11 de junho de 2021

Do naufrágio da guerrilha à ascensão do tirano millennial

A esquerda salvadorenha, aglutinada na FMLN, deve fazer uma avaliação autocrítica urgente de seus governos para voltar a representar uma alternativa aos olhos do povo e, com isso, enfrentar os impulsos autoritários de Bukele e das elites.

Alejandro González Basurto



Em seu texto "Filosofía para gobernar El Salvador por periodos no mayores (ni menores) de trece años", o famoso poeta e guerrilheiro Roque Dalton reproduz um compêndio de frases atribuídas ao ditador Maximiliano Hernández Martínez, governante daquele país entre 1931 e 1944. De acordo com Dalton, quando o Arcebispo de San Salvador lhe pediu em nome de Deus que parasse com as execuções dos responsáveis ​​por uma tentativa de insurreição em abril de 1944, o General Hernández Martínez afirmou "Eu sou Deus em El Salvador".

Em 2020, o governante salvadorenho Nayib Bukele tomou a Assembleia Legislativa protegido pelos militares. Depois de ameaçar golpear o Legislativo por sua resistência em aprovar um empréstimo milionário, Bukele disse a seus seguidores: “Se quisermos apertar o botão, basta apertar o botão. Mas eu roguei a Deus, e Deus me disse: 'paciência'".

Ambas as anedotas, embora ocorram em momentos históricos muito diferentes, nos fornecem algumas pistas para interpretar a cultura política salvadorenha e compreender que a ascensão ao poder de Nayib Bukele está longe de ser um fenômeno excepcional. É, pelo contrário, um regresso à velha tradição autoritária e conservadora da "Pulgarcito de América", após um breve impasse entre 2009 e 2019 em que a esquerda governou o país.

Breve história do autoritarismo salvadorenho

Durante a maior parte do século 20, El Salvador esteve muito longe da democracia. De 1931 a 1979 foi governado ininterruptamente pelos militares. Nesse período, violações de direitos humanos e atos de violência política foram cometidos de forma sistemática (incluindo o etnocídio de 1932 que, em resposta a uma insurreição camponesa, culminou no extermínio quase total da população indígena do país).

O ciclo de governos militares começou com Gral. Maximiliano Hernández Martínez, cujo mandato de treze anos (de 1931 a 1944) é o mais longo já registrado na história do país. Posteriormente, por mais de três décadas, sucederam-se uma série de chefes militares que compartilhavam alguns elementos em comum: discursos anticomunistas, defesa dos interesses da oligarquia nacional, alinhamento com as diretrizes emanadas de Washington, corrupção, fraude eleitoral e repressão contra a oposição civil.

A partir da década de 1970, o país viveu um boom no surgimento de organizações políticas e sociais que lutaram pelo fim da ditadura militar e pelo estabelecimento de uma república democrática e soberana. Ainda nessa década, surgiram vários grupos guerrilheiros socialistas que, diante da falta de liberdade política, optaram pela via armada para promover mudança no estado de coisas.

Cinco estruturas políticas se destacam: o Partido Comunista de El Salvador (PCS), as Forças Populares de Libertação (FPL), o Exército Popular Revolucionário (ERP), a Resistência Nacional (RN) e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores da América Central (PRTC). Em 1980, essas cinco estruturas foram unificadas para dar vida ao instrumento histórico da esquerda salvadorenha e um dos protagonistas da história contemporânea do país: a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN).

As tensões sociais amadureceram ao longo dos anos 70 - à ausência de democracia devemos somar a pobreza em que vivia a grande maioria da população e a grande desigualdade na distribuição da riqueza - e, acompanhadas de fatores internacionais (o impulso para o triunfo da Revolução Sandinista de 1979, o contexto global de confronto ideológico entre o bloco capitalista e o bloco comunista), levou a uma guerra civil.

Assim, entre 1980 e 1992, El Salvador foi palco de um dos últimos conflitos relacionados com a Guerra Fria na América Latina: uma guerra civil brutal que deixou cerca de 75.000 mortos e 10.000 desaparecidos. As facções em conflito eram, de um lado, o Governo de El Salvador e suas Forças Armadas (com apoio logístico e econômico dos Estados Unidos) e, de outro, a FMLN.

Deve-se notar que embora na década de 1980 o país fosse governado por três presidentes civis (Álvaro Magaña, José Napoleón Duarte e Alfredo Cristiani), os reais fatores de poder - o Exército, a oligarquia, o clero, o governo norte-americano - permaneceram intactos e continuou a exercer controle sobre as decisões do Estado. Além disso, em um contexto de guerra civil, a cultura de longa data de violações dos direitos humanos se agravou.

