9 de junho de 2021

A economia geopolítica de Marx: "As relações das nações produtoras"

Este breve artigo explora a concepção das relações internacionais do mundo capitalista presente na última seção dos Grundrisse, intitulada “Bastiat e Carey”. Mostra que, ao contrário da tendência generalizada de considerar Marx como um teórico da “globalização”, Marx na verdade levava a sério a existência dos Estados-nação e das economias nacionais, e concebia suas inter-relações como decorrentes das contradições do capitalismo.

Radhika Desai


Volume 46 Issue 1, March 2022

Economia geopolítica é o termo que utilizo para designar a análise histórico-materialista dos assuntos internacionais que pode compreender com sucesso a evolução da ordem mundial capitalista até à era contemporânea da multipolaridade (Desai 2013). Está integrada no pensamento de Karl Marx, embora não esteja totalmente desenvolvida. Talvez a sua expressão mais clara possa ser encontrada nos seus comentários fragmentários sobre o economista mercantilista “ianque”, Henry Carey, nas páginas finais dos Grundrisse (Marx 1973). Uma parte considerável do que escrevi sobre economia geopolítica teve de se centrar na razão pela qual ela é necessária e na razão pela qual os entendimentos existentes, incluindo a maioria dos marxistas, não servem. Neste breve artigo, limitarei a minha crítica às linhas gerais e reflectirei de forma mais simples e construtiva sobre a forma como a economia geopolítica emerge das ideias de Marx, especificamente dos seus comentários sobre Carey, embora pontos e comentários relacionados perpassem os escritos de Marx (Desai 2013, 36-43).

Na última secção dos Grundrisse, [NR] “Bastiat e Carey”, Marx apresenta o protecionista Henry Carey como uma exceção ainda maior ao declínio geral da economia política após Ricardo do que o comerciante livre Frédéric Bastiat. Tendo anteriormente criticado Carey, entre outras coisas, pela sua crença na harmonia das relações de classe burguesas e pela defesa implícita da escravatura norte-americana (Marx & Engels 1975; Perelman 2008),[1] Marx tem agora um objetivo bastante diferente. Marx analisa o discurso de Carey, separando as ideias dos pontos cegos, para situar o seu protecionismo num entendimento mais amplo das relações internacionais do capitalismo.

Marx perdoa Carey por considerar “naturalmente” as “relações de produção no seio das quais este enorme mundo novo [os Estados Unidos, terra natal de Carey] se desenvolveu tão rapidamente, tão surpreendentemente e tão felizmente” como as “relações eternas e normais de produção social”. Ao mesmo tempo, Marx não deixa de assinalar que, ao atribuir todas as “perturbações” desta ordem harmoniosa aos “excessos e interferências do Estado na sociedade burguesa”, Carey não considera “em que medida estas influências estatais, a dívida pública, os impostos, etc, resultam das próprias relações burguesas”.

A aversão de Carey a que os estados perturbem o que ele considerava os processos harmoniosos do capitalismo, observa Marx, “termina com o apelo à intervenção do estado, para que o puro desenvolvimento das relações burguesas não seja perturbado por forças externas”, a saber, “a influência destrutiva da Inglaterra, com a sua luta pelo monopólio industrial, sobre o mercado mundial”.[2] Aqui, Marx desenvolve a auto-contradição inadvertida de Carey:

... com Carey, a harmonia das relações de produção burguesas termina com a mais completa desarmonia destas relações no terreno mais grandioso onde elas aparecem, o mercado mundial, e no seu maior desenvolvimento, como relações das nações produtoras. Todas as relações que lhe parecem harmoniosas no interior de fronteiras nacionais específicas ... parecem-lhe desarmónicas onde aparecem na sua forma mais desenvolvida - na sua forma de mercado mundial - como as relações internacionais que produzem o domínio inglês no mercado mundial ... A concentração de capital num país e o efeito dissolvente desta concentração só lhe apresentam aspectos positivos. Mas o monopólio do capital inglês concentrado e o seu efeito dissolvente sobre os capitais nacionais mais pequenos de outros países é desarmónico. O que Carey não compreendeu é que estas desarmonias do mercado mundial são meramente as expressões finais adequadas das desarmonias que se fixaram como relações abstractas dentro das categorias económicas ou que têm uma existência local à escala mais pequena. ... Esta contradição constitui a originalidade dos seus escritos e dá-lhes o seu significado.[3]

Os elementos centrais do que eu considero economia geopolítica estão contidos nesta passagem. Eles vão diretamente contra muitos entendimentos contemporâneos que pensadores tão diversos como Friedrich List e Antonio Gramsci teriam chamado de “cosmopolitas”, porque desconsideram o papel crítico das nações, dos estados-nação e das economias nacionais no capitalismo.

