18 de abril de 2022

China pode ser a grande vencedora da guerra na Ucrânia

Walden Bello é um dos principais críticos mundiais da globalização corporativa. Em entrevista à Jacobin, ele explica por que a guerra da Rússia é um choque para o sistema internacional - e por que é provável que acelere a ascensão da China.

Walden Bello

Jacobin

Um homem examina os danos após um ataque de artilharia russa atingir um prédio residencial em Kharkiv, Ucrânia, em 18 de abril de 2022. (Chris McGrath / Getty Images)

Tradução / A guerra na Ucrânia é uma crise geopolítica com repercussões verdadeiramente globais – com algumas das mais severas sentidas no Sul Global. Muitos no Oriente Médio e na África enfrentam grandes déficits no fornecimento de alimentos.

O Egito, por exemplo, importou 70% de seu trigo da Rússia e da Ucrânia em 2021 e agora está recebendo ajuda de estados vizinhos com medo de uma rebelião popular por escassez de alimentos. O Sri Lanka acaba de anunciar um calote em suas dívidas externas enquanto busca um acordo com o Fundo Monetário Internacional, e os protestos contra a escassez de alimentos continuam crescendo.

Esses são apenas os efeitos indiretos mais imediatos. No longo prazo, as relações geopolíticas estão sendo realinhadas permanentemente. Com a Rússia cortada da zona do dólar por sanções ocidentais, sua dependência econômica da superpotência mundial em ascensão, a China, está crescendo. Os Estados Unidos estão buscando aproveitar a crise na Ucrânia para ampliar sua coalizão para conter Pequim.

Poucos são mais capazes de explicar as repercussões da guerra no Sul Global do que o renomado estudioso e ativista filipino Walden Bello. Atualmente lecionando na Universidade de Binghamton, Bello é autor de mais de vinte livros, sendo os mais recentes Counterrevolution: The Global Rise of the Far Right e Paper Dragons: China and the Next Crash.

Fundador do think tank ativista Focus on the Global South, Bello tem sido há décadas um dos principais críticos mundiais do imperialismo e da globalização. Ele foi membro do Congresso das Filipinas até 2015 e atualmente está concorrendo a vice-presidente das Filipinas em uma eleição marcada para 9 de maio. Ele falou com Benjamin Wray para Jacobin.

Ben Wray

A guerra na Ucrânia está em andamento há quase dois meses. Qual é a sua avaliação da situação e para onde é provável que vá a partir daqui? E o que você acha das reações à guerra no Sul Global em particular?

Walden Bello

Em primeiro lugar, é realmente um desenvolvimento trágico. Concordo plenamente com a Assembleia Geral da ONU em condenar a invasão de Vladimir Putin e pedir um acordo pacífico por meio de negociações para acabar com a invasão. Neste ponto, a Rússia e a Ucrânia parecem ter chegado a um impasse, o que é mais uma razão para que as negociações realmente comecem a sério agora. Até agora, não acho que as negociações tenham sido levadas a sério pelo lado russo. É hora de interromper a invasão e de a Rússia retirar suas tropas da Ucrânia.

Acho que a maioria dos países do Sul Global condenou a invasão da Rússia, mas hesitou em ir além disso, neste momento, e ser arrastado para um bloco liderado pelos EUA-OTAN. Eu acho que isso é um reconhecimento de três coisas. Uma é que foi em parte a expansão da OTAN até as fronteiras da Rússia que criou as condições para o contra-ataque de Putin. Esse esforço para atrair países na fronteira com a Rússia para a OTAN vem acontecendo desde 1994.

O Ocidente, e em particular os Estados Unidos, esteve envolvido na mudança de regime na Ucrânia, especialmente com a revolta Maidan em 2014, muito ligada a grupos fascistas. E agora isso está sendo usado pelos Estados Unidos para um esforço real para recuperar sua primazia como hegemon global, buscando resgatar sua reputação esfarrapada após sua derrota e retirada do Afeganistão, que também foi uma derrota da OTAN.

Portanto, houve uma grande hesitação no Sul Global em entrar na onda dos EUA. Acho que o grande impulso do Sul Global é apenas garantir que as negociações para a paz comecem. Já o que parece ser negociável é a neutralidade por parte da Ucrânia e garantir à Rússia que não participará de movimentos liderados pela OTAN contra a Rússia. Minha sensação neste momento é que a neutralidade na Ucrânia e em vários outros países na fronteira da Rússia pode ser a melhor solução.

