23 de julho de 2018

O caso Benalla

Um dos principais assessores de Emmanuel Macron foi pego "disfarçado" de policial agredindo manifestantes. É um escândalo que simboliza a presidência.

Cole Stangler

Jacobin

Emmanuel Macron durante uma reunião com Vladimir Putin, 29 de maio de 2017. Serviço de Imprensa do Presidente da Federação Russa / Wikimedia

Tradução / Poucas horas depois da marcha anual do 1º de maio esse ano em Paris, centenas de estudantes que protestavam reuniram-se numa pequena praça no Quartier Latin, com planos para se manifestarem contra reformas na educação. Mas foram imediatamente atacados pela Polícia, com violência.

Num dos incidentes — filmado por um ativista do partido France Insoumise da esquerda francesa, e fartamente noticiado nos dias seguintes – um grupo de policiais da polícia de choque jogou um manifestante pacífico e desarmado ao chão, e puseram-se a espancá-lo repetidas vezes, com os cassetetes.

Sem novidades, não fosse o fato de que nem todos os espancadores eram policiais.

Semana passada, Le Monde noticiou que um dos homens que espancaram o manifestante é, na verdade, um dos principais assessores de segurança, do primeiro escalão, assessor pessoal do presidente Emmanuel Macron, mascarado com um capacete da polícia de choque e uma jaqueta do uniforme policial. A notícia rapidamente se tornou o mais espantoso escândalo da presidência da França até hoje, num governo que mal chega ao primeiro ano de mandato. Somado aos detalhes que não param de vir à tona, o caso parece mais estranho e mais danoso para a imagem da presidência, a cada minuto.

Encobrir o caso

Pouco depois de os funcionários do Palácio do Eliseu descobrirem o caso, o espancador e guarda da segurança de Macron, de 26 anos, Alexandre Benalla, foi suspenso. Oficializada dia 4 de maio, a pena resumiu-se a mera suspensão de 15 dias. Muito impressionantemente, os funcionários da presidência não notificaram os procuradores de Justiça, como a lei exige de todos os funcionários públicos que tenham conhecimento de crime praticado por colega.

Cumprida a rápida pena de suspensão, Benalla foi autorizado a retomar seus serviços na equipe de segurança do presidente. Dia 1º de julho, estava ao lado de Macron numa cerimônia no Pantheon. E novamente estava ao lado do presidente dia 14 de julho, nas comemorações do Dia da Bastilha. E uniu-se à equipe de futebol da França no desfile da vitória quando a equipe retornou da Rússia, pela avenida dos Champs-Elysées semana passada, dois dias antes de o escândalo eclodir. Detalhe também estranho, no início do mês Benalla ganhou um apartamento luxuoso no 7ème arrondisement de Paris, destinado, segundo o Guardian a receber funcionários do Eliseu. Alguma espécie de castigo, sabe-se lá.

Desde que as primeiras notícias começaram a aparecer, a polícia francesa anunciou que havia aberto inquérito sobre Benalla. Foi detido para interrogatório e agora enfrenta possíveis acusações de "violência cometida por funcionário público" e de se fazer passar por policial.

Mas o caso teve outra reviravolta. Pouco depois de Le Monde ter procurado Benalla semana passada para confirmar que era realmente o homem filmado espancando manifestantes no Quartier Latin dia 1º de maio, o segurança do presidente teria contatado altos funcionários da polícia de Paris e requisitado as fitas do incidente. Três policiais cumpriram o pedido - eles já foram suspensos e levados sob custódia para interrogatório. Um deles é um dos comandantes encarregados dos contatos entre a Polícia e o Palácio do Eliseu.

Inicialmente, a presidência tentou defender o modo como estava administrando o caso, enfatizando que a punição de 15 dias de suspensão aplicada a Benalla seria suficiente. Provocou fúria e risos entre os franceses. Rapidamente ficou evidente para os franceses indignados, que nada ali fazia sentido, e o Palácio não poderia sustentar essa posição. Na sexta-feira, funcionários afinal anunciaram a demissão de Benalla.

Ao mesmo tempo, membros da oposição na Assembleia Nacional iniciaram inquérito parlamentar, o que forçou o governo a adiar a agenda legislativa por várias semanas. Na 2ª-feira, convocaram o ministro do Interior, Gérard Collomb, para depor perante uma comissão de investigação. Collomb — principal defensor da lei e da ordem, defensor do modo duríssimo como o governo trata refugiados e pessoas que solicitam asilo na França — soube dos malfeitos de Benalla logo no dia seguinte, 2 de maio. Por que não tomou qualquer providência? Em audiência, o ministro de Macron alegou ignorância dos fatos, disse que não sabia da participação de Benalla naquele momento e que não era sua responsabilidade tomar qualquer medida.

