Uma entrevista com
Cory Doctorow
O cofundador da Microsoft, Bill Gates, fala no almoço de verão do Economic Club of Washington em Washington, DC, em 24 de junho de 2019. (Nicholas Kamm / AFP via Getty Images) |
Entrevista por
Luke Savage
Tradução / A pandemia de COVID-19 serviu pelo menos como estudo de caso incrivelmente instrutivo sobre o que o dogma neoliberal, que agora governa nossas vidas, realmente significa quando não está camuflado. Até aqui, apenas um punhado de empresas privadas com fins lucrativos controlam o conhecimento e a experiência necessárias para produzir vacinas atualmente – com pessoas em países mais pobres não sendo vacinadas até pelo menos 2024. Não precisava ser assim, claro.
Proporcionada por um regime monopolista de propriedade intelectual (PI) global, e com a devida vênia para o bilionário Bill Gates, a Big Pharma e seus aliados políticos tiveram grande sucesso em controlar e definir a narrativa durante o lançamento inicial da vacina – transformando a esperada solução de uma crise global em mais uma ocasião para lucros corporativos e, neste caso, às custas da saúde pública e de um fim rápido para a pandemia.
O panorama, entretanto, pode estar mudando lentamente. Com o recente anúncio do governo Biden de que apoiará uma renúncia às proteções de PI para vacinas contra a COVID-19, a indignação moral mundial em relação ao apartheid da vacina pode finalmente ter um impacto. Quanto ao próprio Gates, o bilionário está atualmente passando por um divórcio complicado e pode estar enfrentando a crise mais séria envolvendo sua imagem pessoal meticulosamente elaborada desde as ações antitruste dos anos 1990.
O autor e escritor de ficção científica Cory Doctorow é um crítico de longa data das leis restritivas de propriedade intelectual e da ideologia que as inspira. Em uma conversa ampla e fluída, Luke Savage da Jacobin falou com Doctorow sobre a história do termo “propriedade intelectual”, o compromisso obstinado de Bill Gates com o monopolismo e a psique dos super-ricos globais. Victor Wolfenbuttel e Leonardo Foletto – autor do recém lançado A Cultura é Livre: Uma história da Resistência Antipropriedade (Autonomia Literária, 2021), que também discute o tema da propriedade intelectual e das patentes através dos tempos – traduziram o texto para a Jacobin Brasil.
Luke Savage
Antes de entrarmos em assuntos relacionados a vacinas ou Bill Gates, eu gostaria de começar fazendo uma pergunta aberta sobre propriedade intelectual. O conceito de PI, sendo aplicado às vacinas contra COVID-19 ou qualquer outra coisa, se tornou tão axiomático que acho que as pessoas realmente não o questionam. Você escreveu sobre a história deste termo e sua adoção pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI, em inglês WIPO), e também o chamou de “um eufemismo perigoso que nos leva a todos os tipos de raciocínios falhos sobre o conhecimento.”
Você poderia desenrolar isso um pouco? Qual é a história recente desse termo e por que ele é perigoso e mal compreendido?
Cory Doctorow
Devo dizer que mudei um pouco meu pensamento. Eu ainda acho que este termo é perigoso. No entanto, eu não penso mais que seja mal interpretado, mas podemos chegar nesse ponto.
Na pré-história do termo, havia um monte de regimes – que agora consideramos propriedade intelectual – que surgiram primeiro por meio da commom law e, em seguida, por estatuto. O copyright, você sabe, tem sua história em guerras comerciais entre editoras inglesas e escocesas. Então você tem o conceito de marca registrada, que surge dos padrões da concorrência desleal, e era inicialmente sobre essa ideia de que, se eu saísse e comprasse, digamos, uma garrafa de Coca, e o que estivesse dentro dela fosse Pepsi, ou graxa para sapato ou, você sabe, urina de cabra, eu, como indivíduo, não teria realmente muitos recursos para processar quem quer que tenha feito o envase incorreto daquela garrafa de Coca, mas a Coca teria. E então a Coca é meio que delegada a fazer cumprir sua marca em nome de seus consumidores para impedir a confusão, da mesma forma que o copyright confere um direito exclusivo a um autor sobre uma obra fixa de expressão criativa. A marca registrada, por outro lado, não. A marca registrada não te impede de dizer: “acho que minha Pepsi é melhor do que Coca”, ou “esta tinta funciona em uma impressora HP”, ou “iPads são piores do que tablets com Android”.
