2 de junho de 2021

O neoliberalismo sempre foi uma ameaça à democracia

Mais do que um conjunto de políticas de livre mercado, o neoliberalismo sempre buscou alterar o equilíbrio de poder da sociedade em favor dos patrões. Seu ataque à democracia e o enfraquecimento dos sindicatos estão agora favorecendo diretamente a extrema direita.

Aldo Madariaga


O primeiro encontro da Sociedade Mont Pelerin, em 1947, com os fundadores, Friedrich Hayek e Ludwig von Mises. (Sociedade Mont Pelerin)

O neoliberalismo está conosco há mais de três quartos de século. Desde os esforços da Sociedade Mont Pelerin para reinventar o liberalismo tradicional na década de 1940, o neoliberalismo assumiu diversas formas, seja a Escola de Chicago e o ordoliberalismo alemão, o golpe chileno liderado por Pinochet em 1973, as revoluções Thatcher-Reagan, os ajustes estruturais impulsionados pelo FMI e pelo Banco Mundial, ou a Terceira Via Europeia.

O tema do neoliberalismo produziu uma verdadeira pequena indústria de análises, que só se expandiu na última década, à medida que especialistas tentam dar sentido a um termo cada vez mais contestado e escorregadio. Muitos dos que escrevem sobre o neoliberalismo agora exaltam o que acreditam ser sua última valsa no cenário mundial: em meio às transformações provocadas pela crise financeira de 2008-2009, à ascensão de governos autoritários protecionistas e à necessidade de soluções de políticas públicas em larga escala na era da COVID-19, muitos proclamaram que o neoliberalismo está de fato em seus últimos momentos.

Mas será que é mesmo assim? Ou o neoliberalismo está apenas se arrastando — em direção a formas ainda mais virulentas?

Como argumentei em outra ocasião, o neoliberalismo não está morrendo, mas sim passando por transformações importantes que o tornam especialmente perigoso para a democracia atual. De fato, é essa ameaça à democracia que é a chave para compreender a resiliência do neoliberalismo: sua capacidade de resistir a crises e sistemas rivais não é tanto consequência do apelo duradouro do livre mercado e da competição econômica. Em vez disso, o neoliberalismo sobreviveu alterando os próprios fundamentos de nossas instituições e organizações democráticas.

Ao fazê-lo, o neoliberalismo aliou-se a forças — ditadores e tecnocratas — igualmente desdenhosas da democracia. Esse aspecto central do projeto neoliberal é o que prepara o cenário para uma nova geração de líderes da direita radical em todo o mundo. Hoje, há uma aliança emergente entre neoliberais e o grande capital, contando com o apoio de nacionalistas, conservadores e populistas autoritários. É essa aliança que pode muito bem representar uma das maiores ameaças à política democrática.

O neoliberalismo é um projeto político

Para muitos, o neoliberalismo é um conjunto de ideias econômicas que apregoa a superioridade dos mercados como forma de coordenação social entre indivíduos. Lido dessa forma, o pensamento é que o neoliberalismo é capaz de seduzir, convencer e, em última análise, prevalecer sobre ideias rivais, como o planejamento estatal. Para aqueles que concordam com essa definição de neoliberalismo, as sugestões de que o Estado está “retornando” são tomadas como prova de que o pêndulo está oscilando de volta para um consenso social que rejeita o neoliberalismo.

É um projeto político que visa não apenas reduzir o poder do Estado, mas, mais concretamente, minar os esforços de qualquer ator coletivo.

O neoliberalismo é, portanto, comumente entendido como a ideologia que coloca os mercados acima dos Estados e os indivíduos acima das sociedades. No entanto, décadas de pesquisa comprovaram o que Philip Mirowski chama de “dupla verdade” por trás da doutrina neoliberal: embora oferecessem liberdade de escolha e libertação das regulamentações estatais opressivas, os neoliberais sempre estiveram cientes da necessidade de um Estado forte, muitas vezes coercitivo.

Isso significou duas coisas. Primeiro, os neoliberais estavam menos interessados ​​nos mercados em si (e ainda menos na competição de mercado) do que no que poderia ser alcançado por meio deles. Embora os neoliberais geralmente visem eliminar qualquer intervenção estatal que interfira nas decisões livres da iniciativa privada, eles não se opõem a todas as formas de intervenção estatal. Os neoliberais estão, é claro, menos preocupados com formas de intervenção estatal que façam uma redistribuição em favor de grupos empresariais centrais (por meio de isenções fiscais generosas ou resgates massivos durante crises financeiras) do que com o tipo de intervenção que exige medidas redistributivas para a classe trabalhadora. Da mesma forma, os neoliberais prometem estender os mercados e a lógica de mercado a todas as formas de vida social e política, mas estão pouco preocupados se isso acabar levando à concorrência desleal ou ao monopólio absoluto.