Este é o momento de realmente pressionar pela paz, porque há um impasse. Acho que Putin precisa de uma oportunidade para salvar a cara, e acho que os ucranianos querem mostrar ao mundo que resistiram com sucesso à invasão. Portanto, o primeiro passo é um cessar-fogo. Então haverá negociações difíceis sobre a região de Donbas, onde há uma grande população de língua russa, mas acho que pode haver uma solução política para essa questão, não é insolúvel. Pode haver uma solução onde essas áreas continuem a fazer parte da Ucrânia, mas ao mesmo tempo os direitos são concedidos à grande minoria russa e as preocupações de segurança da Rússia também são satisfeitas.

Ben Wray

A duplicidade de critérios nas respostas ocidentais à guerra é algo para o qual alguns da esquerda no Ocidente vêm chamando a atenção. O fato de a Rússia ser sancionada enquanto a guerra saudita no Iêmen é apoiada; que a resistência armada ucraniana é glorificada enquanto a resistência armada palestina à ocupação é considerada terrorismo. Presumivelmente, aqueles que assistem do Sul Global estão cientes dessas hipocrisias.

Walden Bello

Sim, acho que essa é uma das razões pelas quais os países do Sul Global estão mantendo distância dos esforços dos EUA para arrastá-los para o lado de Washington. Definitivamente os padrões duplos em relação à Ucrânia versus a Guerra do Iraque, a guerra civil na Síria, a longa guerra Palestina-Israel e a guerra genocida saudita no Iêmen, tudo isso é muito claro no Sul Global e há uma consciência da verdadeiro registro histórico. Não seremos enganados.

É por isso que tentar criar uma aliança anti-russa unificada não vai funcionar. Todo mundo sabe que existem padrões duplos claros e os Estados Unidos estão realmente usando a crise ucraniana para reafirmar sua hegemonia. Acho que Washington esperava que de alguma forma pudesse reconstruir o passado e criar amnésia sobre o que aconteceu no Oriente Médio com suas guerras lá, mas isso não funcionou.

Ben Wray

A reação da China à guerra foi fortemente criticada no Ocidente. Foi acusada de fornecer uma tábua de salvação econômica e política para Putin. No início da guerra, houve até rumores de que talvez a China veja a invasão da Rússia como um precedente para a China ocupar Taiwan. O que você acha disso?

Walden Bello

A China tem sido muito cuidadosa. Não condenou a Rússia, mas ao mesmo tempo não fez nenhum movimento político, militar ou econômico que indique que está se movendo substancialmente para ficar do lado da Rússia. Acho que até as autoridades e analistas econômicos dos EUA estão achando muito difícil encontrar evidências de que a China interfira economicamente do lado da Rússia. Teríamos ouvido isso sendo alardeado agora, se fosse o caso. Diplomaticamente, a China aliou-se à Rússia, mas tem sido muito cuidadosa em não legitimar a invasão russa.

A situação com Taiwan tem uma grande diferença. Na Ucrânia, não houve tratado entre os Estados Unidos e a Ucrânia, ou a Ucrânia e qualquer outro país. Então esse tipo de situação não existia da mesma forma que existe em Taiwan. Os Estados Unidos estão ligados a Taiwan por meio de vários grandes tratados econômicos, políticos e militares. Seria tolice a China tentar invadir Taiwan, porque isso provocaria uma resposta militar dos EUA, e os EUA poderiam apontar os tratados em vigor desde o início da década de 1950 para justificar tal resposta.

A China seria louca em sacrificar os ganhos econômicos e diplomáticos que obteve com os países do Sul Global ao invadir Taiwan. Então, acho que, neste momento, a China está satisfeita com a política de Uma China, e os Estados Unidos, de fato, também apoiam essa política, que reconhece o governo de Pequim como o único governo legítimo da China. A China está satisfeita com o status quo, mas, de forma propagandística, tem que reafirmar continuamente que Taiwan é parte da China; seria um grande revés diplomático para Pequim se de repente ficasse quieta sobre essa questão.

Então eu diria que uma invasão de Taiwan não está nos planos, e a China não seria louca de fazer isso. O Mar da China Meridional está repleto de poder americano, e os estreitos de Taiwan são avenidas para navios americanos. Estamos falando da marinha mais poderosa do mundo, concentrada em conter a China no Mar do Sul da China e no Estreito de Taiwan.

