23 de maio de 2019

Onze teses sobre a Venezuela

A política dos EUA em relação à Venezuela não é motivada por uma preocupação com a democracia ou os direitos humanos. E sua intervenção arrogante está agravando ainda mais a crise humanitária do país.

Gabriel Hetland

Jacobin

O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, fala durante uma manifestação do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) no Palacio de Miraflores em 20 de maio de 2019 em Caracas, Venezuela. Eva Marie Uzcategui / Getty

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A Venezuela está passando por uma profunda crise humanitária. Qualquer tentativa de negar isso é abominável, pois ignora o enorme sofrimento do povo venezuelano.

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A crise praticamente obliterou os ganhos sociais inegáveis ​​e impressionantes alcançados entre 2003 e 2013, quando a Venezuela viu reduções maciças na pobreza e na desigualdade e melhorou dramaticamente os padrões de vida. A crise também corroeu severamente os ganhos políticos igualmente impressionantes e inegáveis ​​do chavismo, como o empoderamento significativo (embora desigual) de setores da sociedade anteriormente excluídos da política. Devemos reconhecer essas perdas sem nos render à narrativa que proclama que o chavismo estava fadado ao fracasso desde o começo. Essa narrativa deve ser rejeitada não apenas porque é falsa, mas também porque faz parte de um projeto reacionário mais amplo de demonização do chavismo e do projeto da esquerda de construir um mundo melhor. Devemos também rejeitar a narrativa de que o chavismo está “morto”. Apesar de severamente maltratados, os movimentos populares que são o coração pulsante do chavismo não desapareceram: esses movimentos continuam a lutar e serão de vital importância para determinar o futuro da Venezuela.

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As origens da crise são complexas e envolvem uma mistura de fatores de longo, médio e curto prazo, incluindo: a secular dependência do petróleo, que por sua vez é um legado da ordem mundial capitalista e da posição periférica da Venezuela dentro desta ordem; medidas governamentais falhas, particularmente relacionadas à política monetária, que fomentou corrupção estimada em mais de centenas de bilhões de dólares; a repressão governamental de protestos e dissidências pacíficas em meio a um afastamento mais amplo da democracia política e em direção ao governo autoritário; ações de oposição, como açambarcamento especulativo de bens, morte de civis e funcionários do governo e danos intencionais à infraestrutura e recursos públicos, incluindo instalações médicas e alimentos armazenados; ações do governo dos EUA, incluindo apoio manifesto e encoberto para os setores mais violentos da oposição, e os efeitos diretos e indiretos das sanções, que desde pelo menos 2015 privaram o governo de fundos significativos, principalmente ao negar acesso a mercados internacionais de crédito.

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As recentes ações dos EUA - particularmente as sanções impostas em agosto de 2017 e janeiro de 2019 - exacerbaram severamente a crise e devem ser vistas como uma das principais causas imediatas da terrível situação enfrentada por milhões de venezuelanos. Um relatório recente estima que as sanções de agosto de 2017 causaram um adicional de 40 mil mortes na Venezuela até o fim de 2018. Embora seja impossível confirmar esse número, que pode ser muito alto ou muito baixo, é ilógico e repugnante negar que as sanções dos EUA produziram um aumento maciço do sofrimento na Venezuela.

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A política dos EUA em relação à Venezuela não é motivada por uma preocupação com a democracia, os direitos humanos ou o humanitarismo. Washington há muito tempo apóia regimes com históricos políticos e de direitos humanos que são frequentemente muito piores do que o governo de Maduro, incluindo a Arábia Saudita, a Colômbia (onde ser um organizador muitas vezes é uma sentença de morte), Brasil, Honduras e Haiti. Vários desses países realizaram recentemente eleições profundamente fraudulentas ou abertamente fraudulentas que são, no entanto, reconhecidas pelos EUA. A falta de preocupação real de Washington sobre o sofrimento dos venezuelanos também é patentemente óbvia: de que outra forma interpretar a disposição dos funcionários de Trump de brincar sobre o impacto debilitante das sanções, por exemplo, comparando-o com o aperto mortal de Darth Vader? Ou considere a recente decisão dos EUA de encerrar todos os vôos para a Venezuela, que até mesmo o New York Times observa que pode aprofundar significativamente o nível já catastrófico de sofrimento humano.

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Além de ser imoral, ilegal e hipócrita, o apoio aberto dos EUA à mudança de regime tem sido extremamente ineficaz. Apesar de quase quatro meses de agressão aos EUA, Maduro continua no cargo, aparentemente com sólido apoio dos escalões superiores dos militares e do Estado. As ações dos EUA também parecem ter solidificado o apoio de Maduro entre os setores populares da Venezuela: segundo os organizadores chavistas de base, havia crescente mobilização do setor popular contra Maduro no início de janeiro de 2019, mas desde a auto-proclamação de Juan Guaidó como presidente em 23 de janeiro, líderes chavistas se uniram em torno de Maduro, apesar de suas ferozes críticas (e até repugnância) à sua liderança.