Tais entendimentos impedem qualquer compreensão histórico-materialista efectiva do que move as relações inter-nacionais. Floresceram em boa parte porque – precisamente quando V. I. Lenine e os bolcheviques reconheceram a importância dos estados-nação no capitalismo mundial – o marxismo nos países ocidentais sofreu um rude golpe. A economia neoclássica surgiu na década de 1870 em oposição teórica, metodológica e política direta ao marxismo. Este desenvolvimento deveria ter aguçado e aprofundado o marxismo, estendendo a sua crítica da economia política a uma nova abordagem ainda mais problemática e superficial. Embora alguns marxistas, sobretudo Rudolf Hilferding e Nikolai Bukharin, tenham contestado as suas afirmações ainda no início do século XX, com Bukharin a proclamá-la famosamente como “a teoria económica da classe ociosa” (Bukharin 1972; Hilferding et al. 1949), já na década de 1880, muitos outros, remontando pelo menos ao marxista legal russo Mikhail Tugan Baranovsky, estavam a seguir o que Bukharin criticou como uma “política de conciliação teórica” em relação a ela (Desai 2020). À medida que mais e mais intelectuais formados nesta disciplina burguesa chegavam ao marxismo, ao invés de criticarem a sua própria formação, procuravam encaixar o marxismo no seu quadro antitético.

O resultado foi a “análise económica marxista”. As suas correntes dominantes impedem-nos de compreender a crítica de Marx à economia política na sua plenitude e originalidade. A economia neoclássica centrava-se na troca e não na produção, nos preços e não no valor, e nos indivíduos e não nas classes. Era a-histórica e artificialmente separava uma “economia” do resto da realidade social. Não conseguindo compreender o capitalismo como produção contraditória de valor, os economistas marxistas rejeitaram, de diferentes maneiras, a análise do valor de Marx sobre o capitalismo porque, segundo muitos, sofria de um “problema da transformação”. Não podia “transformar” valores em preços de uma forma compatível com taxas de lucro iguais entre capitais que empregam proporções variáveis de trabalho e capital. Muitos também rejeitaram a descrição de Marx das principais contradições do capitalismo. Em particular, muitos argumentaram que ele não acreditava que a escassez de procura fosse uma, se não a, contradição do capitalismo e muitos outros que ele estava errado ao pensar que os lucros tendiam a cair. Com a análise do valor e as contradições chave do capitalismo assim postas de lado, a corrente principal da análise económica marxista ostentava agora uma concepção mais ou menos livre de contradições e ahistórica do capitalismo (Desai 2016, 2017, 2018).[4]

Esta conceção era também cosmopolita. Com o papel central que os estados desempenham na gestão das contradições do capitalismo através de políticas internas (por exemplo, assistencialistas ou repressivas) e internacionais (geralmente imperialistas e anti-imperialistas), as relações competitivas, conflituosas e colusivas entre os estados do mundo capitalista são escritas fora do roteiro. O capitalismo mundial pode agora ser concebido em termos daquilo a que chamo as duas ficções ricardianas, a Lei de Say e a Vantagem Comparativa. Aparece como uma economia mundial única, perfeitamente unificada pelos mercados, como nos discursos do comércio livre ou da globalização, ou por um único Estado, como nos discursos da hegemonia norte-americana ou do império. A divisão do mundo capitalista em Estados nacionais torna-se um mero artefacto “cultural” (Desai 2009). As economias nacionais tornam-se elementos da imaginação e o que a maioria dos economistas marxistas tem a dizer sobre assuntos internacionais tem muito pouca relação com a análise de Marx do capitalismo como produção contraditória de valor. Em seu lugar, substituem-na por uma celebração schumpeteriana da sua alegada prometéica expansão produtiva. Os marxistas de outras disciplinas aceitaram simplesmente esta concepção do capitalismo. Para a maior parte deles, Marx torna-se uma espécie de profeta da globalização, um “império da sociedade civil” (Rosenberg 1994, para uma crítica ver Desai 2010).

Quando lemos Marx sem estes prismas distorsivos, surge uma imagem completamente diferente. As poucas páginas que Marx dedica a Carey no final dos Grundrisse devem tornar este facto bem claro.