Essa é uma força militar que a China não ousaria tentar provocar, e de fato não o fez. Os gastos de defesa da China nos últimos anos foram realmente muito baixos. Os EUA consistentemente, nos últimos anos, gastaram três vezes mais do que os chineses estão gastando. Se os chineses estivessem realmente determinados a igualar os EUA militarmente, você teria visto um aumento muito mais significativo em seus gastos militares. Se você olhar para os porta-aviões - realmente essenciais se você tiver um conflito naval - a China tem apenas três, e eles são antigos designs da era soviética. Então você tem a tecnologia de aeronaves dos anos 1970 contra o USS Gerald R. Ford de última geração - uma completa incompatibilidade.

Ben Wray

Alguns comentaristas argumentam que as sanções ocidentais contra a Rússia estão acelerando a desglobalização e levando à divisão da economia mundial em dois campos, um baseado em Pequim e outro em Washington, em uma nova situação do tipo Guerra Fria. Qual é a sua perspectiva sobre isso?

Walden Bello

Acho que Washington quer criar uma situação em que as sanções financeiras e econômicas contra a Rússia realmente prejudiquem a economia russa, e acho que está sendo visto que são uma faca de dois gumes, porque também estão prejudicando o Ocidente. A Europa precisa ter muito cuidado, porque depende muito do suprimento de energia russo e não pode contar com o suprimento dos EUA, especialmente quando chega o inverno. Duvido muito que as linhas de fornecimento de energia entre a Rússia e a Europa sejam cortadas em grande medida.

Acho que as sanções vão prejudicar a Rússia, mas provavelmente não tanto quanto o Ocidente gostaria. Comparada a países como o Iraque ou mesmo a África do Sul do apartheid, a Rússia é uma economia muito maior e tem muitos laços importantes com o Sul Global economicamente. Portanto, esses precedentes não são necessariamente bons, porque a Rússia é um ator muito maior. E pode ter um efeito contraproducente, porque até a imprensa ocidental está dizendo que esse esforço para isolar economicamente a Rússia está recebendo uma reação lá, no sentido de alimentar o nacionalismo em apoio a Putin. É claro que houve uma corajosa resistência antiguerra contra Putin na Rússia, mas acho que muitos russos estão presos nesse frenesi nacionalista.

Minha sensação é que essas sanções são um tipo de aviso, e o aviso é realmente para a China. A mensagem é: “Se você entrar em uma luta séria com o Ocidente, é isso que você enfrentará”. A China sabe disso, e é por isso que não será provocada a nenhum tipo de ação precipitada, neste momento, que desencadearia esse tipo de sanções.

A Rússia é muito mais vulnerável a sanções econômicas e financeiras do que a China, porque Pequim é muito mais sofisticada em termos de todos os laços que desenvolveu economicamente com o Sul Global. Além disso, a economia dos EUA é muito dependente da capacidade de produção construída na China por corporações transnacionais, que é então exportada para os Estados Unidos. Portanto, as sanções não funcionariam contra a China no mesmo grau que funcionam contra a Rússia.

Acho que o grande vencedor em toda essa situação pode ser a China. Está relativamente bem isolada das consequências da guerra na Ucrânia neste momento, tem seus próprios problemas em termos de tentar impedir a propagação do COVID, mas parece que, em termos políticos, econômicos e de política externa, está saindo disso muito melhor do que os Estados Unidos. Os Estados Unidos e a Europa estão se exaurindo em seu esforço para isolar Putin, e acho que a China está se saindo muito melhor, não sendo um dos principais participantes desse conflito.

Ben Wray

A guerra acentuou a crise inflacionária global. O Oriente Médio e a África, em particular, importam muito trigo da Ucrânia e da Rússia. Gana elevou suas taxas de juros para 17% para tentar reduzir a inflação. Qual é a sua análise da situação econômica no Sul Global?

Walden Bello

Por várias razões, a inflação está em alta, tanto no Norte como no Sul. As pressões inflacionárias já estavam presentes, devido aos problemas emergentes da pandemia do COVID-19. Muitas das pressões inflacionárias vieram de deslocamentos na cadeia de suprimentos corporativa global, e acho que uma das lições é sobre a vulnerabilidade dessas cadeias de suprimentos, não apenas à guerra, mas também a pragas e condições climáticas extremas. Um dos resultados que espero é que muitos países se afastem dessa dependência das cadeias globais de suprimentos e comecem a olhar mais para os acordos de cooperação regional.

