10 de janeiro de 2023

Bolsonaro aposta na "negação plausível" para não ser incriminado por ataque à democracia

Como Trump nos EUA e Modi na Índia, ex-presidente é ambíguo na incitação à violência e terceiriza crimes para seus apoiadores

Patrícia Campos Mello

Folha de S.Paulo

O bolsonarismo fia-se cada vez mais na estratégia da "negação plausível", abraçada por líderes como o ex-presidente americano Donald Trump e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. A estratégia consiste em usar ambiguidade para instigar apoiadores à violência e terceirizar atos criminosos como ataques golpistas —e assim apagar impressões digitais incriminatórias.

A negação plausível permite ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se dissociar de qualquer sujeira feita em seu benefício.

Os comentários de Bolsonaro sobre os movimentos golpistas, por exemplo, não recorrem à incitação clara, evitando que ele possa ser responsabilizado pela violência que suas palavras eventualmente desencadeiem. Por outro lado, suas declarações também fogem de uma condenação enfática do golpismo, mantendo o extremismo mobilizado.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em sua última live antes de deixar o Brasil rumo aos Estados Unidos - 30.dez.22/Jair Bolsonaro no Facebook

"Manifestações pacíficas, na forma da lei, fazem parte da democracia. Contudo, depredações e invasões de prédios públicos como ocorridos no dia de hoje, assim como os praticados pela esquerda em 2013 e 2017, fogem à regra", disse Bolsonaro horas depois dos atos violentos de golpistas em Brasília no dia 8.

Ele condenou as depredações, mas imediatamente as comparou a atos da esquerda. Lembrando que nem em 2013 nem em 2017 houve depredação e violência no Congresso, STF e Planalto, com pedidos amplos de golpe de Estado.

Não por acaso, a principal campanha de desinformação circulando em grupos bolsonaristas de WhatsApp e Telegram imputa a supostos "petistas infiltrados" os atos de violência na capital federal. Vídeos falsamente mostrando esquerdistas invadindo o Congresso são os mais compartilhados.

Bolsonaro também usou um discurso dúbio para atiçar seus apoiadores em 9 de dezembro.

"Quem decide o meu futuro e para onde eu vou são vocês. Quem decide para onde vai [sic] as Forças Armadas são vocês. Quem decide para onde vai a Câmara, o Senado, são vocês também", disse.

"Vamos vencer", conclamou, sem explicitar a que se referia. Em outra frase lacônica, afirmou: "Se Deus quiser, tudo dará certo no momento oportuno".

Após sua derrota no segundo turno, em 30 de outubro, o então presidente demorou quase 48 horas para se pronunciar. Quando falou, fez uma crítica amena aos bloqueios dos caminhoneiros nas estradas, dizendo que eram "métodos da esquerda", ao mesmo tempo em que legitimou os movimentos golpistas em seu favor afirmando serem "fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral".

Outro instrumento da estratégia de negação plausível são os chamados "apitos de cachorro". Apitos de cachorro usam sons inaudíveis aos humanos, que só os cães conseguem ouvir. Da mesma maneira, ao incitar violência ou usar racismo e xenofobia para mobilizar apoiadores radicalizados, líderes usam palavras e expressões em código, que só serão reconhecidas por eles.

"Ao longo do meu mandato, sempre estive dentro das quatro linhas da Constituição respeitando e defendendo as leis, a democracia, a transparência e a nossa sagrada liberdade", escreveu o ex-presidente em rede social após a violência de 8 de janeiro.

No discurso golpista que fez em 9 de dezembro, Bolsonaro disse que as Forças Armadas "são um dos grandes responsáveis pela nossa liberdade". E completou: "Quantas vezes eu disse, ao longo desses quatro anos, que temos algo mais importante que a própria vida, que é a nossa liberdade?"

A palavra "liberdade" é entendida pelos bolsonaristas no contexto das supostas tentativas do STF, da imprensa e do establishment de censurar e sabotar Bolsonaro e seus apoiadores.

A defesa dessa "sagrada liberdade" justificaria ataques contra "ditadores" do Supremo, do Congresso, da esquerda e da mídia. Ou seja, movimentos golpistas seriam a reação dos "patriotas" e "cidadãos de bem" aos ataques da esquerda à sua liberdade de defender sua família, sua religião e preferências políticas.

O ex-presidente Trump também recorreu várias vezes à ambiguidade para insuflar seus seguidores, ao mesmo tempo em que negava ter qualquer relação com a violência que se seguia.

Em setembro de 2020, em um debate presidencial, ele se recusou a condenar o grupo extremista de direita Proud Boys e, dirigindo-se a eles, afirmou: "Stand back and stand by. (Esperem e estejam preparados, em tradução livre). Alguém tem que fazer alguma coisa em relação à esquerda e aos antifas."

Três meses depois, os Proud Boys seriam a tropa de choque da invasão do Capitólio, em que radicais tentaram impedir a certificação da vitória de Biden na eleição.

Ao longo do governo, Trump usou frequentemente apitos de cachorro como "americanos de verdade", "maioria silenciosa" ou "o movimento" para se referir a seus apoiadores, na maioria brancos, em oposição a expressões pejorativas para mexicanos, estrangeiros e negros.

Após sua derrota na eleição, porém, ele abandonou qualquer pretensão de sutileza. Em 19 de dezembro, o republicano tuitou: "Grande protesto em D.C. (Washington DC) em 6 de janeiro". E acrescentou "Estejam lá, vai ser uma loucura".

O indiano Narendra Modi também empodera os radicais hindus, importantes para mobilizar sua base mais radical. Quando há ataques dos extremistas contra muçulmanos, ele costuma silenciar ou demorar para condenar a violência —e sempre tem o recurso de dizer que não teve nada a ver com isso. Tal qual Trump e Bolsonaro.

É o contrário do lema do ex-presidente americano Harry Truman, que mantinha em sua mesa de trabalho uma placa com os dizeres: "The Buck Stops Here" (em tradução livre, a responsabilidade para aqui). Era a ideia de Truman de que o presidente seria, em última instância, responsável por seus atos e decisões de seu governo.

O objetivo da negação plausível é sempre o mesmo —evitar ser responsabilizado por seus atos.

Como lembrou Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP, em artigo na Revista Piauí, lideranças petistas foram condenadas pelo STF por terem "domínio do fato" em relação aos crimes do mensalão. A dúvida é se o Judiciário voltará à teoria para desmontar a negação plausível e, eventualmente, responsabilizar Bolsonaro.

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