A materialidade das nações “cresce a partir das próprias relações burguesas” Quando Marx repreende Carey por não compreender que aquilo que considera “os excessos e as interferências do Estado na sociedade burguesa... crescem a partir das próprias relações burguesas”, aponta para o núcleo de uma economia geopolítica a que chamei a materialidade das nações. Contrariamente à tendência para conceber um “capitalismo puro” sem necessidade de ação do Estado, o carácter anárquico e explorador do capitalismo significa que os Estados não só estão envolvidos no estabelecimento do capitalismo, como continuam a estar envolvidos na gestão das economias depois disso. A afirmação de alguns marxistas de que a famosa Parte Oito de O Capital, Volume I, descreve a expropriação imposta pelo Estado (o que Marx criticou como “a chamada acumulação primitiva” ou acumulação original) como confinada às origens do capitalismo é falsa. É avançada por todos os tipos de marxistas que trabalham sob falsas interpretações de Marx ou ansiosos por reivindicar uma falsa originalidade para si próprios.

Na realidade, ao longo da vida do capitalismo, os Estados têm de gerir as consequências das contradições do capitalismo. Ao fazê-lo, têm de percorrer uma linha ténue. Por um lado, têm de ser suficientemente eficazes para assegurar a continuidade do capitalismo. Por outro lado, têm de ser suficientemente comedidos ou suficientemente sub-reptícios nas suas intervenções, de modo a não provocar o questionamento popular da utilidade da manutenção da ordem capitalista. Não podem dar-se ao luxo de permitir que as pessoas se apercebam de que a ação pública pode substituir a do capital privado. Se esse questionamento fosse suficientemente longe, chegaria à legitimidade de deixar as rédeas da “economia” (na realidade, o controlo das possibilidades de lucro) nas mãos dos capitalistas. Por exemplo, a desigualdade que o capitalismo gera deve ser gerida através da promoção de compromissos de classe, impedindo-os de restringir as prerrogativas capitalistas a ponto de pôr em causa a existência do capitalismo.

Em segundo lugar, contrariamente à tendência schumpeteriana dos marxistas para atribuir ao capitalismo uma capacidade prometeica de crescimento e desenvolvimento, em que o sistema se limita a reparar as suas próprias contradições, de modo a que a solução para a crise “surja por si mesma” (Schumpeter 1934), o capitalismo tem historicamente tendência para a estagnação. Os Estados tiveram, por isso, de desempenhar um papel fundamental na organização da sua expansão: o imperialismo no século XIX e no início do século XX e, depois de o poder imperial do Ocidente ter declinado com a descolonização, através da gestão keynesiana da procura e, no caso das potências capitalistas mais bem-sucedidas, através da política industrial ao longo da história do capitalismo.

A economia geopolítica liga assim o marxismo à vasta literatura sobre o desenvolvimento dos Estados nos tempos modernos, um verdadeiro “outro canhão” (Reinert & Daastøl 2004), oposto à economia neoclássica, que remonta a António Serra, passando por Friedrich List e Henry Carey até figuras contemporâneas como Alice Amsden, Robert Wade, Ilene Grabel ou Ha-Joon Chang. Todos eles sublinharam a centralidade dos Estados na gestão do desenvolvimento do capitalismo.

Por último, os Estados devem gerir as tendências endógenas de crise do capitalismo. Embora existam razões para acreditar que Marx considerou algumas delas, sobretudo a escassez de procura e, sem dúvida, a tendência para a queda das taxas de lucro, as tendências de crise mais fundamentais afectam todas as esferas do capitalismo e podem assumir formas de classe intra-capitalistas, resultantes da concorrência entre capitais, ou formas inter-classes, resultantes da luta de classes.[5]

A materialidade das nações implica um desenvolvimento desigual e combinado

A maior parte dos marxistas nunca se refere ao desenvolvimento desigual e combinado. Entre os poucos que o fazem, a maioria limita-se a falar de desenvolvimento desigual, referindo-se a um domínio ocidental imutável, uma tendência mais desenvolvida entre os geógrafos (Smith 2010). O número ainda menor que fala de desenvolvimento combinado, refere-se apenas à combinação passiva de formas arcaicas e modernas nos países em desenvolvimento (Davidson 2016) ou à coexistência global de sociedades em vários estágios de desenvolvimento (Rosenberg 2016). Um número ainda mais pequeno fala dela como um projeto ativo dos Estados, mas apenas dos países socialistas atrasados (Löwy 1981). A minha Economia Geopolítica é o único trabalho que conheço que interpreta o desenvolvimento combinado de uma forma que também inclui o desenvolvimento combinado capitalista dos Estados Unidos, da Alemanha ou do Japão no final do século XIX e início do século XX e incluindo o desenvolvimento combinado “comunista” da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, da República Popular da China e das economias emergentes dos nossos dias.