A patente era uma terceira coisa, e sua história está em coisas como as Patentes Reais, onde monarcas distribuíam direitos exclusivos e monopólios como uma forma de patrocínio (por exemplo, todos que desejam fazer fitas de prata precisam obter uma licença) .
Quando foram reformadas nas economias de mercado, as patentes tornaram-se um quiproquó onde você tinha inventores que desperdiçavam muita energia tentando tornar as máquinas quebráveis e difíceis de entender caso você tentasse desmontá-las, mas quisesse recuperar seu investimento. E então dissemos: “Tudo bem, se você nos contar como sua máquina funciona, nos dar um modelo e publicar os esquemas, nós lhe daremos o direito exclusivo de quatorze anos sobre sua invenção.”
Ao longo dos anos, todos estes conceitos mudaram de maneiras diferentes, e todos eles se expandiram de modo uniforme, mas era raro que tivéssemos que nos referir a todos de uma só vez.
Da mesma forma que não temos um nome para atum, relógios cuco e miniaturas de D&D que os englobe como uma única categoria, não tínhamos uma categoria que fosse patentes, marcas registradas e direitos autorais. Todas eram coisas que as empresas poderiam usar, mas não eram a mesma coisa. Se tivéssemos que falar sobre elas como uma categoria, nós as chamaríamos de monopólios ou monopólios de criadores.
E ter um monopólio é uma coisa difícil de defender! Se você está ansioso porque o seu monopólio não está lhe ajudando muito e vai ao seu legislativo dizer: “Meu monopólio precisa ser maior”, você terá uma audiência meio cética.
Então, houve esse outro termo, que apareceu pela primeira vez na década de 1930, mas realmente ganhou força na década de 1970: “propriedade intelectual”. A propriedade intelectual foi popularizada por um órgão da indústria chamado Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), que convenceu as Nações Unidas a sancioná-la como uma agência especializada da ONU, como por exemplo a UNICEF. O objetivo era defender a propriedade intelectual, por isso a OMPI embarcou em um programa para substituir o termo “monopólio” por “propriedade intelectual”, por razões óbvias. Se a propriedade agora é a religião do estado, argumentar que seus direitos de propriedade estão sendo minados é basicamente um apelo para evitar a heresia: “A blasfêmia está em andamento! Tragam o rastreador de bruxas! “
Foi uma estratégia de muito sucesso, e os defensores da cópia/céticos do copyright/ creative commons/código aberto/software livre saudaram o termo propriedade intelectual com grande ceticismo, argumentando que deveríamos usar o termo monopólio se quiséssemos falar sobre todas elas de uma só vez.
O que devemos fazer é sermos precisos. Se estamos falando sobre direitos autorais, deveríamos chamar de direitos autorais. Se estamos falando sobre um segredo comercial, devemos chamar de segredo comercial. Não devemos amontoá-los todos juntos. No caso de agrupá-los, vamos apenas chamá-los do que são: monopólios.
Em resposta a tudo isso, os criadores – principalmente os detentores de direitos autorais, mas, secundariamente, alguns detentores de patentes – disseram “Foda-se, monopólio… Eu escrevi este livro. Eu sou o único que tem permissão para vendê-lo a um editor. ” Mas a definição de monopólio em uma economia de mercado é a capacidade de definir preços e, se você acha que eu posso nomear meu preço com meu editor… Eu gostaria que você falasse com meu agente. Não é um monopólio nesse sentido.
Mas é aqui que fica interessante. O mercado está cheio de monopólios verdadeiros. Tivemos quarenta anos de tolerância antitruste que criaram uma grande tendência ao monopólio onde mesmo cadeias de suprimentos, em que agentes importantes eram céticos em relação ao monopólio, foram forçadas a aceitar essa situação.
O melhor exemplo é o mercado de saúde dos Estados Unidos. À medida que os monopólios farmacêuticos se tornaram mais evidentes por causa de fusões, e empresas farmacêuticas passaram a controlar carteiras muito grandes de medicamentos – e fariam os preços subirem em todos eles, negando o acesso se você não pagasse acima das possibilidades do outro, e assim por diante -, os hospitais se viram cada vez mais confrontados com o modelo de um único comprador concentrador, fazendo com que os próprios hospitais não pudessem formar um cartel. Eles não podiam se reunir e dizer: “Nenhum dos hospitais no sul da Califórnia vai comprar o seu medicamento contra o câncer, a menos que você baixe o preço.” Isso é ilegal sob a lei antitruste.
