagadas pelos partidos satélites de Moscou, que não podiam desafiar fundamentalmente suas próprias realidades e políticas.

Para Anderson, a derrota da revolução na Alemanha - definindo o destino da Revolução Russa e, consequentemente, da classe trabalhadora global, bloqueou o desenvolvimento dialético entre a teoria revolucionária e a práxis política - até então uma das características distintivas da tradição marxista.

Assim, a teoria marxista que se desenvolveu a partir do período entre guerras, a partir da Escola de Frankfurt, limitou-se a um discurso filosófico discutido principalmente nas universidades. A tradição marxista clássica usou o trabalho teórico para prescrever tarefas para a ação política. Por outro lado, os marxistas ocidentais abandonaram as análises econômicas e políticas de seus predecessores para desenvolver um jargão focado quase exclusivamente em questões epistemológicas, “corrigindo” Marx por meio do uso de outros “filósofos burgueses”.

A resposta política e epistemológica a essa degeneração está, para Anderson, na tradição trotskista, com intelectuais como Ernest Mandel, que tentaram preencher a lacuna entre a teoria e a práxis - o vício inerente do marxismo ocidental. Seus trabalhos trataram de questões relacionadas à economia política do capitalismo e a política, abandonando temas que o marxismo ocidental havia privilegiado, como a epistemologia.

Ao historicizar as preferências políticas e teóricas de Anderson, é importante olhar para o debate sobre a questão da reforma versus revolução neste período, entre as correntes eurocomunistas nos partidos comunistas e os trotskistas. Essa questão ressurgiu à luz das transições de meados da década de 1970 da ditadura para a democracia liberal no sul da Europa - e o processo oposto na América Latina.

No entanto, ao contrário da Quarta Internacional trotskista, o marxismo de Anderson era mais inclinado à análise histórica do que à política e economia política. Seus denominadores comuns eram o reconhecimento da classe trabalhadora como o sujeito principal que conduziria o processo de emancipação social e a crença no marxismo como o corpo teórico que informaria a prática política revolucionária.

Ao mesmo tempo, Anderson nunca se tornou um ativista. Em vez disso, ele era um intelectual politicamente e teoricamente informado, semelhante aos dos partidos eurocomunistas que ele condenou em Considerações sobre o Marxismo Ocidental. Essa particularidade também se refletiu em seu método, que carecia de qualquer reducionismo explícito - de ideias ou de política - ao nível econômico.

Ele permaneceu dentro de um quadro analítico que privilegiou o conflito geopolítico entre a Revolução de Outubro e seus inimigos como fatores determinantes das ideias emergentes. Essa sugestão epistemológica não difere muito da tradição weberiana, onde o Político funciona como esfera autônoma em relação à economia.

Uma abordagem histórico-materialista no nível das ideias estaria, ao contrário, mais próxima daquela apresentada nas obras sobre a história do pensamento político de Ellen Meiksins Wood. Sua abordagem às idéias políticas é, em vez disso, definida por um conjunto de conceitos reguladores, como relações sociais, formas de propriedade e formação do Estado.

As semelhanças entre o trabalho de Anderson e as tendências da tradição marxista ocidental também se tornam aparentes na maneira como o historiador britânico formulou muitas das questões norteadoras de seu estudo, informado por Antonio Gramsci.

Contra Thompson?

Anderson desenvolveu essa linha de reflexão em Arguments within English Marxism, uma obra focada no historiador britânico E. P. Thompson e sua polêmica com o filósofo francês Louis Althusser. Apesar das críticas de Anderson a A Miséria da Teoria de Thompson, sua intenção era reaproximar-se dele depois que um cisma foi criado entre os dois - e as gerações que eles representaram - em seu debate uma década antes sobre a natureza do estado britânico e do capitalismo. As esperanças dos movimentos da década de 1960 foram frustradas e a esquerda global recuou após as derrotas na América Latina e no Sul da Europa: era hora de convergência, não de mais divisão.

