Diego Álvarez Beltran
A greve nacional na Colômbia já dura mais de um mês. (Foto: Mauricio Alvarado via espectador) |
Tradução / análise sobre o que está a acontecer na Colômbia parte da inexatidão própria da intuição política. Falta ainda que os factos se consumem, que corra suficiente água debaixo da ponte para poder determinar com maior precisão a lógica das tendências e forças políticas que neste momento operam efetivamente sobre o curso da conjuntura da greve nacional.
Entretanto, a greve continua viva e, assim, também estão vivas as tendências e relações entre forças políticas que, como se passa com o calor ou com o som, atravessam os nossos corpos e se manifestam como sensações da experiência, como afetos. Porém, a partir do que se sente na própria carne é possível também ligar analiticamente factos parciais para esboçar algumas chaves e pensar a situação atual.
A faísca que acendeu o pavio
Entretanto, a greve continua viva e, assim, também estão vivas as tendências e relações entre forças políticas que, como se passa com o calor ou com o som, atravessam os nossos corpos e se manifestam como sensações da experiência, como afetos. Porém, a partir do que se sente na própria carne é possível também ligar analiticamente factos parciais para esboçar algumas chaves e pensar a situação atual.
A faísca que acendeu o pavio
É evidente que na madrugada de 4 de maio de 2021, seis dias depois do início da greve, o denominador comum foi a sensação de profundo temor face à inusitada violência do Estado. A tensão que desde há alguns dias se vinha sentindo, entre a espontaneidade e a amplitude insuspeita da greve e o silêncio do governo de Iván Duque face à reivindicação de retirada da reforma tributária, teve o seu ponto limite no massacre da localidade de Siloé, em Cali. As forças policiais, com o apoio do exército, assassinaram pelo menos cinco pessoas.
Esse facto foi o limiar a partir do qual aquilo que até esse momento era uma greve de extensão nacional em cidades centrais, intermédias e localidades pequenas de quase todas as regiões do país (convocada no dia 28 de abril de 2021 por sectores sindicais e de esquerda contra a reforma tributária apresentada pelo governo e à qual se vinham somando timidamente setores camponeses e indígenas), se transformou de maneira decisiva. A partir desse momento, a greve alcançou uma intensidade tal que revelou nos campos e cidades as estruturas sedimentadas de uma ordem social oligárquica e senhorial, que cerrou fileiras violentamente contra uma sociedade civil mobilizada quase na sua totalidade.
Depois do massacre de Cali, a pergunta já não girou à volta dos limites da greve mas passou a girar sobre os limites de uma ordem estabelecida profundamente fraturada. O terror que se quis infundir através da violência estatal e através de assassinatos, desaparecimentos e mutilações não deu lugar à resignação, como esperavam os seus impulsionadores, mas à indignação generalizada. E a exigência pontual – a retirada da reforma – tornou-se no desejo nacional de construir uma nova ordem social à margem dos partidos tradicionais e contra o governo uribista.
A greve não é apenas a consequência da apresentação de uma reforma tributária regressiva que, amparada pela metafísica neoliberal, dita que a prosperidade dos ricos, empresários e multinacionais vai irradiar para os outros 99%. A potência do protesto não radica simplesmente na exigência de tornar efetiva a retirada da reforma. Qualquer reivindicação inscreve-se num campo popular historicamente configurado e, por isso, a sua capacidade de mobilização apenas se pode explicar à luz deste contexto.
Exigir a retirada da reforma foi a proposta que encontrou o movimento para todas as afrontas à moral e tradições populares que se vinham a suceder desde há décadas num país em que o ministro das Finanças não sabe o valor de uma dúzia de ovos, tal como se tornou evidente alguns dias antes de começar a greve. Num país em que menores de idade são bombardeados por forças militares e o Estado justifica o seu assassinato. Um país cuja vice-presidente insinua que a pobreza estrutural explica-se pelas pessoas serem “preguiçosas”. Um país no qual os funcionários do governo vociferam sem nenhum pudor que se alguém é contagiado por coronavírus é por descuido e não porque está obrigado a sair para trabalhar.