Embora a ideia de desenvolvimento desigual e combinado seja habitualmente atribuída a Leon Trotsky e o seu locus classicus seja considerado o primeiro capítulo da sua História da Revolução Russa, as suas ideias essenciais já se encontravam incorporadas no pensamento de Marx e Engels, bem como de muitos marxistas posteriores [6] , e podemos ver isso claramente nos comentários de Marx a Carey. Ele considera que a contradição que Carey revela inadvertidamente – a contradição entre “a luta da Inglaterra pelo monopólio do mercado mundial” e a necessidade de proteger a economia dos EUA contra esse monopólio – é a grande contribuição original de Carey. Ao esforçar-se por manter o seu monopólio, a Inglaterra procura perpetuar a desigualdade, ao passo que, ao esforçar-se por desafiá-lo, os Estados Unidos estão empenhados num desenvolvimento combinado. Tais lutas constituem um dos dois motores fundamentais das relações internacionais do mundo capitalista (sendo o outro a competição entre os principais estados capitalistas). Os escritos marxistas do início do século XX sobre o imperialismo, que viam isto claramente, devem ser considerados as primeiras teorias propriamente ditas das relações internacionais capitalistas. Estas teorias foram as primeiras a propor que

as relações internacionais do mundo capitalista são essencialmente relações burguesas

Só quando o desenvolvimento desigual e combinado é concebido desta forma é que nos permite compreender o que está em causa nas lutas internacionais. Elas consistem em nações dominantes que procuram preservar ou intensificar a desigualdade que as privilegia. Quando bem-sucedidas, remeteriam o resto do mundo para uma relação de complementaridade, em que as nações dominantes monopolizam a produção de alto valor e as restantes especializam-se na produção de baixo valor. As nações concorrentes rejeitam este estado de coisas e procuram, através do desenvolvimento dirigido pelo Estado, recomendado por Friedrich List ou Henry Carey[7] e prosseguido por uma longa linhagem de desenvolvimentistas de sucesso, começando pela Alemanha, Estados Unidos e Japão, estabelecer relações de semelhança. Na década de 1930, esta linhagem havia adquirido um novo ramo – o do desenvolvimento combinado não capitalista ou “comunista” – e a sua importância foi sublinhada pelo êxito económico da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, anteriormente, e pelo da República Popular da China, atualmente.

As lutas desencadeadas pela escolha entre complementaridade e pobreza, por um lado, e semelhança e prosperidade, por outro, têm lugar, diz Marx, “no terreno mais vasto onde [as relações burguesas] aparecem, o mercado mundial, e no seu desenvolvimento mais vasto, como relações das nações produtoras”. Note-se aqui a utilização das palavras “produtoras”, em vez de capitalistas. Por um lado, Marx está claramente a falar de relações capitalistas. Por outro, deixa em aberto a possibilidade de uma das partes desta luta não ser capitalista. Provavelmente, ele tinha em mente a possibilidade de serem pré-capitalistas, embora hoje também possam ser pós-capitalistas. E compreender a interação exige-nos não só recorrer à vasta literatura sobre as sociedades pré-capitalistas e a sua “articulação” com as sociedades capitalistas para compreender as suas relações internacionais, mas também desenvolver uma compreensão histórico-materialista da forma como as sociedades pós-capitalistas e capitalistas se relacionam entre si. Um sub-ramo muito interessante deste processo envolveria também a reflexão sobre a forma como as sociedades capitalistas social-democratas reformadas se relacionam com todas as outras.

As contradições do capitalismo na cena mundial

Nas observações sobre Carey, Marx também assinala que as “desarmonias do mercado mundial” de que Carey se queixa são “meramente as expressões adequadas últimas das desarmonias que se fixaram como relações abstractas dentro das categorias económicas ou que têm uma existência local à escala mais pequena”. O que Marx está a dizer aqui, o que critica Carey por não se aperceber, é que as desarmonias ou contradições internacionais de que Carey se queixa não são mais do que as “expressões adequadas últimas” das contradições internas do capitalismo que “têm uma existência local à escala mais pequena” no palco mundial.

A implicação crítica é que estas contradições internas são os motores das relações internacionais do capitalismo, bem como da sua evolução interna, criando os imperativos e estabelecendo os limites das acções do Estado. É, portanto, tarefa da economia geopolítica desenvolver um entendimento de como os Estados actuam para resolver as contradições do capitalismo. Procuram resolvê-las à custa das classes trabalhadoras nacionais ou dos países mais pobres ou menos poderosos no estrangeiro, ou através de uma combinação dos dois? Que factores ditam esta escolha e o equilíbrio entre as alternativas? Esta análise deve incluir as formas caraterísticas que as acções do Estado assumem a nível interno e internacional. A compreensão do alcance destas acções deve ser histórica e não abstrata.

