Eric J. Hobsbawm
The Guardian
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"Os filósofos até agora apenas interpretaram o mundo: trata-se, agora, de transformá-lo”. A história marxista se desenvolveu por linhas paralelas correspondendo às duas metades da famosa tese de Marx. A maioria dos intelectuais que se tornou marxista depois da década de 1880, inclusive os historiadores, o fez porque queria transformar o mundo em associação com os movimentos sindical e socialista. Essa motivação permaneceu forte até os anos 1970, quando começou a reação política e ideológica maciça contra o marxismo. Seu principal efeito tem sido o de destruir a crença de que o sucesso de uma maneira particular de organizar sociedades humanas pode ser previsto e assistido pela análise histórica.
Enquanto isso, o que houve com o “interpretar o mundo”? O caso aqui é de um duplo movimento. Ele desafiou a crença positivista de que a estrutura objetiva da realidade se autoexplicava – bastava aplicar a metodologia da ciência a ela. Ao mesmo tempo, foi um movimento para trazer a história para mais perto das ciências sociais, e torná-la parte de uma disciplina generalizante capaz de explicar as transformações da sociedade humana. A história deveria tratar de “perguntar os grandes por quês”?
O marxismo contribuiu para esses dois movimentos – embora tenha sido erroneamente atacado por um alegado objetivismo cego. Mas o impacto mais familiar das ideias marxistas, a ênfase nos fatores econômicos e sociais, não era especificamente marxista; era parte de um movimento historiográfico geral que viria a atingir seu auge nos anos 1950 e 1960. O interesse histórico da maioria dos historiadores marxistas não estava tanto na base – a infraestrutura econômica – quanto nas relações da base com a superestrutura. Essa corrente socioeconômica era mais ampla que o marxismo. Esses modernizadores históricos faziam as mesmas perguntas e viam-se engajados nas mesmas batalhas intelectuais, fossem eles inspirados pela geografia humana, a sociologia weberiana ou o marxismo dos historiadores comunistas que se tornaram os portadores da modernização histórica na Grã-Bretanha.
Todos eles viam os outros como aliados contra o conservadorismo historiográfico, mesmo quando representavam posições mutuamente hostis. Esse front de progresso avançou da Segunda Guerra Mundial até os anos 1970. Seguiu-se uma transição dos estudos quantitativos para os qualitativos, da macro-história para a micro-história, da análise estrutural para a narrativa, do social para o cultural.
Desde aquela época, a coalizão modernizadora tem estado na defensiva. E, no entanto, a necessidade de insistir no que o marxismo pode trazer para a historiografia é maior do que foi por um longo tempo. A história precisa ser defendida contra aqueles que negam sua capacidade de nos ajudar a compreender o mundo, e porque novos desdobramentos nas ciências transformaram a agenda historiográfica.
Metodologicamente, o principal desenvolvimento negativo tem sido a construção de um conjunto de barreiras entre o que aconteceu na história e nossa capacidade de observá-lo e compreendê-lo. Nega-se a existência de qualquer realidade que esteja objetivamente ali e não tenha sido construída pelo observador para fins diferentes e mutáveis. Alega-se que jamais poderemos ir além das limitações da linguagem.
Enquanto isso, historiadores menos voltados para o teórico argumentam que o curso do passado é demasiado contingente para uma explicação causal, porque as opções na história são infinitas. Quase nada poderia acontecer ou poderia ter acontecido. Implicitamente, esses são argumentos contrários a qualquer ciência. Não os aborrecerei com tentativas mais triviais de volta ao passado: a tentativa de devolver os rumos da história a altos dirigentes políticos ou militares, ou à onipotência de ideias ou “valores”, ou a reduzir o conhecimento histórico à busca de empatia com o passado.
O maior perigo político imediato para a historiografia é hoje o “antiuniversalismo” ou “a minha verdade vale tanto quanto a sua, a despeito das evidências”. Isso interessa a várias formas de história de grupos de identidade, para a qual a questão central da história não foi o que aconteceu, mas como isso interessa aos membros de um determinado grupo. O importante nesse tipo de história não é a explicação racional, mas o “significado”; não o que aconteceu, mas o que os membros de um grupo coletivo que define a si mesmo contra os de fora do grupo – religioso, étnico, nacional, por gênero ou estilo de vida – sentem a seu respeito.