Dito isso, Anderson foi claro sobre suas diferenças com Thompson, visto que emA Miséria da Teoria Thompson havia nomeado a Νew Left Review de Anderson como representante do althusserianismo no contexto britânico. A reconstrução de Anderson das diferenças entre ele e Thompson estendeu-se além do nível epistemológico para incluir questões políticas.

Para Anderson, seu principal desacordo político tinha a ver com o dilema entre reforma e revolução (com ele no último campo). Suas diferenças são, portanto, explicadas com referência aos desenvolvimentos geopolíticos da era pós-guerra e, mais precisamente, as cisões dentro do campo comunista. Onde Thompson se tornou um Novo Esquerdista após a invasão soviética da Hungria, Althusser ficou fascinado pelo anti-revisionismo chinês.

No entanto, o próprio entendimento de Anderson sobre o socialismo e como ele seria alcançado era bastante distinto de qualquer um dos dois. Para ele, a nova fase da história humana seria introduzida por um violento período de transição que implicacaria: “a dissolução do estado capitalista existente, a expropriação das classes possuidoras dos meios de produção e a construção de um novo tipo de estado e ordem econômica, na qual os produtores associados podem, pela primeira vez, exercer controle direto sobre suas vidas profissionais e poder direto sobre seu governo político”.

Isso, ao lado de um foco na necessidade de uma “crise econômica fundamental” para que tal mudança ocorresse, deixou clara sua rejeição às teses reformistas. Na verdade, esse entendimento da transformação política socialista era próximo ao proposto na época por Ernest Mandel. Em Considerações Sobre o Marxismo Ocidental, ele reconheceu Mandel como um dos intelectuais exemplares do Ocidente, cuja postura conseguiu preencher a lacuna entre a teoria e a prática política.

Na Universidade

Muito diferente foi o estilo de Anderson na continuidade do seu estudo sobre o Marxismo Ocidental, intitulado Nas Trilhas do Materialismo Histórico. Dirigido a um público universitário em Irvine, Califórnia, este livro avalia as tendências intelectuais do estruturalismo e pós-estruturalismo na França de 1945 até os anos 1980.

Anderson detecta fortes continuidades entre as duas tradições, retratando a última como uma transfiguração da primeira. Seu envolvimento com esses sistemas de pensamento é explicado com referência ao domínio das tendências estruturalistas dentro do marxismo francês que, para Anderson, estava em declínio acentuado desde o início dos anos 1980.

A raiz intelectual dessa deformação está no domínio do estruturalismo, informado pelo trabalho teórico do linguista e semiótico suíço Ferdinand de Saussure. Isso significou uma ênfase na lógica discursiva sobre as funções sociais - isto é, a sociedade foi analisada com as regras e ferramentas da análise da linguagem.

Mais especificamente, o terreno epistemológico compartilhado pelos pós-estruturalistas foi caracterizado pela "exorbitação da linguagem", "a atenuação da verdade" e "a aleatorização da história", implicando em última análise a relativização dos princípios básicos do Iluminismo, dissolvendo quaisquer certezas no campo da ética e da política.

A narrativa de Anderson da história interna das tradições estruturalistas e pós-estruturalistas tem alguns insights valiosos, mas é marcada por muitas generalizações ásperas que confundem em vez de esclarecer o tópico sob exame, a fim de buscar uma narrativa totalizante.

A maioria dos estudiosos não concordaria que o marxismo francês do pós-guerra foi dominado pelo estruturalismo - e a afirmação de que o estruturalismo, uma epistemologia acadêmica, foi responsável pelas derrotas políticas dos partidos eurocomunistas do período, parece compartilhar o mesmo idealismo que Anderson está criticando.

Este conjunto de perguntas demonstra as limitações das categorias analíticas escolhidas por Anderson. Mas o historiador britânico também adiciona outro fator extra-intelectual ao declínio das duas tradições que ele examina, a saber, as derrotas do Maoísmo no Oriente e do Eurocomunismo no Ocidente com o qual o estruturalismo era aliado.