Nesse contexto, a reforma tributária surgiu como o aglutinador de uma cadeia de afrontas ao senso comum popular. A greve que exigiu a sua revogação surge como resposta. À interpelação senhorial seguiu-se a resposta plebeia, tal como aconteceu com o mítico Florero de Llorente.
Tempos acelerados
O que se tem passado desde 28 de abril na Colômbia faz parte de um ciclo longo de protestos sociais que se aceleraram na última década. Revendo a sua trajetória desde a segunda metade do século XX, podem identificar-se vários marcos: as jornadas de 1957, que acabaram com a ditadura do general Rojas Pinilla, cuja queda inaugura o pacto oligárquico entre os tradicionais (mais conhecido como Frente Nacional). Posteriormente, a Greve Cívica Nacional de 1977, que mobilizou moradores de bairros de Bogotá e de outras cidades contra o último governo de uma desgastada Frente Nacional. Dez anos mais tarde, em 1987, a greve de Nororiente, na qual camponeses e habitantes de cidades da região de Catatumbo se mobilizaram massivamente.
Durante os anos noventa, entre outras coisas devido ao embate dos paramilitares e à sistemática eliminação das organizações sociais e políticas, houve um corte nos protestos sociais que se estendeu até à primeira década do século XXI, no qual a mobilização social ressurge com força, como aconteceu com a Minga Nacional de Resistencia de 2008 (talvez o primeiro grande marco de protesto do século XXI). A este seguiu-se, em 2011, a greve nacional estudantil de universitários, organizados na Mesa Amplia Nacional Estudiantil. Um par de anos depois houve a Greve Nacional Agrária (2013), que paralisou principalmente o centro do país. A greve estudantil de 2018 e as jornadas do 21N de 2019 foram as últimas, numa clara continuidade com os protestos atuais.
1957, 1977, 1987. 2008, 2011, 2013. 2018, 2019, 2021. O protesto social desenvolve-se em ciclos cada vez mais curtos, mais acelerados. Os grandes marcos de mobilização nacional estão a deixar de ser pouco frequentes.
De certa forma, o anseio de muitas gerações de militantes de esquerda pela grande greve geral – que se produz raras vezes e que, assim, se torna um mito – começa a dar lugar a uma atitude diferente. Os grandes protestos, o país a irromper nas ruas, tornam-se hábito.
Esse facto foi o limiar a partir do qual aquilo que até esse momento era uma greve de extensão nacional em cidades centrais, intermédias e localidades pequenas de quase todas as regiões do país (convocada no dia 28 de abril de 2021 por sectores sindicais e de esquerda contra a reforma tributária apresentada pelo governo e à qual se vinham somando timidamente setores camponeses e indígenas), se transformou de maneira decisiva. A partir desse momento, a greve alcançou uma intensidade tal que revelou nos campos e cidades as estruturas sedimentadas de uma ordem social oligárquica e senhorial, que cerrou fileiras violentamente contra uma sociedade civil mobilizada quase na sua totalidade.
Depois do massacre de Cali, a pergunta já não girou à volta dos limites da greve mas passou a girar sobre os limites de uma ordem estabelecida profundamente fraturada. O terror que se quis infundir através da violência estatal e através de assassinatos, desaparecimentos e mutilações não deu lugar à resignação, como esperavam os seus impulsionadores, mas à indignação generalizada. E a exigência pontual – a retirada da reforma – tornou-se no desejo nacional de construir uma nova ordem social à margem dos partidos tradicionais e contra o governo uribista.
A greve não é apenas a consequência da apresentação de uma reforma tributária regressiva que, amparada pela metafísica neoliberal, dita que a prosperidade dos ricos, empresários e multinacionais vai irradiar para os outros 99%. A potência do protesto não radica simplesmente na exigência de tornar efetiva a retirada da reforma. Qualquer reivindicação inscreve-se num campo popular historicamente configurado e, por isso, a sua capacidade de mobilização apenas se pode explicar à luz deste contexto.