Em segundo lugar, agora é bem compreendido que os neoliberais precisam de Estados fortes para impor — e fazer cumprir — seus livres mercados, mesmo que isso assuma a forma de medidas estatais totalmente repressivas.

O neoliberalismo, portanto, é muito mais do que apenas um conjunto de ideias sobre livre mercado. É um projeto político que visa não apenas reduzir o poder do Estado, mas, mais concretamente, minar os esforços de qualquer ator coletivo — sejam Estados, sindicatos, partidos políticos — para interferir nas decisões de empresas privadas. Esse projeto de alterar o equilíbrio de poder é a chave para sua resiliência.

Neoliberalismo versus democracia

Para compreender a relação entre neoliberalismo e democracia, precisamos analisar o antigo medo dos neoliberais da tirania da maioria sem propriedade e da possibilidade de que suas ambições democráticas possam interferir na liberdade econômica. James Buchanan, um dos expoentes mais reverenciados da tradição neoliberal, explicou isso com clareza em seu famoso livro, Democracy in Deficit [Democracia em Déficit], escrito em coautoria.

O ataque do neoliberalismo às organizações sindicais e aos direitos de negociação coletiva está bem documentado. Menos ainda é a forma como nossas instituições políticas foram concebidas para bloquear qualquer oposição política crível.

Ali, seu foco não estava na livre concorrência, no funcionamento adequado do mercado ou mesmo na crítica à intervenção estatal. Estava nas “instituições políticas por meio das quais a política econômica deve ser implementada”. Aplicando essa lógica, Jaime Guzmán, o cérebro por trás da arquitetura política e econômica chilena herdada por Pinochet, argumentou que as instituições políticas deveriam ser organizadas de forma que “se os adversários governassem, [fossem] obrigados a tomar ações não muito diferentes daquelas que se desejaria”. Como explicou Walter Lippmann, o avô da Sociedade Mont Pelerin, “o cerne da questão não é se a maioria deve governar, mas que tipo de maioria deve governar”.

O neoliberalismo restringe a política democrática ao alterar o equilíbrio de poder entre seus apoiadores e oponentes, com o objetivo final de restringir o espaço disponível para a política e as políticas públicas. A partir de um estudo sobre neoliberalismo e democracia na América Latina e no Leste Europeu, podemos identificar três mecanismos concretos em ação.

O primeiro envolve a criação de uma nova classe empresarial, privatizando antigos ativos estatais e permitindo novas oportunidades de negócios nos setores agora desregulamentados. Há muito tempo se defende que a lógica do desmantelamento do aparato estatal visava maximizar a eficiência e o crescimento. No entanto, em países onde o neoliberalismo prosperou, a privatização e a desregulamentação direcionadas visavam principalmente criar ou fortalecer as empresas com maior probabilidade de apoiar o projeto neoliberal mais amplo.

Este foi especialmente o caso no setor financeiro, entre empresas exportadoras competitivas e multinacionais. Empresas com interesses na perpetuidade do neoliberalismo usaram a vantagem estrutural que lhes foi concedida para resistir a tentativas reformistas, que vão desde a tributação, política industrial e medidas sociais  até proteções ambientais e trabalhistas.

Em segundo lugar, o neoliberalismo sobreviveu ao impedir que forças políticas antineoliberais se firmassem. O ataque do neoliberalismo às organizações sindicais e aos direitos de negociação coletiva está bem documentado. Mas o que passa despercebido é a forma como nossas instituições políticas foram projetadas para bloquear qualquer oposição política crível. Isso inclui o aumento do poder do Executivo para contornar parlamentos mais representativos, a institucionalização de atores de veto não eleitos capazes de anular decisões da maioria, e muito mais. As táticas mais bem-sucedidas foram aquelas que afetam os padrões de representação política, como a engenharia eleitoral e a manipulação eleitoral.

