21 de março de 2018

Nem sequer precisaram de piratear o Facebook

A Cambridge Analytica pirateou a nossa informação online para ajudar à eleição de Donald Trump. É um escândalo, mas não é nada de novo.

Branko Marcetic

Jacobin
Mark Zuckerberg ao lado do número de utilizadores do Facebook, Instagram, WhatsApp, Messenger, e Groups, em Março de 2015. Foto de Maurizio Pesce / Wikimedia.

Tradução / O mundo ocidental foi abalado pelas notícias de que a Cambridge Analytica - a empresa de análise de dados liderada por Steve Bannon e financiada pelo bilionário trumpista Robert Mercer - recolheu dados sobre 50 milhões de utilizadores do Facebook para direcionar anúncios a favor da campanha de Trump. A revelação promoveu declarações de “pirataria”, onde a “informação roubada” dos utilizadores foi “sequestrada” pela empresa, que estaria a utilizar dados privados para fins nefastos. “Nós quebrámos o Facebook”, disse o denunciante, ao que se seguiu o jornalista a perguntar se a plataforma teria sido “pirateada”.

A estória da Cambridge Analytica é escandalosa, por uma série de razões. Mas, enquanto nos concentramos nesta estória, deveríamos direcionar a nossa raiva para a forma como o nosso comportamento online é documentando, colecionado e utilizado de forma rotineira para fins comerciais, exigindo e desenvolvendo esforços para finalmente regular as empresas em quem confiámos para serem responsáveis pelo que se tornou um dos aspetos mais íntimos das nossas vidas.

É claro que há elementos específicos ao caso Cambridge Analytica, características que levantam preocupações legais e éticas muito específicas. Por um lado, a empresa violou padrões éticos de forma grosseira ao aceder à informação dos utilizadores, com a ajuda de uma aplicação que disse aos mesmos que a informação seria utilizada para pesquisa académica, ao invés de ser utilizada por uma campanha política. Depois, as potenciais ilegalidades são óbvias: os Estados Unidos da América impedem o emprego de estrangeiros nas campanhas políticas.

Mas a distinção entre as ações da empresa e o “business as usual” é, na verdade, uma diferença de grau, e não de espécie.

O que a Cambridge Analytica fez não foi, de facto, “violação de dados”. A recolha de dados teve lugar em 2014, quando os termos de serviço do Facebook permitiu a aplicações externas a recolha de dados dos amigos de um utilizador, uma ferramenta explorada por milhares de aplicações, e algo que o Facebook permitiu até 2015. Como Lorenzo Franceschi-Bicchierai escreve para a VICE Motherboard, isto significa algo bem pior do que uma simples violação de dados: significa que a escandalosa violação da privacidade dos utilizadores era, até recentemente, apenas a forma como o negócio funcionava.

Mesmo que o Facebook já não permita a recolha e utilização de dados apenas porque um dos nossos “amigos” tenha tido a vontade de jogar ao Farmville, isso não significa que a informação esteja a salvo. Na realidade, o Facebook - e quase todas as outras empresas digitais que existem - continuam a violar a nossa privacidade com o único propósito de nos manipular, apesar de ser com fins comerciais.

Como já deveríamos todos saber (expectavelmente), o volume incomensurável de informação que o Facebook reúne acerca das nossas atividades enquanto usamos a sua plataforma - bem como quando não a utilizamos - é entregue a publicitários, que a utilizam para direcionaram melhor os anúncios e nos venderem produtos. O alcance da informação recolhida é espantoso, incluindo até os locais e lojas onde realizamos compras (se tivermos a sua aplicação móvel instalada), e pode detetar coisas tão laterais quanto o facto de nos inscrevermos ou não em programas de fidelização, ou se adicionamos produtos ao carrinho de compras online, e muito mais.

Mas as empresas também ganham acesso direito à informação do utilizador através do Facebook Connect, uma ferramenta que permite aos utilizadores do Facebook utilizarem o seu perfil para aceder a outros sítios na internet, como por exemplo a publicação de comentários. As empresas utilizam esta ferramenta para construir o perfil dos utilizadores, perfil que documenta tudo, desde o estilo de vida, ao tipo de habitação onde vivem e até a sua personalidade - um tipo de ferramenta idêntico ao perfil psicológico que a Cambridge Analytica utilizou para os seus propósitos.

As preocupações sobre ética e consentimento levantadas pela Cambridge Analytica também são aplicáveis à operação de recolha de dados do próprio Facebook. É óbvio que o Facebook nos permite desligar algumas destas ferramentas, tais como a geo-localização. Mas quantos utilizadores do Facebook estão de facto cientes de que podem fazer isso? E quantos estão sequer conscientes de que estão a ser seguidos em primeiro lugar, ou quão invasivo é o Facebook a recolher informação sobre as suas vidas?