Exigir a retirada da reforma foi a proposta que encontrou o movimento para todas as afrontas à moral e tradições populares que se vinham a suceder desde há décadas num país em que o ministro das Finanças não sabe o valor de uma dúzia de ovos, tal como se tornou evidente alguns dias antes de começar a greve. Num país em que menores de idade são bombardeados por forças militares e o Estado justifica o seu assassinato. Um país cuja vice-presidente insinua que a pobreza estrutural explica-se pelas pessoas serem “preguiçosas”. Um país no qual os funcionários do governo vociferam sem nenhum pudor que se alguém é contagiado por coronavírus é por descuido e não porque está obrigado a sair para trabalhar.
Nesse contexto, a reforma tributária surgiu como o aglutinador de uma cadeia de afrontas ao senso comum popular. A greve que exigiu a sua revogação surge como resposta. À interpelação senhorial seguiu-se a resposta plebeia, tal como aconteceu com o mítico Florero de Llorente.
Tempos acelerados
O que se tem passado desde 28 de abril na Colômbia faz parte de um ciclo longo de protestos sociais que se aceleraram na última década. Revendo a sua trajetória desde a segunda metade do século XX, podem identificar-se vários marcos: as jornadas de 1957, que acabaram com a ditadura do general Rojas Pinilla, cuja queda inaugura o pacto oligárquico entre os tradicionais (mais conhecido como Frente Nacional). Posteriormente, a Greve Cívica Nacional de 1977, que mobilizou moradores de bairros de Bogotá e de outras cidades contra o último governo de uma desgastada Frente Nacional. Dez anos mais tarde, em 1987, a greve de Nororiente, na qual camponeses e habitantes de cidades da região de Catatumbo se mobilizaram massivamente.
Durante os anos noventa, entre outras coisas devido ao embate dos paramilitares e à sistemática eliminação das organizações sociais e políticas, houve um corte nos protestos sociais que se estendeu até à primeira década do século XXI, no qual a mobilização social ressurge com força, como aconteceu com a Minga Nacional de Resistencia de 2008 (talvez o primeiro grande marco de protesto do século XXI). A este seguiu-se, em 2011, a greve nacional estudantil de universitários, organizados na Mesa Amplia Nacional Estudiantil. Um par de anos depois houve a Greve Nacional Agrária (2013), que paralisou principalmente o centro do país. A greve estudantil de 2018 e as jornadas do 21N de 2019 foram as últimas, numa clara continuidade com os protestos atuais.
1957, 1977, 1987. 2008, 2011, 2013. 2018, 2019, 2021. O protesto social desenvolve-se em ciclos cada vez mais curtos, mais acelerados. Os grandes marcos de mobilização nacional estão a deixar de ser pouco frequentes.
De certa forma, o anseio de muitas gerações de militantes de esquerda pela grande greve geral – que se produz raras vezes e que, assim, se torna um mito – começa a dar lugar a uma atitude diferente. Os grandes protestos, o país a irromper nas ruas, tornam-se hábito.
Face a tal evidência, a pergunta então não é quando voltará o país encher as ruas. A pergunta passa a ser: o que faz falta para que esse país popular, que é capaz de se manifestar de forma cada vez mais recorrente, possa romper com a ordem social instaurada pela oligarquia colombiana desde 1958, cujas raízes podem ser rastreadas até ao século XIX.
Podia colocar-se como hipótese que se as jornadas contra a ditadura de Rojas em 1957 inauguram a Frente Nacional, as jornadas contra a ditadura de facto do governo uribista de Iván Duque podem sepultar o bloco histórico inaugurado pelo pacto entre as elites liberais e conservadoras em 1958 (latente em 1978 com governos liberais e conservadores até 2002, quando é substituído por outro pacto – não reconhecido – entre as mesmas elites da Frente Nacional e a aliança entre proprietários de terras e narcotraficantes que condensa o projeto uribista).