Os últimos 30 anos foram uma era de ouro para a invenção em massa de inverdades e mitos históricos emocionalmente torcidos. Alguns são um perigo público: estou pensando em países como a Índia sob o BJP, os Estados Unidos, a Itália de Silvio Berlusconi, para não falar de muitos novos nacionalismos, com ou sem o reforço de religiões fundamentalistas.
Isso produz um interminável palavrório nas franjas das histórias de nacionalistas, feministas, gay, negros e outros grupos de interesses, mas também estimulou novos desenvolvimentos históricos interessantes em estudos culturais, como os que têm sido chamados de “boom da memória” em história.
Já é hora de restabelecer a coalizão daqueles que acreditam na história como uma investigação racional do curso das transformações humanas, contra aqueles que distorcem a história para fins políticos – e, mais em geral, contra relativistas e pós-modernistas que negam sua possibilidade. Como alguns dos últimos se consideram na esquerda, isto poderá rachar os historiadores de maneiras politicamente inesperadas.
A abordagem marxista é um componente necessário dessa reconstrução do front da razão. Enquanto os pós-modernistas têm negado a possibilidade da compreensão histórica, alguns desenvolvimentos nas ciências naturais recolocaram na agenda uma história evolucionista da humanidade. Em primeiro lugar, a análise do DNA estabeleceu uma cronologia mais precisa da disseminação da espécie pelo mundo desde sua origem inicial africana, antes do surgimento de fontes escritas. Isso tanto estabeleceu a espantosa brevidade da história humana como eliminou a solução reducionista da sociobiologia neodarwinista.
As mudanças na vida humana nos últimos 10 mil anos, e mesmo nas últimas dez gerações, são grandes demais para serem explicadas por um mecanismo inteiramente darwinista de evolução via genes. Elas têm a ver com a aceleração da herança de características adquiridas por mecanismos culturais e não genéticos.
Em suma, a revolução do DNA exige um método específico, histórico, para estudar a evolução da espécie humana. Ela nos oferece também um arcabouço conceitual para a história mundial. A história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios.
Em segundo lugar, a nova biologia evolucionista elimina a distinção entre história e as ciências naturais e contorna os falsos debates sobre se a história é ou não uma ciência.
Em terceiro, ela nos devolve a abordagem básica da evolução humana adotada pelos pré-historiadores, que é a de estudar os modos de interação entre nossa espécie e seu ambiente, e nosso controle crescente sobre ele. Isso significa fazer as perguntas que Marx fazia. Os “modos de produção”, baseados em grandes inovações na tecnologia produtiva, nas comunicações, e na organização social – mas também no poderio militar – têm sido fundamentais para a evolução humana? Essas inovações, como Marx percebia, não se faziam e não se fazem por si mesmas. São atividades de homens e mulheres em situações históricas que eles não criaram agindo e tomando decisões, mas não num vazio.
Entretanto, as novas perspectivas na história deveriam também nos remeter àquele objetivo essencial, ainda que nunca totalmente realizável, dos que estudam o passado: a “história total”. Não uma “história de tudo”, mas a história como uma malha indivisível em que todas as atividades humanas estão inter-relacionadas. Os marxistas não são os únicos que têm essa meta, mas eles têm sido seus mais persistentes perseguidores.
Um dos problemas, para o qual a perspectiva da história como interação é fundamental, é crucial para o entendimento da evolução histórica do homo sapiens. Trata-se do conflito entre as forças que agem no sentido da transformação do homo sapiens da humanidade neolítica para a nuclear e as forças cuja finalidade é a manutenção da reprodução inalterada e da estabilidade nos ambientes sociais humanos. Durante a maior parte da história, as forças inibidoras da mudança geralmente se opuseram com eficácia a uma mudança ilimitada.