Foi o caso do Chile, onde, em 1989, o sistema eleitoral e as magnitudes distritais (o número de representantes eleitos em um determinado distrito) foram projetados para dar à direita metade de todos os representantes no parlamento (em comparação com o habitual terço). Foi essa medida que manteve a esquerda sem representação por vinte anos, ao mesmo tempo em que empurrou a esquerda mais moderada para uma aliança de longo prazo com forças centristas que diluíram suas posições, de outra forma reformistas. Juntamente com os limiares supramajoritários necessários para mudar características básicas das instituições chilenas projetadas por Pinochet, essas ações foram fundamentais para impedir qualquer reforma significativa durante quatro governos consecutivos de centro-esquerda nas décadas de 1990 e 2000.

Em outros casos, os esforços para limitar a representação incluíram a privação total de direitos de grandes parcelas da população. Foi o caso da Estônia, onde o neoliberalismo encontrou causa comum com as expressões mais radicais do movimento nacionalista de independência contra a antiga União Soviética. Os neoliberais exploraram com sucesso os temores do povo estoniano de que a grande população russa no país (cerca de 40% em 1989) impediria a independência para deixar os russos étnicos sem direito a voto. E fizeram isso ao mesmo tempo em que impulsionavam um dos projetos neoliberais de maior alcance implementados na Europa Oriental.

Como consequência, os mais prejudicados por essas reformas não tinham direito ao voto ou votavam por motivos nacionalistas, e não socioeconômicos. Isso acabou impedindo a formação de forças social-democratas capazes de, pelo menos, moderar o ataque neoliberal, como ocorreu na maioria dos outros países do Leste Europeu.

Por fim, os neoliberais isolaram os formuladores de políticas das demandas populares por meio do que às vezes é chamado de “bloqueio constitucionalizado”, o que significa que aspectos-chave da política econômica de um país são mantidos fora do alcance da deliberação democrática, para que não sejam, nas palavras de Buchanan e Richard E. Wagner, “deixados à deriva no mar da política democrática”. Bancos centrais independentes e regras de política fiscal, por exemplo, são instrumentos-chave para manter a política monetária e fiscal longe da deliberação democrática. Ancorar a inflação como o principal objetivo macroeconômico reduziu a capacidade dos bancos centrais de usar a política monetária para amenizar crises econômicas e privilegiar considerações sobre os níveis de emprego em detrimento das de estabilidade de preços. Por outro lado, regras fiscais, como procedimentos de orçamento equilibrado, reduziram severamente a capacidade geral de gastos do governo. Além disso, o estabelecimento de altos limites constitucionais para alterar esses arranjos bloqueou aspectos-chave do conjunto de ferramentas de política econômica do governo eleito fora de seu alcance.

Em termos neogramscianos, um bloco social multipartidário, enraizado em setores empresariais específicos, defendeu com sucesso o projeto neoliberal graças a esses recursos econômicos e institucionais concretos, que reduziram o espaço disponível para a política e as políticas públicas. E a consequência direta disso foi um declínio acentuado no caráter representativo de nossas democracias.

Neoliberalismo e razão populista

Considerando a relação hostil do neoliberalismo com as instituições democráticas básicas, não é difícil compreender a afinidade eletiva entre o neoliberalismo e a direita populista radical atual. Ao contrário do que Wendy Brown argumentou, a direita radical não está emergindo “das ruínas” do neoliberalismo, mas das possibilidades concretas que surgem quando os princípios fundamentais do neoliberalismo são “hibridizados” com o populismo.

Nas décadas de 1970 e 1980, os ideais neoliberais se alinharam às doutrinas autoritárias para criar algumas das reformas — e ditaduras — mais abrangentes que o mundo já viu.

Como surgiu esse híbrido? Nas décadas de 1970 e 1980, os ideais neoliberais se alinharam a doutrinas autoritárias para criar algumas das reformas — e ditaduras — mais abrangentes que o mundo já viu. Mais tarde, durante as décadas de 1990 e 2000, os neoliberais conquistaram os corações e mentes das elites tecnocráticas da “terceira via”, que queriam impor disciplina de mercado a governos irresponsáveis. Da mesma forma, hoje, os princípios fundamentais do neoliberalismo tendem a formar alianças com a direita populista radical.

Essas alianças não se baseiam em um interesse compartilhado pelas liberdades de mercado, mas em um desprezo comum pela política democrática e na percepção da necessidade de limitar ainda mais as instituições democráticas representativas (para não mencionar uma concepção individualizada do social). Portanto, apesar das alegações de que populismo e neoliberalismo são tendências antagônicas, as tentativas populistas de restringir liberdades e instituições democráticas básicas, na verdade, reforçam o projeto antidemocrático do neoliberalismo.