É possível que as jornadas de luta atuais possam significar a passagem de uma ordem social de tipo nacional oligárquico para uma ordem social de tipo nacional-popular. Tudo depende do nível de organização e articulação que se possa alcançar entre os diferentes setores opostos ao uribismo. O atual estado de exceção uribista é o último reduto da antiga ordem social da oligarquia colombiana.
A seguir, o abismo. É por isso que, face a isto, as oligarquias tradicionais se calam. Olham para o lado. Preferem pactuar do que sequer contemplar a hipótese da chegada de um governo de cariz nacional-popular, no qual os protagonistas sejam os movimentos sociais e a esquerda.
Aquilo que emergiu no país a 28 de abril é, talvez, o acontecimento de protesto mais nacional que houve na Colômbia. Ao contrário do carácter meramente urbano das jornadas de 1957 e 1977, em contraste também com o carácter exclusivamente rural e regional da greve de 1987 e até com setorialidade do protesto própria da Greve Agrária de 2013 e das greves estudantis de 2011 e 2018, as jornadas de 2021, como as de 2019, são plenamente nacionais e envolvem o conjunto dos setores do campo popular.
As classes médias empobrecidas e as classes populares mobilizam-se nas grandes, médias e pequenas cidades. Camponeses e indígenas manifestam-se com ações de bloqueio de estradas. E o protesto é liderado pela espontaneidade dos jovens que se reconhecem a si próprios como membros de uma geração diferente, que não se resigna ao discurso de que “sempre foi assim” e que também não tem respeito pelo “património colonial” de assassinos erguidos em pedestais. Uma geração que produz um novo sentido de nação e que se politizou amplamente na própria ação; cuja indignação não está submetida a organizações de esquerda nem nasce nos tradicionais e excludentes espaços universitários.
Cidadãos e vândalos
Podia colocar-se como hipótese que se as jornadas contra a ditadura de Rojas em 1957 inauguram a Frente Nacional, as jornadas contra a ditadura de facto do governo uribista de Iván Duque podem sepultar o bloco histórico inaugurado pelo pacto entre as elites liberais e conservadoras em 1958 (latente em 1978 com governos liberais e conservadores até 2002, quando é substituído por outro pacto – não reconhecido – entre as mesmas elites da Frente Nacional e a aliança entre proprietários de terras e narcotraficantes que condensa o projeto uribista).
É possível que as jornadas de luta atuais possam significar a passagem de uma ordem social de tipo nacional oligárquico para uma ordem social de tipo nacional-popular. Tudo depende do nível de organização e articulação que se possa alcançar entre os diferentes setores opostos ao uribismo. O atual estado de exceção uribista é o último reduto da antiga ordem social da oligarquia colombiana.
A seguir, o abismo. É por isso que, face a isto, as oligarquias tradicionais se calam. Olham para o lado. Preferem pactuar do que sequer contemplar a hipótese da chegada de um governo de cariz nacional-popular, no qual os protagonistas sejam os movimentos sociais e a esquerda.
Aquilo que emergiu no país a 28 de abril é, talvez, o acontecimento de protesto mais nacional que houve na Colômbia. Ao contrário do carácter meramente urbano das jornadas de 1957 e 1977, em contraste também com o carácter exclusivamente rural e regional da greve de 1987 e até com setorialidade do protesto própria da Greve Agrária de 2013 e das greves estudantis de 2011 e 2018, as jornadas de 2021, como as de 2019, são plenamente nacionais e envolvem o conjunto dos setores do campo popular.
As classes médias empobrecidas e as classes populares mobilizam-se nas grandes, médias e pequenas cidades. Camponeses e indígenas manifestam-se com ações de bloqueio de estradas. E o protesto é liderado pela espontaneidade dos jovens que se reconhecem a si próprios como membros de uma geração diferente, que não se resigna ao discurso de que “sempre foi assim” e que também não tem respeito pelo “património colonial” de assassinos erguidos em pedestais. Uma geração que produz um novo sentido de nação e que se politizou amplamente na própria ação; cuja indignação não está submetida a organizações de esquerda nem nasce nos tradicionais e excludentes espaços universitários.