Com seus impasses políticos, a teoria também entrou em colapso. Mas Anderson não explica a relação exata entre a teoria e sua realidade externa. Se havia uma relação direta entre realidade e teoria, então como a influência global de Gramsci, o teórico marxista ocidental por excelência, sobreviveu às décadas de 1980 e 1990, tanto dentro quanto fora da academia?

O diagnóstico de Anderson sobre o fim definitivo do marxismo ocidental provou-se errado, especialmente considerando a influência global e diversa dessa tradição nas últimas décadas. Não obstante, Anderson observou com otimismo que estudos que se posicionaram do lado oposto do marxismo ocidental - tanto em termos de epistemologia quanto de conteúdo - surgiram no mundo de língua inglesa nos últimos anos.

A produção do marxismo, portanto, mudou-se da Europa latina para os países de língua inglesa. Foi lá que os estudos de Ralph Miliband, Erik Olin Wright, Harry Braverman e Michel Aglietta entre outros, enfocaram os aspectos políticos e econômicos da ordem mundial capitalista e tentaram analisar as especificidades históricas da conjuntura contemporânea.

Anderson admitiu que seu prognóstico sobre uma crescente dialética entre análises marxistas sólidas e práxias políticas revolucionárias não havia sido confirmado - na verdade, a maioria desses estudos permaneceu dentro da academia.

Anderson não explica, no entanto, essa assimetria. Por que houve uma mudança geográfica enquanto a lacuna entre a teoria socialista e a práxis política permaneceu constante? Uma resposta adequada a esta pergunta exigiria uma análise mais firme da crise política da esquerda na época e uma compreensão mais profunda da reconfiguração do capitalismo, que só mais tarde foi totalmente visível.

No momento em que este livro foi publicado, Anderson havia se mudado para os Estados Unidos, assumindo finalmente um cargo de professor titular na UCLA. A maioria dos estudos que ele indica como sociológica e historicamente informados foram conduzidos por acadêmicos, nunca reivindicando qualquer dialética entre a teoria e a prática socialistas.

Tratavam-se de pessoas que se radicalizaram durante as décadas de 1960 e 1970, por meio de seu envolvimento nas revoltas estudantis; os temas radicais de suas pesquisas foram resultado do movimento, mas esses intelectuais nunca voltaram-nos para a sociedade na forma de teorias capazes de mobilizar os trabalhadores.

Anderson não foi exceção a essa regra. Deste ponto em diante, seus círculos foram construídos em torno de intelectuais progressistas de prestigiosas universidades da América, em vez de figuras comprometidas com uma mudança revolucionária do mundo. Um indicativo dessa virada foi a mudança nos colaboradores da New Left Review, que mais uma vez derivou principalmente das universidades norte-americanas. Robert Brenner, Mike Davis, Fredric Jameson, Ellen Meiksins Wood e Michael Sprinker eram escritores regulares da NLR durante este período.

Havia uma boa razão para isso. Pois a crise política delineada por Anderson tinha raízes mais profundas do que a crise do eurocomunismo. Foi uma expressão da incapacidade coletiva da esquerda ocidental de lidar efetivamente com a reconfiguração da economia capitalista que ocorreu com a crise do petróleo de 1973.

O eurocomunismo foi uma variante da esquerda que demonstrou suas limitações políticas nesta conjuntura ao enfrentar o dilema entre reforma e revolução, mais evidente no impasse do Partido Comunista Italiano. As organizações revolucionárias nunca adquiriram o peso necessário para desafiar substancialmente o status quo. E já em meados da década de 1980, a social-democracia começou a abarcar partes significativas dos programas da direita neoliberal.

Essa crise sistêmica mais ampla dentro da esquerda, produzida pela reconfiguração do capitalismo, pode ser responsável pela crescente disjunção entre sua teoria e práxis. A esquerda lenta mas continuamente começou a se desligar da esfera social, limitando-se às torres de marfim das universidades.

Na década de 1980, o marxismo foi desafiado por outros paradigmas teóricos de dentro dos campos acadêmicos que tinham conotações políticas progressistas - não por um movimento social que pudesse reformular e redirecionar suas prioridades.