O que eles podiam fazer era se fundir. E se eles se fundissem, eles poderiam ter o poder de compra na mesma empresa: em vez de ter dois CEOs ligando um para o outro e fazendo um acordo ilegal para não comprar remédios a menos que os preços caíssem, dois presidentes de divisões da mesma empresa poderiam se reunir em sua sala de diretoria e ter exatamente a mesma discussão – mesmo se uma semana antes eles tivessem sido os CEOs de duas empresas rivais.
Aí os hospitais se fundem, e aí começam a apertar os parafusos das seguradoras, que era um setor desorganizado, outrora muito local e um tanto competitivo. Eles disseram: “Vamos cobrar o que quisermos por esses procedimentos, e você vai pagar por isso, ou não vamos ver seus pacientes”. E então as seguradoras começaram a monopolizar.
Há apenas um setor que não pode monopolizar e que também não pode formar um cartel, e esse setor é o do trabalho (ou do trabalho e dos pacientes, neste caso). Então você vê médicos e enfermeiras se deparando com salários em decadência e condições de trabalho piores, pacientes pagando mais por atendimentos piores. E isso porque o poder de barganha desigual que surge daí força o monopólio até que nenhum monopólio possa ser forçado (e então quem não pode monopolizar se ferra).
Portanto, o termo “propriedade intelectual”, naquele mundo de monopólios, na verdade tem um significado comercial muito claro e altamente específico: PI é qualquer regra que eu possa invocar e que me permitirá controlar a conduta de meus clientes, meus críticos e meus concorrentes. Se eu tiver uma patente, posso decidir quem pode fazer um produto que concorra com o meu. Se eu tiver um copyright, posso decidir quem pode fazer produtos que integram esse copyright. E se eu puder usar partes exóticas dos direitos autorais, como as disposições anti-evasão da “Modernização de Direitos Autorais do Canadá e da Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital dos EUA” (Canada’s Copyright Modernization and the US Digital Millennium Copyright Act), posso projetar um produto para que, se você quiser realizar uma auditoria de segurança nele e descobrir de forma independente se ele é adequado ou não, o ato de engenharia reversa torna-se uma violação de direitos autorais. Um crime real.
O que você ganha é um novo tipo de monopólio híbrido com monopólio do autor – que não tem utilidade para o autor como monopólio, exceto talvez como um elemento de política trabalhista, mas não é um monopólio real, pois não proporciona o controle de preços – e esse monopólio pode ser fundido com um monopólio de poder de mercado. E agora você não precisa de um cartel ou outra coisa para defender seu monopólio.
Agora você pode defendê-lo defendendo sua PI e dizendo: “Veja bem, é assim que é. A Universal possui 30 por cento de todas as músicas gravadas. Licenciamos essa música apenas para amostras de pessoas que fazem parte do portfólio de artistas da Universal. Se você quer fazer hip hop, precisa transferir seus direitos para a Universal. Somos apenas nós defendendo nossos direitos autorais! Não é uma prática anticompetitiva. Não estamos empurrando todos os produtos para baixo de nosso teto, não estamos fazendo algo que daria origem à aplicação da lei antitruste, mesmo neste estado muito enfraquecido e atenuado que temos agora, estamos apenas defendendo nossa propriedade intelectual! ”
E não apenas isso, mas a Universal também poderia contar com o representante comercial dos EUA, os policiais, os tribunais e outros para protegê-los e defender sua propriedade intelectual, porque agora, tecnicamente, é sua propriedade que está sendo roubada em vez de um monopólio sendo mantido. Essa, eu acho, é a maneira certa de pensar sobre como PI, copyright e monopólio se encaixam. Todos eles fazem parte do mesmo projeto de monopolização.
Luke Savage
Quando falamos pela primeira vez sobre fazer esta entrevista, Bill Gates ainda estava no meio de uma turnê pela mídia na qual ele estava defendendo a ideia de que o compartilhamento de patentes para as várias vacinas contra COVID-19 essencialmente não faria nada para aumentar sua produção ou acelerar sua distribuição...
Cory Doctorow
“Pessoas pardas não são capazes de fazer vacinas.” Esse foi o subentendido.
Luke Savage
Quer dizer, esse foi basicamente o argumento! Ele afirmou que “o que está impedindo as coisas neste caso não é a propriedade intelectual.” Eu quero perguntar a você sobre a relação mais ampla do Bill Gates com o conceito de propriedade intelectual, mas uma vez que houve uma série de eventos significativos desde que conversamos – o governo Biden apoiou uma renúncia temporária aos direitos de PI para as vacinas e o anúncio de divórcio dos Gates -, eu queria começar investigando um pouco o papel dele em relação à pandemia.