Devo terminar aqui, mas não sem antes notar que esta lista de pontos é inevitavelmente parcial. Outros factores a incluir numa discussão mais desenvolvida seriam

Como é que o desenvolvimento combinado começou a limitar o imperialismo.
Se o avanço da multipolaridade no século XXI terá hoje resultados menos letais do que no passado, quando conduziu à Primeira Guerra Mundial e, em caso afirmativo, porquê.
O papel das teorias cosmopolitas enquanto ideologias dominantes do mundo capitalista. No mínimo, poder-se-ia dizer o seguinte.
A tese da ideologia internacionalmente dominante

Diz-se que as ideias dominantes de qualquer sociedade são as ideias das classes dominantes, ideias que servem os seus interesses e mantêm o seu poder. Se assim for, as ideias dominantes sobre a ordem mundial tenderiam, compreensivelmente, a ser as das potências dominantes. E poderíamos esperar que essas ideias dominassem não porque estivessem corretas, mas porque são úteis para perpetuar o domínio das potências dominantes, principalmente através da mistificação das verdadeiras fontes de riqueza e poder nacionais. Este era, por acaso, o cerne da argumentação de pensadores proteccionistas como Carey e List, e Marx apoia-o claramente nas passagens aqui discutidas.

Vale a pena salientar aqui que Marx criticou as duas ficções ricardianas que estão no cerne das visões cosmopolitas da ordem mundial sustentadas pela economia neoclássica, a partir das quais também entraram na economia marxista: A Lei de Say e a Vantagem Comparativa. A crítica de Marx à Lei de Say, por fingir que a troca não é mediada pelo dinheiro e concebê-la falsamente como escambo (barter), é bem conhecida, embora não seja frequentemente apreciado que Keynes, que atualizou a crítica da Lei de Say, também admirou a crítica de Marx à Lei de Say como um golpe de génio e até adoptou a fórmula geral do capital de Marx, distinguindo o circuito do capital do circuito das mercadorias ao elaborar uma versão inicial da sua própria análise (Claudio Sardoni 1997). A crítica de Marx à vantagem comparativa é comparativamente desconhecida. No entanto, a sua discussão do comércio externo como um dos mecanismos que contrariam a queda da taxa de lucro rejeita as principais premissas da teoria da vantagem comparativa ricardiana, enquanto o seu tratamento das relações internacionais de valor aponta para condições de troca desigual (renda imperial). Em termos mais gerais, Marx e Engels estavam perfeitamente conscientes de que o comércio livre era o discurso egoísta dos ingleses. Seria bom que hoje mais marxistas seguissem Marx ao invés de Ricardo e se tornassem menos crédulos em relação ao comércio livre e aos seus avatares do século XX, a hegemonia, a globalização e o império dos EUA.

Notas

[1] Marx e Engels (1975: 78-79, 212-215). Perelman (2008) é uma discussão útil sobre os conflitos de Marx com Carey, que também propõe uma explicação surpreendente para a (apenas) aparente celebração, por parte do primeiro, dos “Resultados futuros do domínio britânico na Índia”.
[2] Marx (1973: 884-885).
[3] Marx (1973: 886-887).
[4] Elaborei esta crítica numa série de ensaios: Ver Desai (2020); “Political Economy”.
[5] Desai (2016 e 2021) contém uma discussão sistemática das fontes e formas das crises capitalistas.
[6] Desai (2013: 36-53).
[7] O tratamento relativamente simpático que Marx dá aqui a Carey americano parece contrastar fortemente com as suas observações desdenhosas sobre o seu compatriota Friedrich List. Defendo que esta aparência é enganadora em Desai (2012).

Referências

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Claudio Sardoni C (1997) Keynes e Marx. In: Harcourt GC e Riach P (eds) A 'Second Edition' of the General Theory, vol. 2. London: Routledge, pp. 191-207.
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Desai R (2010) The absent geopolitics of pure capitalism [A geopolítica ausente do capitalismo puro]. World Review of Political Economy 1(3): 463-484.
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Biografia

Radhika Desai é professora no Departamento de Estudos Políticos e diretora do Grupo de Pesquisa em Economia Geopolítica da Universidade de Manitoba, em Winnipeg, Canadá. É autora do livro Geopolitical Economy: After US Hegemony, Globalization and Empire (Economia Geopolítica: Após a Hegemonia dos EUA, a Globalização e o Império).

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