14 de abril de 2022

Os novos progressismos latino-americanos

O campo progressista na América Latina é muito diferente daquele que formou a "Maré Rosa" no início do século. Perdeu o cunho integracionista que tinha e, sem um líder capaz de coesão política, está mais inclinado a gerir o que existe do que a propor qualquer mudança fundamental.

Valentino Cernaz


Hugo Chávez, Néstor Kirchner e Lula foram os principais promotores da integração regional latino-americana nos anos da "Maré Rosa". (Foto: Agência Brasil / Ricardo Stuckert)

O ano de 2021 teve um saldo positivo para a esquerda latino-americana em termos eleitorais. Apesar do revés nas eleições presidenciais no Equador com a derrota de Andrés Arauz no segundo turno, as vitórias eleitorais de Pedro Castillo no Peru, Xiomara Castro em Honduras e Gabriel Boric no Chile abriram caminho para a ideia de uma nova etapa de governos progressistas na América Latina, sobre a qual vinham sendo geradas hipóteses desde os triunfos de Andrés Manuel López Obrador em 2018, Alberto Fernández em 2019 e Luis Arce em 2020.

Na mesma linha, Gustavo Petro na Colômbia e Lula da Silva no Brasil estão se preparando para disputar as próximas eleições presidenciais em seus países. As pesquisas indicam que ambos os candidatos têm sólidas possibilidades de chegar ao governo, o que poderia aprofundar esse retorno dos progressistas ao poder político nos diferentes países da região.

No entanto, por múltiplas razões, as circunstâncias atuais são muito diferentes daquelas vividas pelos governos da chamada “Maré Rosa”, bem como diferenças marcantes nas formas de gestão. Em geral, o que se observa agora são administrações com maior grau de moderação e menor grau de intensidade política, com lideranças mais administrativas e menos carismáticas. A comparação entre Evo Morales e Luis Arce é provavelmente a mais clara neste último ponto.

Mas, além disso, a questão da integração, fundamental nos primeiros anos deste século, desempenha hoje um papel muito mais secundário. Os progressistas latino-americanos hoje carecem de uma liderança que una e tome a iniciativa, como Hugo Chávez fez na época, acompanhado de outros presidentes como Néstor Kirchner ou Lula da Silva. Até sua morte em 2013, o líder bolivariano soube promover as relações entre os países latino-americanos por meio de diferentes mecanismos, organizações e agências —como a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) ou a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA). Ele também promoveu a criação do Banco do Sul e, em 2005, liderou a rejeição da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) que os Estados Unidos queriam para o continente.

Atualmente, embora os resultados eleitorais voltem a ser favoráveis, as coisas são muito diferentes. Os mecanismos de integração que estavam em ascensão há alguns anos estão praticamente desintegrados ou caíram em desuso, como a UNASUL. As economias latino-americanas enfrentam dificuldades que, pelo menos em parte, foram superadas, e a geopolítica regional apresenta contrastes significativos em relação à etapa anterior.

O atual presidente da Venezuela é Nicolás Maduro, de quem praticamente todos os presidentes latino-americanos procuram se distanciar. O Brasil de hoje é o da extrema-direita Bolsonaro e, mesmo que Lula vença novamente, provavelmente concentraria suas energias na recuperação das instituições e na busca da reconciliação de seu povo. Na Argentina não há Néstor Kirchner nem Cristina Fernández, mas Alberto Fernández, que embora tenha sabido ter um compromisso regional bem sucedido com a questão boliviana —dando asilo a Evo Morales após o golpe de Estado e manifestando seu apoio a Luis Arce nas eleições— , não consegue canalizar o curso de uma situação econômica convulsionada, à qual agora se soma também uma crise política dentro de sua coalizão de governo.

No Peru, Pedro Castillo tem que lidar constantemente com o perigo de ser mais um presidente fugaz devorado pelo Congresso. No Chile de Boric ainda está tudo para ser visto, mas em princípio estamos falando de um presidente que deve estar à altura das grandes expectativas que abriu o período de intensa mobilização dos últimos anos. E embora López Obrador pareça ter assuntos internos mais ordenados, ele também teve que fazer frente a dificuldades.

As dificuldades e desvios dos projetos políticos da Venezuela e da Nicarágua representam um empecilho para o campo nacional-popular da região. Não há uma posição comum sobre este ponto por parte dos outros governos, mas sim um amplo leque: o da Bolívia mantém um vínculo, o da Argentina é distante e muitas vezes assume uma posição contraditória nos organismos internacionais, o do Chile se desmarca, o do Peru muitas vezes repete discursos da direita regional, etc. Sem dúvida, é lógico pensar que essas diferenças respondem mais à imagem que esses presidentes procuram colocar diante da opinião pública de seus respectivos países do que às diferenças ideológicas ou diagnósticas que possam ter sobre a situação das nações governadas por Maduro e Ortega. No entanto, essa falta de acordo os impede de ter uma ideia clara do que fariam com eles diante, por exemplo, de uma reconstrução hipotética da UNASUL.

Em um mundo multipolar, atormentado por dificuldades, convulsionado por um conflito bélico em território europeu e com as disputas políticas e econômicas que China e Estados Unidos vêm realizando há anos, a América Latina precisa de integração para se posicionar de forma mais robusta contra as potências, negociando e explorando suas próprias virtudes.

Atualmente, porém, os progressistas da região não têm um projeto —nem uma liderança clara para liderá-lo— que possa responder a esse desafio, e não há um horizonte de esperança imediato neste sentido.

De qualquer forma, o retumbante fracasso do Grupo Lima mostra que a onda conservadora também teve suas dificuldades em fazer prevalecer suas iniciativas para a região. Para o campo nacional-popular, além das questões já mencionadas, certamente tem a ver com um momento político: governos progressistas que, em sua maioria, chegam ao poder com iniciativas de menor profundidade e sem uma visão de futuro prolongada como a que teve durante os primeiros anos do século. Nisso também se vê que a situação na América Latina, longe de refletir uma hegemonia consolidada, está abertamente em disputa.

Sobre o autor

Valentino Cernaz é estudante de sociologia na Universidade de Buenos Aires.

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