É por isso que a narrativa de Anderson observa o antagonismo entre as diferentes tradições teóricas dentro das estruturas universitárias, não fora delas. As universidades britânicas e americanas poderiam continuar a “hospedar” a tradição marxista, já que aqui a esquerda nunca representou um desafio substancial ao seu status quo.

O establishment não apagou completamente o marxismo, mas o integrou como outra tradição teórica separada da prática política. Adotando essa linha de raciocínio, pode-se argumentar que a trilogia de Anderson sobre o marxismo foi em si um produto dessa derrota. Seus impasses, portanto, devem ser interpretados de acordo com essas mudanças sísmicas no sistema-mundo, e não como falhas de paradigmas teóricos específicos do cânone marxista ou do próprio autor.

Depois da queda

A falta de historicização adequada de Anderson de sua própria trilogia sobre o marxismo teve a ver com sua incapacidade de perceber a extensão das transformações estruturais mais amplas em andamento na época, ao invés de qualquer tipo de desonestidade intelectual. Mas seu trabalho logo colocaria em primeiro plano um sentimento de derrota.

Isso ficou particularmente aparente em A Zone of Engagement, uma coleção de ensaios publicada entre 1983 e 1992. Este livro sinaliza uma série de mudanças na epistemologia, política, temas e estilo de Anderson, desviando-se significativamente de sua trilogia sobre a história do marxismo.

A primeira metade deste livro concentra-se no pensamento marxista de meados da década de 1980, mas nos próximos capítulos, Anderson discute desenvolvimentos intelectuais entre pensadores não marxistas. Isso é explicado com base no desafio teórico colocado por análises macrossociológicas não marxistas durante os anos 1980, como as de Michael Mann e WG Runciman, mas também no desafio político que a esquerda enfrentou a partir da tradição socialista-liberal (à la Norberto Bobbio) após o colapso da URSS.

Mas Anderson não levou em consideração as causas estruturais desses fenômenos intelectuais e políticos - algo que, como mencionado acima, pode ser rastreado até a incapacidade da esquerda de lidar com a crise de 1973 de maneira eficaz.

A falta de uma explicação sólida para o surgimento desses fenômenos e a integração da teoria não marxista em sua análise indicava uma mudança em suas convicções sobre o poder explicativo-preditivo do marxismo. O papel da classe trabalhadora como ator-chave da transformação social não podia permanecer inalterado, mas agora se tornou objeto de uma omissão contida.

Os debates dentro do cânone marxista sobre questões de teoria e estratégia foram substituídos por discussões intra-acadêmicas sobre o método adequado na disciplina de teoria intelectual. Sua autocompreensão como marxista tentando desafiar as falácias do reformismo político e da teoria não dialética foi, portanto, substituída pela adoção de métodos dentro dos meios universitários.

A mudança de atitude política de Anderson também se torna evidente, aqui, relegando a viabilidade da política revolucionária ao passado. Essa mudança é cristalizada em sua reavaliação de seu próprio texto influente de 1976, “As Antinomias de Antonio Gramsci”. Na introdução de A Zone of Engagement, Anderson admite que seu camarada Franco Moretti estava certo ao dizer que esse texto havia sinalizado o fim das esperanças de transformação revolucionária no Ocidente.

Em seu texto sobre Marshall Berman em A Zone of Engagement, ele “insistiu que a revolução é um processo pontual e não permanente... que tem um início determinado - quando o antigo aparato de estado ainda está intacto - e um fim finito , quando esse aparato for decisivamente quebrado e um novo for erguido em seu lugar.” Para Anderson, essa visão de um evento abrupto e violento levando uma transformação social radical não era mais viável no Ocidente.

Não se tratava de abraçar a ideia de um “fim da história”, rejeitada com veemência no ensaio sobre Francis Fukuyama neste mesmo volume. Para Anderson, o cientista político liberal teve principalmente sucesso em sintetizar “democracia liberal e prosperidade capitalista juntas em um nó terminal enfático”, em meio ao triunfalismo após o fim da URSS.