A inflação foi acelerada pela guerra, especialmente em relação ao trigo e ao petróleo. Qual é o efeito do controle de monopólio pelos países produtores de petróleo e qual é o efeito da guerra? Isso é muito difícil de desagregar. Porque mesmo quando a guerra acabar, os países produtores de petróleo vão querer que o preço permaneça muito alto. Duvido que você veja uma queda nos preços como no início do COVID, quando caíram mais de 50% em muitos casos. Eu acho que eles vão se estabilizar em um nível mais baixo do que agora, mas certamente não vão cair drasticamente. E se eles não caírem significativamente, isso provavelmente significará que os preços das commodities também permanecerão altos. E isso também é complicado pelo problema da cadeia de suprimentos global.

No entanto, um fator cujo impacto na inflação foi realmente exagerado é o aumento dos gastos previdenciários do governo devido à crise da pandemia. Houve um grande déficit de gastos para sustentar os padrões de vida, e agora alguns economistas estão dizendo que essa é a causa da inflação - não acho que isso seja verdade. Acho que a causa básica tem sido os problemas nas cadeias de suprimentos globais, o aumento do preço do petróleo e os efeitos indiretos nos preços das commodities.

Ben Wray

Parece que estamos vendo um ressurgimento do apoio à OTAN e ao aumento dos gastos militares no Ocidente. Como anti-imperialista, isso o preocupa?

Walden Bello

Nos Estados Unidos, muito disso está relacionado a desenvolvimentos domésticos. Joe Biden está usando a Ucrânia e sua atitude em relação à China para resolver as condições de guerra civil informal que agora existem nos Estados Unidos. Você tem um país muito polarizado internamente, então ser capaz de projetar um inimigo externo é uma das maneiras pelas quais você pode neutralizar a base de Donald Trump e obter alguma aparência de cooperação nacional. Eu não acho que isso realmente vá funcionar, mas eles continuarão a pressionar essa agenda junto com maiores gastos militares. Já está chegando a mais de US$ 800 bilhões este ano, e é provável que aumente ainda mais. O que isso sublinha é a importância do movimento antiguerra para realmente se revitalizar e para a ala esquerda do Partido Democrata tomar uma postura antimilitar muito mais forte e parar esse nacionalismo frenético que Biden está tentando criar.

Na Europa, certamente há uma mudança na direção do militarismo, especialmente entre as forças liberais e conservadoras. Vemos Boris Johnson indo para uma sessão de fotos com Volodymyr Zelensky, e essa guerra foi uma grande oportunidade para ele, dados seus problemas domésticos reais. Quanto tempo esse momento nacionalista vai durar, eu não sei, mas acho que as pessoas no Reino Unido são menos ingênuas do que Boris Johnson pensa.

Quanto à Europa continental, existe uma grande dependência da energia russa, que continuará a ser um problema. A Alemanha sob uma liderança social-democrata continua a ser flexível com Washington, mas não acho que seja a mesma de quando Angela Merkel estava lá, em termos de uma voz europeia pró-EUA. Na França, não sabemos o que vai acontecer: o Rally Nacional com Marine Le Pen pode ganhar o segundo turno das eleições presidenciais e, como todos sabemos, a extrema-direita europeia é mais aliada de Putin. Viktor Orbán na Hungria, outra figura de extrema-direita que acaba de ser reeleita, também está mais alinhado com a Rússia.

Então, sim, parece haver um movimento para aumentar os gastos militares e em direção à OTAN. Mas a situação doméstica em muitos desses países é tão fluida que não se pode dizer que isso resultará em uma forte aliança entre a UE, o Reino Unido e os Estados Unidos. O resultado a curto prazo pode ser o fortalecimento da OTAN, mas, a médio e longo prazo, podemos ver um enfraquecimento da aliança ocidental.

Acho que essa é a única coisa que está sendo perdida pela maioria dos analistas quando analisam a situação geopolítica dos Estados Unidos e da Europa; você não pode apenas olhar para a política externa e não trazer as lutas políticas domésticas para sua análise. Minha sensação é que esse é o fator que realmente temos que olhar se quisermos ver a direção de longo prazo do Ocidente neste novo cenário internacional.

Sobre o entrevistado

Walden Bello é um acadêmico e ativista de renome mundial que atualmente leciona na Universidade de Binghamton. Seus últimos livros são CounterRevolution: The Global Rise of the Far Right e Paper Dragons: China and the Next Crash.

Sobre o entrevistador

Ben Wray é um jornalista freelance baseado na Escócia e coordenador do Gig Economy Project.

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