No início deste mês, você observou que “o indivíduo que mais se esforçou para nos levar” a uma situação de apartheid global de vacinas foi Bill Gates. Você pode falar mais sobre isso? Como chegamos aqui e qual foi o papel de Gates em tudo isso?
Cory Doctorow
Você tem que entender de onde ele parte com uma espécie de fé ideológica na propriedade intelectual. Existe essa ideia de que você pode simplesmente deitar em uma rede e ter ideias e outras pessoas vão pagar o aluguel por suas ideias – e que isso de alguma forma produz o resultado ideal.
Há um sentimento entre os defensores dessa maneira de fazer as coisas de que esta é uma crença muito frágil e há muitas evidências de que ela não é ótima – e que acaba prejudicando muitas pessoas no Sul Global e até mesmo pessoas em países ricos a quem deve servir. Então, eles têm uma espécie de defesa total, onde qualquer coisa que possa enfraquecer a PI como uma ideia – e, correlativamente, a ideia de que existem pessoas que são gênios do cérebro, que suas ideias vão gerar rendas que nos deixarão todos melhores – ou qualquer coisa que cheira a desrespeitá-lo como um conceito, deve ser eliminado imediatamente.
Gates é uma dessas pessoas. E provavelmente há algum nexo aí com o software, porque o software é o produto invisível da mente, e ele viaja na velocidade da luz e opera por conta própria, então ele se presta a essa ideologia da mesma forma que você tinha proprietários de fábricas industriais que estavam fascinados pelo taylorismo e sua ideia de reduzir trabalhadores a peças de máquinas. Esta é a ideologia de longa data de Gates.
A vacina Oxford, que foi desenvolvida principalmente com despesas públicas (assim como as outras – a Operação Warpspeed era uma infusão de dinheiro público gigante, e a plataforma de mRNA subjacente havia sido apoiada publicamente por uma década) inicialmente iria abrir toda a práxis: a documentação, as patentes, os detalhes de fabricação, tudo isso, porque as pessoas vão construir fábricas em todo o mundo, e em todo o mundo você tem regimes regulatórios que podem avaliar a qualidade dessas fábricas.
A pergunta que você precisa fazer na pandemia é muito simples: como podemos distribuir o máximo disso lá fora e nos corpos das pessoas o mais rápido possível? A Fundação Gates veio e convenceu Oxford de que eles deveriam fazer um acordo exclusivo com a AstraZeneca, e a empresa, por sua vez, concordou em vender as vacinas a preço de custo para o resto do mundo.
Agora, ela não fez nenhuma promessa sobre que tipo de CapEx <[em>do inglês “capital expenditure”, designa o montante de dinheiro despendido na aquisição de bens de capital de uma determinada empresa] aplicaria à construção de instalações de vacinas. Não dizia: “Vamos pegar todo o tesouro que acumulamos e construir tantas instalações de vacinas quantos forem os materiais de apoio para que possamos aumentar nossa produção”. Em vez disso, eles basicamente disseram: “Faremos tanto quanto as demandas irracionais do mercado. E então, quando terminarmos – quando a vacina já estiver nos braços de todos os ricos – vamos aplicá-los até que as vacinas estejam nos braços dos pobres também, o que levará até cerca de 2024. ”
Esta não é uma boa ideia para ninguém, possivelmente nem mesmo para seus acionistas, porque quando você é infectado, você faz cópias do vírus continuamente: bilhões, centenas de bilhões, talvez trilhões de cópias do vírus. Eventualmente, se você aproveitar essas pequenas chances, provavelmente obterá uma variante que é mais virulenta, mais mortal e resistente a vacinas. E então, mesmo se tudo com o que você se preocupa é o bem-estar de seus acionistas, você ainda está arriscando um colapso civilizacional – e é difícil gastar dinheiro após o colapso civilizacional (como se talvez eles de alguma forma convertessem seus ganhos em pólos que pudessem usar para cavar através entulho para procurar enlatados).
Gates também criou outra coisa: o COVAX, onde países ricos, bilionários e empresas poderiam doar as doses restantes para os países pobres – como uma caixa de coleta do UNICEF no Halloween. O que, de novo, mesmo para os padrões da filantropia de elite paternalista, é incoerente do ponto de vista epidemiológico. Você deveria realmente querer que todos sejam vacinados o mais rápido possível para que a doença pare de se espalhar.