Mas para o marxista britânico, uma vez que as condições que trouxeram o socialismo à emergência no século XIX continuavam a existir, não havia razão para acreditar que o capitalismo liberal havia assinalado o fim da história. Em vez disso, ele retruca que a modernidade com todas as suas contradições é um processo aberto, e sua negação - o socialismo - ainda é uma possibilidade em aberto. Mas as afirmações anteriores sobre a viabilidade do socialismo foram substituídas pela incerteza sobre suas perspectivas a curto prazo.

As esperanças políticas de Anderson para o curto prazo eram, portanto, de uma matiz diferente do passado recente. Vemos isso em suas primeiras esperanças com a integração política da União Europeia; recomendações intelectuais, como o trabalho de David Held sobre a democracia, também eram novas no universo intelectual de Anderson.

O estilo de Anderson também foi alterado, com este livro ecoando o usado na London Review of Books, onde a maioria dos ensaios foi publicada inicialmente. Nessa saída liberal, não havia espaço para o idioma marxista e as polêmicas marxistas internas comuns em seus estudos anteriores.

A crítica textual e política continuou a ser o eixo-chave de seus ensaios, mas o tom mudou. A situação pós-1991 não inspirava confiança política: se o público de Anderson agora era muito maior, e suas ideias, portanto, iam além da esquerda intelectual, isso estava dentro de uma publicação liberal.

Espectro

As convulsões do início da década de 1990 não produziram uma nova ordem estável, mesmo que fosse mais difícil propor alternativas concretas. Avançando para 2005, a aliança liderada pelos EUA ficou atolada na "guerra ao terror" e a esquerda foi impulsionada por um renovado antiimperialismo, mesmo quando o obscurantismo religioso e o espectro da direita de um "choque de civilizações" levantaram a cabeça.

Nesse contexto, Anderson publicou outro volume sobre a história do pensamento político do século XX, intitulado Espectro: Da Direita à Esquerda no Mundo das Ideias. Este volume inclui ensaios que analisam as obras de acadêmicos cobrindo todo o espectro de "Intransigent Right" à "Vanquished Left", a maioria deles publicada na London Review of Books e na NLR entre 1992 e 2005, ilustrando assim as transformações desde o "fim da história".

No prefácio, Anderson menciona que este livro é uma continuação de A Zone of Engagement, tanto em seus objetivos quanto em sua lógica de examinar uma vasta gama de intelectuais. No entanto, houve uma série de descontinuidades, não tanto em relação a sua epistemologia sobre a história intelectual, mas sim em sua própria posição em relação à esquerda liberal moderada e sua capacidade (ou não) de efetuar reformas políticas e sociais significativas. Nesse sentido, é útil comparar os principais argumentos do Espectro com seu editorial da NLR de 2000, “Renewals”, condensando sua visão política sobre as mudanças globais da década de 1990.

O Espectro é dividido em três partes, de acordo com uma combinação de critérios políticos e temáticos. A primeira parte examina a tradição de direita, enfocando a obra de Michael Oakeshott, Leo Strauss, Carl Schmitt, Friedrich von Hayek, Ferdinand Mount e Timothy Garton Ash. A próxima parte examina teóricos da esquerda liberal - ou seja, aqueles que ocupam o espaço político da social-democracia (Bobbio, Jürgen Harbermas e John Rawls).

Esses teóricos são tomados como um grupo discreto dado que: a) seus trabalhos filosóficos formularam teorias sólidas de consenso social na vida interna das sociedades ocidentais e, b) seus esforços filosóficos posteriores elaborados em análises de transformações globais que em última análise justificaram as intervenções imperialistas de década de 1990.

Como em A Zone of Engagement, Anderson aqui evitou enquadrar sua análise com qualquer conceito derivado do cânone marxista. Seu objetivo principal é, ainda, a contextualização do trabalho de autores individuais em seus ambientes intelectuais e sócio-históricos.