Cidadãos e vândalos
A resposta do Estado foi brutal. E, pior ainda, foi tolerada por amplos setores do establishment. A violência estatal opera institucionalmente através da Polícia e do Exército que disparam as suas armas de fogo contra a população mobilizada. Mas de forma simultânea opera também através de grupos paramilitares organizados a partir dos bairros das classes altas.
Este acionar repressivo de via dupla é amparado por um discurso próprio da extrema-direita uribista que foi apropriado também por setores liberais e de centro. Um discurso constituído por silêncios escandalosos face à violência estatal e apelos irados e vazios à recusa de “todo o tipo de violência” que, claro, exclui a violência exercida e apoiada pelo governo. Ao não ser questionado pela maioria dos partidos e meios de comunicação, este discurso fica livre para converter em potencial objetivo militar qualquer pessoa que participe nas mobilizações.
As vítimas do Estado são identificadas como “vândalos”. Se alguém for assassinado às mãos da polícia, do exército, do Esquadrão Móvel Anti-Distúrbios ou por grupos paramilitares é porque era um vândalo, não um cidadão. Os vândalos foram um povo que saqueou o Império Romano no século V. O discurso do vandalismo no qual insiste o establishment colombiano não é inocente nem acidente, mas reflete exatamente isso: uma visão do mundo elitista que diferencia entre aqueles que estão dentro e os que estão fora das fronteiras da sociedade. Os primeiros merecem direitos; os segundos não.
A mostra mais grotesca dos efeitos de todo este andaime discursivo é dada pela cobertura dos grandes meios de comunicação aos ataques com armas de fogo perpetrados contra a Minga indígena na cidade de Cali. Oito pessoas ficaram feridas com disparos de bala. Face a este facto, o discurso das elites é unânime: conflitos entre cidadãos e indígenas, civilizados e bárbaros, gente com direitos e vândalos.
Contudo, à medida que o protesto resiste, o estado de exceção em que se manteve a Colômbia por mais de meio século mostra-se como aquilo que sempre foi: uma guerra do Estado contra a sociedade. Quem o normaliza sempre teve as mãos cheias de sangue. Mas não há “regresso à normalidade” possível. A Colômbia já mudou.
Três horizontes e uma tarefa
Nesse contexto, poderia dizer-se que se insinuam pelo menos três horizontes sobre os quais se projeta a ascensão do bloco nacional-popular na Colômbia. O primeiro é um cenário quase ditatorial, no qual as velhas forças radicalizadas da antiga ordem oligárquico-senhorial representadas pelo uribismo conseguem institucionalizar o estado de exceção e sufocar o movimento popular, conjurando as eleições de 2022.
Um segundo horizonte gira à volta da possibilidade de que essas velhas forças consigam reciclar-se, aliando-se com novas forças da ordem antiga (representadas por partidos de centro e liberais) numa manobra do tipo “revolução passiva”, que exclua o movimento popular. Este tipo de saídas são já hábito na história colombiana.
Mas existe um terceiro horizonte: a possibilidade de articular um bloco nacional-popular que, ainda que seja através da destituição ou da eleição popular, rompa com a ordem social oligárquica e sirva como caminho para essa nova Colômbia tantas vezes adiada.
Claro que se trata de um horizonte cheio de dificuldades. Tal como é evidente a rutura entre a ordem social oligárquico-senhorial e a sociedade civil mobilizada, também é clara a incapacidade das organizações de esquerda e sindicais para construir articulações orgânicas com um movimento popular que ultrapssa qualquer instância de representação política e que, em si, é irrepresentável. Sintomas disto são a distância entre os sindicatos reunidos no Comité Nacional de Greve e o movimento indígena, ou entre a convergência de esquerda (Pacto Histórico) e o movimento feminista.
Face à novidade da onda popular, a tarefa deve passar por construir um povo na própria ação. Sem limitar-se a evocá-lo exclusivamente a partir dos poros do Estado, pretendendo desta forma estancar e acumular para o seu próprio moinho em vez de o acompanhar legitimamente.