Depois, existem inúmeras formas de recolha de dados que os utilizadores não podem desligar porque fazem parte da própria experiência do Facebook. A sua única escolha é apenas aceitar que as suas atividades serão documentadas e utilizadas, ou simplesmente abandonar o Facebook. É difícil considerar que isto uma definição de consentimento adequada.

E o problema é que não é apenas o Facebook. Isto é o que se passa em todas as empresas digitais, incluindo a Google, a Apple e a Microsoft, que fazem o mesmo tipo de extração de dados invasiva – particularmente a Google, que armazena todas as nossas pesquisas, e colige essa informação com o que reúne no browser, no serviço de e-mail, e noutros serviços como o Google Docs, de forma a construir perfis cada vez mais exatos de cada um de nós. Não estamos a salvo sequer nos nossos browsers, com a maioria dos websites que visitamos a colocarem inúmeros rastreadores que monitorizam o nosso comportamento de navegação na internet, informação utilizada depois por empresas de publicidade (Facebook, Google e Twitter são os líderes neste tipo de rastreamento também). Depois, existem as empresas de dados do consumidor, que absorvem, analisam, e vendem a informação que tornamos pública em sites como o Facebook, Twitter e LinkedIn.

Parte de tudo isto é desenvolvido com fins políticos. Uma empresa criou sítios na internet e utilizou anúncios ligados ao motor de pesquisa da Google com termos específicos de forma a espalhar mensagens inflamatórias durante as eleições do Quénia, no ano passado, provavelmente utilizando informação recolhido nestas plataformas.

A Cambridge Analytica não é sequer o primeiro exemplo de dados serem desenvolvidos especificamente para a política dos EUA. Como já foi amplamente noticiado, foi a campanha de Obama que foi pioneira na extração de dados nas eleições, incluindo esforços para corresponder os hábitos de visualização de milhões de subscritores por cabo com a sua própria lista de eleitores e respostas de sondagens. Carol Davidsen, a diretora de análise de dados na campanha de 2012, vangloriou-se que “éramos capazes de recolher toda informação das redes sociais… dos EUA”, explorando a mesma ausência de regras que a Cambridge Analytica explorou em 2014. A única diferença é que, aos utilizadores que deram à campanha de Obama permissão para utilizar a sua informação pessoal, não lhes foi dito que seria utilizada para investigação académica.

Mas devemos limitar a nossa indignação para quando a nossa informação é utilizada com objetivos políticos? Se somos contra a ideia de que a nossa informação privada seja rastreada e coligida de forma a manipular o nosso comportamento, certamente que o propósito último para o qual estamos a ser manipulado é um assunto secundário.

Se assim é, então a utilização da nossa informação pela vasta maioria de empresas digitais, com o propósito de nos vender produtos, é igualmente escandalosa. A página com as “histórias de sucesso” do Facebook dá relevo a exemplo como, entre outros, farmacêuticas e serviços financeiros. Considerando o histórico destas empresas, quão confortáveis estamos nós com, por exemplo, produtores de droga, empresas de empréstimos rápidos, ou até bancos, a utilizarem o perfil psicológico dos utilizadores destas plataformas para lhes direcionar produtos?

E as implicações da recolha de dados não termina aqui. Neste momento, a utilização responsável da nossa informação está totalmente dependente dos escrúpulos éticos de empresas como o Facebook, Google, e outros, o que não inspira confiança. E se verdadeiramente acreditamos que a Cambridge Analytica foi capaz de “piratear” as eleições de 2016 e colocar Trump na Casa Branca, então é difícil de sobrestimar o perigo que é permitir bancos de dados bastante mais vastos nas mãos de companhias como a Google e o Facebook – ou quem quer que seja no futuro que seja capaz de verdadeiramente piratear os seus sistemas.

Escândalos como este – ou a experiência psicológica secreta que o Facebook aplica aos seus utilizadores – irão continuar a acontecer enquanto a industria digital e a recolha e gestão de informação privada continuar sem regulação. Mas se a ideia de privacidade e liberdade de vigilância corporativa e do Estado significa alguma coisa, então significa ser capaz de utilizar a internet e plataformas como o Facebook sem medo de ter as suas atividades constantemente vigiadas, documentadas, e transformadas em propriedade de alguém para, eventualmente, serem comoditizadas.

Há décadas que as empresas digitais, e outras, a trabalhar no mundo obscuro de recolha de informação digital receberam um passe livre para rastrear a nossa atividade online e utilizar a informação resultante como bem lhes apeteceu, sem restrições. A fúria contra a Cambridge Analytica é encorajadora, mas não deveria ficar por aí. É altura de exigir uma alteração radical na forma como tratamos empresas como o Facebook e a Google.

Sobre o autor

Branko Marcetic is a Jacobin staff writer and the author of Yesterday's Man: The Case Against Joe Biden. He lives in Toronto, Canada.

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