No entanto, como Stefan Collini observa com propriedade, Anderson faz mais do que apenas contextualizar as ideias que examina, em vez disso, ele constrói "'críticas' no sentido completo e original desse termo derivado da filosofia alemã - 'reconstruções da lógica interna das ideias, deduções das condições intelectuais e sociológicas de sua possibilidade, exposições fulminantes de suas inconsistências e omissões.'"

Em outras palavras, o método de Anderson aqui estava mais próximo de uma sociologia do conhecimento do que de uma história tradicional do pensamento político, onde as reduções extralinguísticas são suspeitas do vício do "determinismo".

Os diagnósticos de Anderson sobre a política mudaram desde 1992, quando A Zone of Engagement foi lançado, assim como o próprio contexto político. As perspectivas de renovação democrática nos ex-países soviéticos provaram ser uma ilusão, com seus sistemas políticos agora dominados por oligarcas corruptos.

De maneira mais geral, a direita neoliberal tornou-se dominante em todo o mundo e a esquerda liberal (incluindo a social-democracia, que Anderson não descartou em A Zone of Engagement) perdeu qualquer presença autônoma potencial ao ceder completamente aos dogmas neoliberais.

Enquanto isso, a esquerda foi incapaz de oferecer qualquer visão de longo prazo ou soluções econômicas e políticas viáveis ​​para o status quo neoliberal. Assim, o prognóstico aberto de Anderson sobre os possíveis rostos da esquerda após o colapso da URSS foi substituído por uma avaliação mais definitiva: a esquerda havia sido derrotada. A imagem que aparece no relato de Anderson evoca a famosa citação: “Meus ídolos estão mortos e meus inimigos no poder.”

Contra o frentismo popular

Então, que postura um intelectual de esquerda deve adotar, nessa nova conjuntura? Em seu editorial de 2000, "Renovações", Anderson insistiu que a resposta estava em "realismo intransigente", o que significa aceitação da derrota da esquerda, mas também crítica irreconciliável ao establishment político e econômico do neoliberalismo. Deste ponto em diante, o alvo político de Anderson é o "centro extremo" e seus adeptos intelectuais.

Se em 1992 ele considerava a UE um possível veículo para superar as divisões nacionalistas, na época de seu editorial de 2000 sua subordinação à hegemonia americana havia condenado tal perspectiva. Essa nova conjuntura foi, ao contrário, definida pela expansão da ordem capitalista em todo o mundo, um processo histórico que muitos teóricos da época descreveram com o eufemismo “globalização”.

A hegemonia estadunidense estava expandindo sua influência geopolítica em novos territórios em todo o globo, estabelecendo seus interesses econômicos cada vez mais distantes e criando novas dependências entre o centro capitalista e suas periferias.

Mas a hegemonia, como Gramsci observou, é estabelecida não apenas por métodos consensuais, mas também pela força. As guerras imperialistas lideradas pelos EUA no Iraque, no Afeganistão e na ex-Jugoslávia - normalmente apoiadas pelos principais países da UE - ilustram este diagnóstico.

Perry Anderson observa que Habermas, Bobbio e Rawls endossaram essas guerras, embora com justificativas diferentes; assim, sua romantização do destino das democracias ocidentais desde o final dos anos 1970 deu lugar a uma série de análises legitimadoras para o imperialismo ocidental. Essas tendências ilustraram as transformações mais amplas que a social-democracia experimentou no mesmo período, cada vez mais hegemonizada pelos pressupostos da direita neoliberal.

Para Anderson, a tarefa dos historiadores intelectuais de esquerda deveria ser a desconstrução desses discursos legitimadores da ordem mundial capitalista, mistificações ideológicas produzidas também pelos intelectuais da esquerda liberal.

No início dos anos 2000, a New Left Review se demarcou explicitamente da esquerda liberal com base na oposição à guerra imperialista, uma divisão duradoura que agora se tornou um tema definidor do trabalho de Anderson. Ele atribuiu essa crítica ao domínio americano a Eric Hobsbawm, a cuja trajetória ele dedicou um artigo na Espectro intitulado “Esquerda vencida: Eric Hobsbawm”.