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Os EUA têm repetidamente solapado tentativas de resolver a crise da Venezuela de maneira pacífica, por meio de negociações com a oposição do governo. Ao fazê-lo, Washington aumentou as chances de que a crise seja resolvida por meio da violência.

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As ações de Juan Guaidó tornaram a situação na Venezuela mais perigosa sob vários aspectos: aumentando a probabilidade de ação militar dos EUA, que ele solicitou abertamente; enfraquecendo os setores moderados da oposição mais abertos a negociações e ao diálogo; casando a oposição com os EUA, o que reduz a possibilidade de que a oposição delineie medidas positivas para reverter a crise da Venezuela e possa apelar mais diretamente aos setores populares críticos a Maduro, mas cautelosos com a oposição e os EUA; não condenando a perigosa vingança de seus simpatizantes mais próximos, como seu "embaixador nos EUA" Carlos Vecchio, que proclamou que estava cortando a eletricidade da embaixada venezuelana em Washington DC para dar aos ativistas do "Colectivo de Protección de la Embajada" um pouco da experiência de morar na Venezuela ”; e não condenando a violência recente da oposição, como o saque e incêndio criminoso da "sede da Comuna Indio Caricuao, no sudoeste de Caracas", que aconteceu após a tentativa desesperada e cômica de 30 de abril.

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A popularidade de Juan Guaidó na Venezuela parece ter caído, mas evidências disponíveis sugerem que ele continua popular e desfruta de algum apoio do setor popular. Para alguns, e particularmente para os setores populares, o apoio a Guaidó provavelmente está relacionado mais à sua estatura de opositor mais proeminente de Maduro do que ao apoio às políticas pró-mercado de extrema-direita de Guaidó.

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Pessoas razoáveis podem discordar sobre a adequação e a eficácia tática de criticar abertamente (ou apoiar) Maduro, mas não deve haver debate sobre a necessidade urgente de que os estadunidenses se oponham a sanções e ameaças de guerra sob todas as formas, incluindo: pressionar representantes e senadores a apoiar ou co-patrocinar a HR 1004 e a SJ Res. 11, Prohibiting Unauthorized Military Action in Venezuela Act; pressionar os democratas progressistas a tomar uma posição mais firme contra o intervencionismo dos EUA; opor-se aos esforços de Guaidó e seus associados para anular as esperanças de negociações, assumindo ilegalmente postos diplomáticos venezuelanos; e marchar e se engajar em outras ações de protesto para se opor à guerra e às sanções dos EUA.

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Tentativas de encerrar o debate sobre a Venezuela ou de apoiar (ou se opor) a Maduro, como uma prova de fogo para se opor ao intervencionismo dos EUA, devem ser combatidas por três razões. Primeiro, por princípio. A esquerda deve defender o debate aberto e o respeito pelas diferenças de opinião. Em segundo lugar, por razões substantivas. A Revolução Bolivariana inclui um rico conjunto de lições positivas e negativas do que a esquerda deveria e não deveria fazer. Algumas dessas lições são óbvias: políticas que reduzem a pobreza e a desigualdade e empoderam a maioria podem ser politicamente muito populares e devem ser apoiadas; interesses nacionais e estrangeiros poderosos se oporão a tais políticas, e a esquerda deve pensar sobre como lidar com isso. Outras lições são menos óbvias: como podemos evitar os erros que assombraram revoluções passadas, incluindo políticas econômicas disfuncionais, um afastamento das bases, do poder popular e a burocracia e a corrupção dentro do Estado? E como fazemos isso ao mesmo tempo em que nos defendemos das agressões externas e domésticas? Descobrir as respostas para essas e outras questões urgentes é crucial. A única maneira de fazer isso é através do debate honesto e aberto. Finalmente, há a questão da estratégia. Gostemos ou não, o movimento de solidariedade venezuelana e antiimperialista mais amplo inclui pessoas e grupos com uma série de pontos de vista sobre Maduro e a Venezuela. Insistir que todos compartilhem da mesma perspectiva é uma receita para manter o movimento pequeno e irrelevante. Fazer isso também é uma má política: podemos e devemos evitar o sectarismo sem renunciar a princípios fundamentais como o igualitarismo, o antiimperialismo, o anti-racismo, o feminismo e um compromisso compartilhado para construir um mundo inclusivo, profundamente democrático, não-capitalista e ecologicamente sustentável.

Sobre o autor

Gabriel Hetland ensina na Universidade de Albany e escreveu sobre política venezuelana para a Nation, NACLA, Qualitative Sociology, e Latin American Perspectives.

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