Início do bipartidarismo e naufrágio da guerrilha

Carl von Clausewitz disse que a guerra é a continuação da política por outros meios. No caso de El Salvador, porém, os fatores se inverteram: a política partidária foi a continuação da guerra por outros meios.

A guerra civil terminou com a assinatura dos Acordos de Paz em Chapultepec em 1992. A partir de então, a jovem democracia eleitoral salvadorenha se tornou um reflexo institucionalizado das facções beligerantes durante o conflito: um sólido bipartidarismo em que a oligarquia e setores conservadores tradicionais encontraram representação no partido Alianza Republicana Nacionalista (ARENA), enquanto a esquerda foi institucionalizada por meio de uma FMLN convertida em partido político.

A ARENA (partido fundado em 1981 pelo militar de extrema direita e promotor de esquadrões da morte, Roberto d'Aubuisson) chegou ao poder em 1989. No entanto, foi somente a partir de 1994 que todas e cada uma das eleições legislativas e presidenciais em El Salvador começam a ser monopolizadas pela ARENA e pela FMLN. Entre 1994 e 2018, os deputados de ambos os partidos nunca representaram menos de 65% do total da representação legislativa. Além disso, a ARENA ganhou as eleições presidenciais de 1994, 1999 e 2004. Por sua vez, a FMLN ascendeu à presidência em 2009 e 2014.

Seguindo a tendência latino-americana dos anos 90 e início dos anos 2000, os governos da ARENA implementaram um programa neoliberal e privatizador. Nada de novo para El Salvador, que ao longo do século XX esteve alinhado com as políticas econômicas ditadas pelos Estados Unidos. Os governos da ARENA caracterizaram-se por promover reformas destinadas a reduzir o setor público como parte das condições impostas pelos empréstimos para ajuste estrutural recebidos pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional. Tudo isso aconteceu em um contexto de grande opacidade, a ponto de os dois últimos presidentes da ARENA (Antonio Saca e Francisco Flores) serem condenados judicialmente por atos de corrupção.

Além disso, o início da "guerra contra as gangues" gerou um clima de enorme violência: a partir de 2003, os governos da ARENA implementaram os Planos Mano Dura e Super Mano Dura. Seus nomes não deixam muitas dúvidas quanto aos objetivos que perseguem. As estratégias eram altamente repressivas e violavam as liberdades individuais. No entanto, seus resultados em termos de contenção da violência mostram o fracasso de ambos, já que o país dobrou suas taxas de homicídios entre 2001 e 2009. Aos poucos, na percepção do povo salvadorenho, o crime tornou-se o maior problema público.

Depois do desencanto popular com os governos da ARENA, em 2009, El Salvador teve um governo de esquerda pela primeira vez. Daquele ano até 2019 foi governado pela FMLN, primeiro por meio do ex-jornalista Mauricio Funes e depois pelo ex-comandante da guerrilha Salvador Sánchez Cerén.

Os governos da Frente caracterizaram-se pela ênfase nas políticas de combate à pobreza, de forma que o próprio Banco Mundial reconheceu que o país experimentou uma diminuição da taxa de pobreza de 39% em 2007 para 29% em 2017 (de 15 % a 8,5% no caso de pobreza extrema). A FMLN também reduziu a lacuna histórica de desigualdade, pois o coeficiente de Gini passou de 45,8 em 2009 para 38,0 em 2017, seu nível mais baixo.

No entanto, os governos da FMLN não conseguiram implementar uma estratégia eficaz para reverter os altos índices de violência no país. Em 2012, o governo Funes negociou uma trégua entre o Estado e líderes de gangues que gerou uma redução drástica nos homicídios, mas foi amplamente criticada pela opinião pública, além de ter sido declarada ilegal pelo Supremo Tribunal Federal. Por isso, a política foi abandonada em 2013, para retomar o combate frontal contra as gangues legado pela ARENA. O governo Sánchez Cerén continuou com essa estratégia, mas com resultados ainda piores: 2015 foi o ano mais violento da história recente de El Salvador, com 6.670 homicídios, enquanto 2016 ficou em segundo lugar, com 5.280 assassinatos.

Tudo isso, somado aos vários escândalos de corrupção que envolveram membros da liderança da FMLN (incluindo o próprio Mauricio Funes, atualmente asilo na Nicarágua), a baixa popularidade de Sánchez Cerén e a guerra da mídia da direita e seus meios de comunicação - com narrativas que acusavam os guerrilheiros de crimes supostamente cometidos durante a guerra e de tentar instalar uma ditadura comunista - levaram o povo salvadorenho a virar eleitoralmente as costas à FMLN em 2019. Para medir o naufrágio da FMLN: hoje o partido só conta com 4 representantes na Assembleia Legislativa.