Este acionar repressivo de via dupla é amparado por um discurso próprio da extrema-direita uribista que foi apropriado também por setores liberais e de centro. Um discurso constituído por silêncios escandalosos face à violência estatal e apelos irados e vazios à recusa de “todo o tipo de violência” que, claro, exclui a violência exercida e apoiada pelo governo. Ao não ser questionado pela maioria dos partidos e meios de comunicação, este discurso fica livre para converter em potencial objetivo militar qualquer pessoa que participe nas mobilizações.
As vítimas do Estado são identificadas como “vândalos”. Se alguém for assassinado às mãos da polícia, do exército, do Esquadrão Móvel Anti-Distúrbios ou por grupos paramilitares é porque era um vândalo, não um cidadão. Os vândalos foram um povo que saqueou o Império Romano no século V. O discurso do vandalismo no qual insiste o establishment colombiano não é inocente nem acidente, mas reflete exatamente isso: uma visão do mundo elitista que diferencia entre aqueles que estão dentro e os que estão fora das fronteiras da sociedade. Os primeiros merecem direitos; os segundos não.
A mostra mais grotesca dos efeitos de todo este andaime discursivo é dada pela cobertura dos grandes meios de comunicação aos ataques com armas de fogo perpetrados contra a Minga indígena na cidade de Cali. Oito pessoas ficaram feridas com disparos de bala. Face a este facto, o discurso das elites é unânime: conflitos entre cidadãos e indígenas, civilizados e bárbaros, gente com direitos e vândalos.
Contudo, à medida que o protesto resiste, o estado de exceção em que se manteve a Colômbia por mais de meio século mostra-se como aquilo que sempre foi: uma guerra do Estado contra a sociedade. Quem o normaliza sempre teve as mãos cheias de sangue. Mas não há “regresso à normalidade” possível. A Colômbia já mudou.
Três horizontes e uma tarefa
Nesse contexto, poderia dizer-se que se insinuam pelo menos três horizontes sobre os quais se projeta a ascensão do bloco nacional-popular na Colômbia. O primeiro é um cenário quase ditatorial, no qual as velhas forças radicalizadas da antiga ordem oligárquico-senhorial representadas pelo uribismo conseguem institucionalizar o estado de exceção e sufocar o movimento popular, conjurando as eleições de 2022.
Um segundo horizonte gira à volta da possibilidade de que essas velhas forças consigam reciclar-se, aliando-se com novas forças da ordem antiga (representadas por partidos de centro e liberais) numa manobra do tipo “revolução passiva”, que exclua o movimento popular. Este tipo de saídas são já hábito na história colombiana.
Mas existe um terceiro horizonte: a possibilidade de articular um bloco nacional-popular que, ainda que seja através da destituição ou da eleição popular, rompa com a ordem social oligárquica e sirva como caminho para essa nova Colômbia tantas vezes adiada.
Claro que se trata de um horizonte cheio de dificuldades. Tal como é evidente a rutura entre a ordem social oligárquico-senhorial e a sociedade civil mobilizada, também é clara a incapacidade das organizações de esquerda e sindicais para construir articulações orgânicas com um movimento popular que ultrapssa qualquer instância de representação política e que, em si, é irrepresentável. Sintomas disto são a distância entre os sindicatos reunidos no Comité Nacional de Greve e o movimento indígena, ou entre a convergência de esquerda (Pacto Histórico) e o movimento feminista.
Face à novidade da onda popular, a tarefa deve passar por construir um povo na própria ação. Sem limitar-se a evocá-lo exclusivamente a partir dos poros do Estado, pretendendo desta forma estancar e acumular para o seu próprio moinho em vez de o acompanhar legitimamente.
Os calendários assinalam que 2022 está perto e, com ele, as eleições. Mas amiúde as transformações verdadeiramente radicais precisam deter o tempo e estilhaçar os almanaques.
Sobre o autor
Sociólogo e pesquisador da Universidade Nacional da Colômbia.
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