Hoje, esse equilíbrio foi decisivamente inclinado numa direção. E o desequilíbrio está quase certamente fora da capacidade de controle das instituições sociais e políticas humanas. Talvez os historiadores marxistas, que tiveram a oportunidade de refletir sobre as consequências, inesperadas e indesejadas, dos projetos humanos coletivos do século XX, possam ao menos nos ajudar a compreender como isso aconteceu.
Enquanto isso, o que houve com o “interpretar o mundo”? O caso aqui é de um duplo movimento. Ele desafiou a crença positivista de que a estrutura objetiva da realidade se autoexplicava – bastava aplicar a metodologia da ciência a ela. Ao mesmo tempo, foi um movimento para trazer a história para mais perto das ciências sociais, e torná-la parte de uma disciplina generalizante capaz de explicar as transformações da sociedade humana. A história deveria tratar de “perguntar os grandes por quês”?
O marxismo contribuiu para esses dois movimentos – embora tenha sido erroneamente atacado por um alegado objetivismo cego. Mas o impacto mais familiar das ideias marxistas, a ênfase nos fatores econômicos e sociais, não era especificamente marxista; era parte de um movimento historiográfico geral que viria a atingir seu auge nos anos 1950 e 1960. O interesse histórico da maioria dos historiadores marxistas não estava tanto na base – a infraestrutura econômica – quanto nas relações da base com a superestrutura. Essa corrente socioeconômica era mais ampla que o marxismo. Esses modernizadores históricos faziam as mesmas perguntas e viam-se engajados nas mesmas batalhas intelectuais, fossem eles inspirados pela geografia humana, a sociologia weberiana ou o marxismo dos historiadores comunistas que se tornaram os portadores da modernização histórica na Grã-Bretanha.
Todos eles viam os outros como aliados contra o conservadorismo historiográfico, mesmo quando representavam posições mutuamente hostis. Esse front de progresso avançou da Segunda Guerra Mundial até os anos 1970. Seguiu-se uma transição dos estudos quantitativos para os qualitativos, da macro-história para a micro-história, da análise estrutural para a narrativa, do social para o cultural.
Desde aquela época, a coalizão modernizadora tem estado na defensiva. E, no entanto, a necessidade de insistir no que o marxismo pode trazer para a historiografia é maior do que foi por um longo tempo. A história precisa ser defendida contra aqueles que negam sua capacidade de nos ajudar a compreender o mundo, e porque novos desdobramentos nas ciências transformaram a agenda historiográfica.
Metodologicamente, o principal desenvolvimento negativo tem sido a construção de um conjunto de barreiras entre o que aconteceu na história e nossa capacidade de observá-lo e compreendê-lo. Nega-se a existência de qualquer realidade que esteja objetivamente ali e não tenha sido construída pelo observador para fins diferentes e mutáveis. Alega-se que jamais poderemos ir além das limitações da linguagem.
Enquanto isso, historiadores menos voltados para o teórico argumentam que o curso do passado é demasiado contingente para uma explicação causal, porque as opções na história são infinitas. Quase nada poderia acontecer ou poderia ter acontecido. Implicitamente, esses são argumentos contrários a qualquer ciência. Não os aborrecerei com tentativas mais triviais de volta ao passado: a tentativa de devolver os rumos da história a altos dirigentes políticos ou militares, ou à onipotência de ideias ou “valores”, ou a reduzir o conhecimento histórico à busca de empatia com o passado.
O maior perigo político imediato para a historiografia é hoje o “antiuniversalismo” ou “a minha verdade vale tanto quanto a sua, a despeito das evidências”. Isso interessa a várias formas de história de grupos de identidade, para a qual a questão central da história não foi o que aconteceu, mas como isso interessa aos membros de um determinado grupo. O importante nesse tipo de história não é a explicação racional, mas o “significado”; não o que aconteceu, mas o que os membros de um grupo coletivo que define a si mesmo contra os de fora do grupo – religioso, étnico, nacional, por gênero ou estilo de vida – sentem a seu respeito.