Enquanto as investigações avançam, dentro e fora do Parlamento duas perguntas cruciais continuam à procura de resposta: Por que Benalla, muito jovem, sem experiência policial, recebeu do Eliseu tão ampla autoridade? Segundo, por que os funcionários do palácio e da presidência não o enquadraram e disciplinaram desde o primeiro dia em que foi visto por lá?

Parábola de um governo

O escândalo capturou a opinião pública. De um lado, porque é história bizarra e intrigante, por ela mesma. Imaginem o impacto de matérias em todos os jornais, sobre um serviçal da Casa Branca ou da Rua Downing, filmado em plena rua espancando manifestantes – aparentemente por prazer –, com legiões de outros serviçais dedicados a esconder tudo e garantir 'cobertura' ao criminoso. A repressão policial na França contra a esquerda é evento regular, que já nem recebe grande cobertura nos jornais, mas as intrigas presidenciais adicionais tornaram a história impossível de ser ignorada pela grande imprensa.

Mas o affair parece ecoar na imaginação do grande público, também, pelo muito que deixa ver de algumas duras verdades sobre Macron e sua filosofia de governo. Ilustra de modo macabro o desdém do presidente por manifestações e manifestantes, especialmente quando tenham a ver com a esquerda da população. Deixa ver o real significado dessa presidência "jupiteriana" de Macron, que desdenha completamente quaisquer controles democráticos e checks and balances. E ainda faz ver a arrogância profunda e o senso de infalibilidade que já define claramente a gestão desse banqueiro de banco de investimentos.

Muito eloquentemente, Macron sequer se deu o trabalho de comentar a história. Com os deputados da oposição exigindo explicações do governo na Assembleia Nacional, o primeiro-ministro Edouard Philippe passou a sexta-feira seguindo as bicicletas que disputavam o Tour de France no sudoeste do país. Na presença de repórteres, comentou rapidamente as investigações em andamento; e criticou os opositores por dar uso político ao acontecimento. Seja como for, o primeiro-ministro não poderá escapar de comparecer diante da Assembleia para declarações, e não há dúvidas de que enfrentará fogo cerrado de perguntas sobre Benalla.

O presidente, por sua vez, ainda nem reconheceu a gravidade do escândalo, contando, parece, com o tempo, para diluir os comentários. Partindo de alguém que tanto confia na comunicação – conhecido pelo prazer com que tuíta em vários idiomas e pela atenção que dedica a cada uma de suas aparições públicas, com destaque para sua visita "privada" ao Taj Mahal com a Primeira Dama Brigitte —, não há dúvidas de que o silêncio é deliberado. E não foi bem recebido pelo público. É comportamento que se esperaria de líderes autoritários, mas não de uma democracia europeia parlamentar civilizada.

Macron tem criticado com frequência o que ele vê como obstáculos na sua pressa para modernizar a França: instituições retrógradas, como sindicatos e fundações associadas, como diz ele, à velha ordem cada vez mais irrelevante. Pelo que já se viu do caso Benalla, a frustração do presidente estende-se também ao respeito a leis vigentes que o atrapalhem. Como outros analistas lembraram, o Eliseu mantém força especial de segurança, o Grupo de Segurança do Presidente da República, semelhante ao Serviço Secreto dos EUA. Benalla jamais fez parte desse grupo de elite, e trabalha para o presidente num cargo que recebe a denominação vaga de "assistente do chefe de gabinete". Nessa condição escapou das consequências de ações que em qualquer circunstância seriam inaceitáveis, porque goza, em outras palavras, de status especial, como membro leal do círculo de relações mais íntimas do presidente.

Esse tipo de tratamento especial é, naturalmente, profundamente antidemocrático. Muitas vezes descartada como retórica esquerdista, essa é, de fato, uma das críticas centrais feitas por oponentes à Macron no último ano - evidenciadas, segundo eles, pela disposição do presidente de aprovar leis controversas por meio de um processo legislativo acelerado para suas propostas de reformas constitucionais, o que reduziria o número de deputados na Assembleia Nacional. Claramente, essas críticas devem ser levadas mais a sério.

Ofuscada por desenvolvimentos ainda mais sombrios nos Estados Unidos e entre os vizinhos europeus, a democracia francesa está enfrentando uma perigosa tempestade própria. Agora, mais do que nunca, é a hora de perguntar: em que ponto a motivação pela eficiência simplesmente se desdobra nas tendências de um homem político forte? Se esmagar o poder dos sindicatos não fosse evidência suficiente de que há algo muito sinistro no projeto político de Emmanuel Macron, então o caso de Benalla deveria ser um alerta.

Colaborador

Cole Stangler é um jornalista baseado em Paris que escreve sobre trabalho e política. Ex-redator do International Business Times e In These Times, ele também publicou trabalhos na VICE, na Nation e no Village Voice.

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