Fim do bipartidarismo: o tirano millennial

A carreira de Nayib Bukele, como a de quase toda a classe política salvadorenha ativa, está intimamente ligada ao conflito armado dos anos 1980. Seu pai, Armando Bukele, era um empresário e acadêmico de origem palestina, amigo pessoal de Schafik Handal (Líder histórico do Partido Comunista Salvadorenho e candidato à presidência da FMLN em 2004).

Sua ascensão foi meteórica: primeiro, prefeito do município de Nueva Cuscatlán (2012-2015); depois, prefeito da capital San Salvador (2015-2018) e, finalmente, presidente de El Salvador desde 2019. Aos 37 anos e com apenas sete anos de carreira política, ele ascendeu ao mais alto cargo político nacional. Em menos de três anos construiu uma nova força política, a "Nuevas Ideas", que pôs fim ao bipartidarismo do pós-guerra e que hoje detém a maioria absoluta das cadeiras na Assembleia Legislativa (56 de 84 possíveis).

Dadas as origens de sua família, não é surpreendente que Nayib Bukele tenha iniciado sua carreira política nas fileiras da FMLN. No entanto, depois de ser expulso do partido em 2017 por violações de estatutos, Bukele fez da Frente seu inimigo público número um. Desde a presidência, ele utilizou o grande aparato de comunicação à sua disposição para promover uma campanha de ódio contra os ex-guerrilheiros e seus militantes.

O ponto culminante desse confronto ocorreu em 31 de janeiro de 2021, quando dois militantes da FMLN foram assassinados na capital do país durante atividades de campanha. A resposta de Bukele foi sugerir que as mortes haviam sido uma armação organizada pela própria FMLN. Poucos dias depois, o Ministério Público desmentiu essa versão e determinou que os autores dos homicídios foram três seguranças do Ministério da Saúde. Ou seja, trabalhadores do governo Bukele.

Mas, além disso, Nayib Bukele desenvolve permanentemente o exercício do esquecimento histórico: ele declarou que a guerra civil dos anos 1980 e os Acordos de Paz de 1992 foram "uma farsa" e que "não trouxeram nenhum benefício ao povo". Com isso, além de minimizar os feitos heroicos de milhares de salvadorenhos que lutaram pela melhoria de suas condições materiais de vida, ele esquece que ambos os eventos deram origem à democracia eleitoral em El Salvador, da qual tem se beneficiado.

Em geral, o governo Bukele tem se caracterizado por capítulos de autoritarismo que lembram o passado ditatorial de El Salvador. Entre os mais significativos está a destituição dos ministros do Supremo Tribunal e do Procurador-Geral, realizado pela maioria legislativa próxima a Bukele, ação levou até a OEA e o governo dos Estados Unidos a expressarem sua preocupação com a situação política no país.

Outro capítulo muito lembrado foi o dia em que Bukele ordenou que as Forças Armadas invadissem a Assembleia Legislativa para forçar a aprovação do financiamento de seu plano de segurança. Um verdadeiro golpe contra a frágil democracia salvadorenha.

Em relação à estratégia contra o crime, há ambiguidade: por um lado, Bukele autorizou publicamente a Polícia e as Forças Armadas a usar força letal contra membros de gangues. Por outro lado, o jornal salvadorenho El Faro documentou, com base em arquivos oficiais, a realização de dezenas de reuniões secretas entre funcionários do governo Bukele e líderes de gangues desde junho de 2019, nas quais foi negociada a redução de homicídios no país em troca de benefícios penitenciário.

A chegada de Bukele ao poder é uma restauração das velhas práticas autoritárias em El Salvador. Em um país cansado da violência, Bukele é popular pelo uso de mão pesada e pelo recurso ao Exército. Considerando que na história salvadorenha as ditaduras, o conservadorismo, a violência política e as violações dos direitos humanos sempre andaram de mãos dadas, a preeminência de Bukele no primeiro plano da política nacional acarreta enormes riscos.

A oligarquia salvadorenha, que acusou permanentemente a FMLN de tentar transformar o país em uma ditadura comunista, sente-se muito confortável com o autoritarismo atual: Bukele não representa nenhuma ameaça aos seus interesses econômicos. A esquerda salvadorenha, unida na FMLN, deve empreender com urgência um equilíbrio autocrítico de seus governos para mais uma vez representar uma alternativa aos olhos do povo e, com isso, enfrentar os impulsos autoritários de Bukele e das elites.

Sobre o autor

Mestre em Administração e Políticas Públicas pelo Centro de Pesquisa e Ensino Econômico (CIDE). Salvadorenho na Cidade do México.

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