2 de abril de 2022

"História da Guerra Civil" defende olhar de Dziga Vertov sobre o confronto

Recuperado em 2021 depois de ter sido considerado perdido, documentário faz parte do festival É Tudo Verdade

Inácio Araujo

Folha de S.Paulo

Cena de "Entusiasmo", do cineasta soviético Dziga Vertov - Austrian Film Museum/Divulgação

"Ver a maçã como Newton!" escreve Dziga Vertov (1896-1954) em "Start", poema de juventude reproduzido no precioso volume "Cine-Olho: Manifestos, Projetos e Outros Escritos" (editora 34), organizado por Luis Felipe Labaki. A formulação dá conta do deslumbramento de Vertov diante do cinema: o espaço em que se pode ver algo que estava diante de todos os olhos desde os tempos bíblicos e naquilo descobrir algo inteiramente novo.

Essa empreitada começa, na prática, com os kino-trens que documentavam a longa guerra civil ao longo da qual os soviéticos enfrentaram a tentativa de deposição dos czaristas e aliados. Vertov (o livro grafa o nome como Viértov, de acordo com estudos mais recentes da língua russa), desde sempre adepto do "natural" (o documentário) contra o "posado" (cinema de ficção), colocou já em 1917 como prioridade trabalhar o cinema como propaganda do novo regime.

Ele e seus cinegrafistas partiram para o front (os diversos frontes, na verdade) em que se desenrolaram os combates. É dessa atividade que resulta "História da Guerra Civil", síntese das atividades filmadas entre 1918 e 1921 para apresentação no 3º Congresso da Internacional Comunista, em junho de 1921.

Recuperado em 2021 depois de ter sido considerado perdido, o documentário de Vertov cobre o desenrolar da Guerra Civil na Rússia (1918-1920) em 12 partes, ordenadas cronologicamente. O filme é um dos destaques da 27ª edição do É Tudo Verdade - Festival Internacional de Documentários.

É difícil ter uma ideia de como essas imagens podem ter sido recebidas pelos congressistas e espectadores da época. A rigor, Vertov passou despercebido nesta parte do mundo até pelo menos o final dos anos 1960, quando Jean-Luc Godard integrou o "Grupo Dziga Vertov" e encampou as ideias anti-representação do cineasta russo.

No entanto, o desejo de registrar e mostrar, de olhar um mundo original que então lutava para existir, está presente nessa "História". No início, a ênfase vai para o potencial destrutivo do inimigo: sabotagens contra pontes e equipamentos inutilizados por seu poder de fogo, em contraposição aos esforços das forças revolucionárias para recolocá-los em condições.

A documentação dos três anos varia desde a exposição de material bélico e desfiles oficiais até momentos mais detidos, como, por exemplo, a abertura de uma vala comum para combatentes mortos, os soldados aprendendo a dominar os "monstros" ingleses (tanques de guerra provavelmente capturados ao inimigo), o entorno do julgamento de Anton Denikin —ex-general do império integrado às forças soviéticas, acusado de desprezar os comissários do partido e partir para uma investida temerária—, ou a casa onde foi morto Kornilov, importante chefe militar das forças inimigas.

Os dados parecem mais fartos à medida que a guerra se aproxima de seu final: a tomada de Baku é vista de diversos ângulos, a revolta do Kronstadt é esmagada e já começa a reconstrução do país, em particular a atividade agrícola.

Torna-se claro para o espectador que assiste ao filme um século depois que o conjunto deve ter impressionado e até mesmo comovido as plateias, tanto do congresso quanto as menos oficiais daquele momento. Tratava-se de, ali, perceber aquela documentação fragmentária com o mesmo olhar único de Newton para a maçã —um mundo novo nascia das cinzas daquele enfrentamento feroz não apenas contra os adeptos do czarismo, afinal, o "velho mundo" empenhava-se em sustentar os "brancos", adversários dos "vermelhos" nessa história.

Ao mesmo tempo, acumulam-se dúvidas sobre a natureza do filme. Pode-se entender que Vertov tenha se detido mais demoradamente na atividade de líderes intermediários, mas certas ausências suscitam dúvidas sobre mexidas posteriores na obra.

Zinoviev aparece fugazmente, e ele era um dos líderes políticos mais importantes do partido bolchevique. A aparição de Trótski, então, é meteórica. Existe um plano dele discursando, logo no início, embora sem menção a seu nome, mas o mais estranho é mais adiante, quando o chefe do Exército Vermelho faz um discurso e pode ser visto em plano geral, a distância, ou apanhado de trás, a um quarto de perfil. Quando ele se volta para a câmera, no entanto, um close se insinua, mas de imediato é cortado. Será que no congresso de 1921 isso seria bem recebido?

Essas particularidades não desmerecem o filme. São sombras que dizem respeito menos ​à ação de agitprop a que se dedicou Vertov e ao valor do trabalho de documentação do que ao desenrolar do próprio regime soviético. Sombras que expõem outros aspectos da maçã, ou antes, que levantam questões sobre o desenrolar do regime soviético após a morte de Lênin, em 1924, vão muito além do que o cineasta podia prever em 1921.

A HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL

Quando Rússia, 1921

Direção Dziga Vertov

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