Os últimos 30 anos foram uma era de ouro para a invenção em massa de inverdades e mitos históricos emocionalmente torcidos. Alguns são um perigo público: estou pensando em países como a Índia sob o BJP, os Estados Unidos, a Itália de Silvio Berlusconi, para não falar de muitos novos nacionalismos, com ou sem o reforço de religiões fundamentalistas.
Isso produz um interminável palavrório nas franjas das histórias de nacionalistas, feministas, gay, negros e outros grupos de interesses, mas também estimulou novos desenvolvimentos históricos interessantes em estudos culturais, como os que têm sido chamados de “boom da memória” em história.
Já é hora de restabelecer a coalizão daqueles que acreditam na história como uma investigação racional do curso das transformações humanas, contra aqueles que distorcem a história para fins políticos – e, mais em geral, contra relativistas e pós-modernistas que negam sua possibilidade. Como alguns dos últimos se consideram na esquerda, isto poderá rachar os historiadores de maneiras politicamente inesperadas.
A abordagem marxista é um componente necessário dessa reconstrução do front da razão. Enquanto os pós-modernistas têm negado a possibilidade da compreensão histórica, alguns desenvolvimentos nas ciências naturais recolocaram na agenda uma história evolucionista da humanidade. Em primeiro lugar, a análise do DNA estabeleceu uma cronologia mais precisa da disseminação da espécie pelo mundo desde sua origem inicial africana, antes do surgimento de fontes escritas. Isso tanto estabeleceu a espantosa brevidade da história humana como eliminou a solução reducionista da sociobiologia neodarwinista.
As mudanças na vida humana nos últimos 10 mil anos, e mesmo nas últimas dez gerações, são grandes demais para serem explicadas por um mecanismo inteiramente darwinista de evolução via genes. Elas têm a ver com a aceleração da herança de características adquiridas por mecanismos culturais e não genéticos.
Em suma, a revolução do DNA exige um método específico, histórico, para estudar a evolução da espécie humana. Ela nos oferece também um arcabouço conceitual para a história mundial. A história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios.
Em segundo lugar, a nova biologia evolucionista elimina a distinção entre história e as ciências naturais e contorna os falsos debates sobre se a história é ou não uma ciência.
Em terceiro, ela nos devolve a abordagem básica da evolução humana adotada pelos pré-historiadores, que é a de estudar os modos de interação entre nossa espécie e seu ambiente, e nosso controle crescente sobre ele. Isso significa fazer as perguntas que Marx fazia. Os “modos de produção”, baseados em grandes inovações na tecnologia produtiva, nas comunicações, e na organização social – mas também no poderio militar – têm sido fundamentais para a evolução humana? Essas inovações, como Marx percebia, não se faziam e não se fazem por si mesmas. São atividades de homens e mulheres em situações históricas que eles não criaram agindo e tomando decisões, mas não num vazio.
Entretanto, as novas perspectivas na história deveriam também nos remeter àquele objetivo essencial, ainda que nunca totalmente realizável, dos que estudam o passado: a “história total”. Não uma “história de tudo”, mas a história como uma malha indivisível em que todas as atividades humanas estão inter-relacionadas. Os marxistas não são os únicos que têm essa meta, mas eles têm sido seus mais persistentes perseguidores.
Um dos problemas, para o qual a perspectiva da história como interação é fundamental, é crucial para o entendimento da evolução histórica do homo sapiens. Trata-se do conflito entre as forças que agem no sentido da transformação do homo sapiens da humanidade neolítica para a nuclear e as forças cuja finalidade é a manutenção da reprodução inalterada e da estabilidade nos ambientes sociais humanos. Durante a maior parte da história, as forças inibidoras da mudança geralmente se opuseram com eficácia a uma mudança ilimitada.
Hoje, esse equilíbrio foi decisivamente inclinado numa direção. E o desequilíbrio está quase certamente fora da capacidade de controle das instituições sociais e políticas humanas. Talvez os historiadores marxistas, que tiveram a oportunidade de refletir sobre as consequências, inesperadas e indesejadas, dos projetos humanos coletivos do século XX, possam ao menos nos ajudar a compreender como isso aconteceu.
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