No entanto, também havia diferenças substanciais entre os dois homens, especialmente porque a politização trotskista de Anderson o distanciava da Frente Popular do Comintern, ao qual Hobsbawm sempre recorria. As críticas de Anderson a Hobsbawm neste terreno específico se intensificaram na década de 1980, quando os artigos da Marxism Today defendiam uma Frente Popular revivida, desta vez contra o thatcherismo.

Hobsbawm depositou suas esperanças de confrontar o conservadorismo não na reconfiguração da identidade do Partido Trabalhista em uma política de classe explícita, mas sim através da coalizão com a divisão social-democrata e os liberais.

Anderson viu esta estratégia como incorreta no curto prazo e perigosa em geral, já que levaria a degeneração do Trabalhismo em um partido neoliberal de centro extremo. Hobsbawm foi, portanto, condenado por ser incapaz de ver as conexões entre as políticas sugeridas no Marxism Today durante os anos 1980 e a deformação trabalhista nos anos 1990, abandonando a promoção dos interesses da classe trabalhadora.

Essa não era apenas uma disputa no nível da estratégia política, mas também dizia respeito à leitura da história de Hobsbawm. Para Anderson, era de importância central entender o papel histórico da burguesia e a maneira problemática como Hobsbawm a conceituou.

Ele argumentou que A Era dos Impérios de Hobsbawm não forneceu nenhuma análise de seu papel nas vésperas do século XX e em face do surgimento de novas formas de corporações multinacionais. Em particular, Ηοbsbawm foi criticado por não querer levar a economia marxista a sério na construção de seus argumentos a respeito das principais crises financeiras do século.

O leitor pode, entretanto, voltar a crítica contra Anderson, dado seu fracasso em usar uma estrutura analítica marxista explícita para seus estudos sobre a história do pensamento político contemporâneo. O tema em si - ou seja, as ideias políticas - pode justificar essa ausência no seu trabalho?

Isso se torna ainda mais perplexo quando consideramos sua auto-identificação explícita com o campo da esquerda marxista. Esse pertencimento político pode se manter, sem um compromisso teórico com a análise marxista? Sua visão olímpica não contradiz seus compromissos com a esquerda, implicando uma dissociação da polarização produzida pela própria luta de classes?

A hesitação de Anderson em adotar uma teorização marxista explícita pode ser rastreada até a experiência de derrota após o colapso da URSS. Se, para muitos marxistas da década de 1970, a revolução global estava às portas da história, ou pelo menos uma possibilidade viável, o início da década de 1990 a transformou em uma perspectiva remota, tornando impensável qualquer tentativa de definir os parâmetros de sua marcha triunfante.

No entanto, mesmo admitindo a perplexidade de Anderson diante do desaparecimento do mundo comunista, o conhecimento adquirido sobre a ascensão capitalista global nos anos subsequentes tornou a adoção do marxismo uma pré-condição ainda mais óbvia para examinar possíveis futuros alternativos.

Criar essas alternativas continua sendo a tarefa em mãos. Anderson lança dúvidas sobre vários dos prognósticos de Hobsbawm sobre o colapso imediato da ordem capitalista, corretamente observando que o mundo se encontra sob a ascensão do hegemon americano e que o sistema só poderia ser desafiado por uma crise financeira global.

No entanto, nossa experiência recente mostra que mesmo isso não é suficiente - destacando ainda mais a incapacidade da esquerda global de oferecer alternativas substanciais ao estabelecimento neoliberal.

Em oposição à subestimação de Hobsbawm da sustentabilidade do capitalismo, Anderson propõe um "realismo intransigente", pois "a compreensão precisa do inimigo vale mais do que boletins para elevar o moral duvidoso. Uma resistência que dispensa consolos é sempre mais forte do que aquela que depende deles”. Esse compromisso com o rigor intelectual e olhar os fatos de frente é, de fato, o legado mais precioso que podemos tirar de seu trabalho.

Sobre o autor

George Souvlis é escritor freelance e leciona na Universidade da Trácia, no Departamento de Ciência Política.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...