Em quase todos os lugares, o neoliberalismo tem sido associado ao aumento da autoridade executiva e à delegação de poder democrático a instituições burocráticas irresponsáveis. Frequentemente, os neoliberais alteraram os sistemas eleitorais e os padrões de representação política para favorecer a “liberdade econômica”, semelhante à forma como a direita populista radical mina a democracia hoje.

A direita populista radical adota uma visão de mundo moralizante e nacionalista, que parece estar em desacordo com o individualismo e a postura incrédula do neoliberalismo em relação à sociedade em geral. Sempre que os neoliberais fazem apelos por amplo apoio social, este geralmente se manifesta na forma dos potenciais benefícios do consumo individual em massa, proporcionados por mercados mais livres. A mobilização populista, por outro lado, tem sido apontada como repolitizadora de uma sociedade cada vez mais apática e individualizada.

No entanto, como a pesquisa de Melinda Cooper demonstrou, existem fortes conexões entre o neoliberalismo e o conservadorismo social. E, como Wendy Brown nos lembra, o neoliberalismo de estilo hayekiano visava proteger as hierarquias tradicionais tanto quanto as liberdades econômicas. Entre essas hierarquias, destacavam-se os valores familiares e a divisão tradicional do trabalho doméstico. Isso ressoa fortemente com o impulso da direita populista de se unir em torno da figura da família tradicional.

Se olharmos para além da Europa Ocidental e dos países fundadores da OCDE, as conexões entre o neoliberalismo e outra característica central da direita radical, o nativismo, não são novidade. O chauvinismo nacionalista já estava presente nos líderes neoliberais e populistas da América Latina e do Leste Europeu na década de 1990, sendo os casos paradigmáticos de Alberto Fujimori, no Peru, e Lech Wałęsa, na Polônia — assim como da Estônia.

O que está por trás dessas afinidades eletivas é uma concepção individualizada de sociedade que facilita apelos a uma noção vazia de “povo”. “O povo”, no populismo de direita, não é uma unidade fundamental da sociedade nem se baseia em um conjunto comum de vínculos; é construído por meio da identificação interna de um indivíduo com o discurso do líder populista. É por isso que Ernesto Laclau chama essa construção de “significante vazio” que pode ser preenchido com uma diversidade de apelos conservadores, autoritários e nativistas inespecíficos. Observando a ascensão de um novo tipo de direita radical na Alemanha dos anos 1960, o filósofo Theodor Adorno notou precisamente que seu apelo não se baseava tanto em ideias como o demos ou a nação, mas sim nos traços de personalidade autoritária de um indivíduo e em um anseio por autoridade e disciplina. No mesmo sentido, embora a “repolitização da sociedade” populista possa levar a multidões enfurecidas, ela não dá lugar ao tipo de poder coletivo organizado que a classe proprietária realmente teme.

Na verdade, os populistas não empoderaram os trabalhadores que prometeram proteger, muito menos reduziram o poder da classe empresarial em geral, nem das finanças em particular. Na verdade, a aliança entre neoliberais e populistas parece visar arrancar o controle do projeto neoliberal das elites tecnocráticas da terceira via: enquanto os tecnocratas da terceira via podem, a contragosto, reconhecer os excessos do neoliberalismo, aumentar as proteções sociais e permitir maior responsabilização por parte dos órgãos tecnocráticos, os verdadeiros neoliberais entendem que seu projeto se baseia na contínua limitação das instituições democráticas representativas.

A aliança do neoliberalismo com a direita populista radical está acelerando o declínio da política democrática e alimentando o desejo por autoridade, ordem e conservadorismo social, ao mesmo tempo em que desencadeia a tendência do capital à acumulação desenfreada. Se o neoliberalismo e a direita populista radical conseguirão formar um híbrido estável dependerá de fatores estruturais e institucionais — isto é, da política. Somente quando reconhecermos os mecanismos econômicos, políticos e institucionais concretos que tornam o neoliberalismo tão resiliente poderemos começar a esboçar algumas ideias sobre como interromper seu avanço, defendendo a democracia e a igualdade.

Colaborador

Aldo Madariaga é professor assistente de Ciência Política na Universidade Diego Portales, em Santiago do Chile, e pesquisador associado do Centro de Estudos de Conflito e Coesão Social. É autor de "Resiliência Neoliberal".

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