Mesmo que você não se importe com a vida das pessoas pardas, você se preocupa se as minas de Coltan continuarão funcionando, e elas não continuarão funcionando se os países estiverem nas garras de onda após onda de uma ainda-mais-virulenta pandemia! Você eventualmente terá que mudar a tripulação do seu super iate, e se você atracar nas Filipinas para fazer isso, e sua nova tripulação tiver uma cepa resistente à vacina, você vai estar simplesmente fazendo cosplay de “A Máscara da Morte Vermelha” à essa altura.
Portanto, é uma maneira realmente terrível de lidar com as coisas, mesmo para os padrões do Bill Gates, um diletante bilionário que se propôs a erradicar a pólio e também a erradicar a educação pública.
Luke Savage
A recente mudança do governo Biden veio na esteira de uma campanha mundial e certamente foi uma surpresa agradável – embora o governo tenha se esforçado para enfatizar seu forte apoio ao regime global de PI em geral. Você está otimista de que a maré realmente começou a se voltar contra Gates e o modelo que ele defende?
Cory Doctorow
Concordo que foi uma reviravolta chocante, e pessoas como David Sirota têm sido muito céticas a respeito. Há uma certa margem de manobra nas palavras evasivas da declaração. Mas frequento os círculos globais de PI há quase vinte anos e já estive em salas com o representante comercial dos EUA muitas vezes. Nunca vi um representante do USTR – muito menos o chefe do USTR – fazer uma declaração que estivesse na mesma galáxia que esta.
É como se Lindsay Graham descesse de um pódio e dissesse: “Bem, não tenho certeza sobre a Teoria Crítica da Raça, mas esta é definitivamente uma nação fundada nos valores da supremacia branca e temos um problema real com a supremacia branca estrutural.” É difícil expressar que momento Scrooge-aparecendo-com-um-peru-na-manhã-de-Natal é em termos de pessoas que passaram décadas lutando com os apparatchiks dos EUA por acesso igualitário a medicamentos e outras informações que salvam vidas.
Ajudei a redigir o tratado de Acesso ao Conhecimento e a trabalhar no tratado de Marrakesh, que é um tratado sobre os direitos das pessoas com deficiência visual ao acesso a obras protegidas por direitos autorais. Eu vi o representante comercial dos EUA e representantes da associação de editoras e outras coisas dizerem: “Ah, claro, achamos que pessoas cegas deveriam ser capazes de ler livros, mas é realmente tão difícil encontrar voluntários em cada país que falem inglês para fazer sua própria edição para leitura em voz alta desses livros para pessoas com deficiência visual? Por que a África do Sul poderia importar edições do CNIB preparadas por voluntários em Vancouver? Não existem sul-africanos que sabem ler? ”
Portanto, isso é ousado de ser dito agora, apesar de que é claro que vamos ter que esperar pra ver se vão colocar o deles na reta.
Bill Gates se encontra com o então Secretário de Defesa James Mattis em 2017. (Wikimedia Commons) |
O que temos a seguir? Como é o acordo? Não é como se a OMC fosse um bom fórum. Eu não sou como um novo Cold Warrior Sinophobe ou algo assim, mas eu vi uma delegação chinesa tocar as agências especializadas da ONU como um violino, e também vi os EUA fazerem isso. Portanto, não está nada garantido ainda, mas é uma grande vitória que devemos aproveitar.
Alexandria Ocasio-Cortez (AOC) dizendo “Em seguida, faça insulina” é onde devemos ir com isso, em vez de apenas tergiversar. Estou muito otimista com isso ou pelo menos esperançoso. Eu geralmente não peço otimismo – otimismo é a ideia fatalista de que as coisas vão melhorar, não importa o que façamos, enquanto esperança é a ideia de que, se fizermos alguma coisa, talvez fique melhor.
Então, talvez eu não seja nem um pouco otimista, mas estou super esperançoso de que décadas de muito dinheiro gasto e pessoas morrendo em milhões de doenças evitáveis para as quais não foram autorizados a fazer remédios por causa da ganância, venalidade e cumplicidade dos representantes comerciais dos Estados Unidos e da Casa Branca. . . que este é o nosso momento de aproveitar. Então, vamos aproveitar. Vamos acreditar em sua palavra, e quando eles renegarem – como quase certamente farão – vamos envergonhá-los e agredi-los e fazer com que as pessoas que sentem nossa esperança fiquem com raiva deles de modo que sejam movidos a isso.
Você sabe, [Abraham] Lincoln fez campanha contra a abolição. Se você ouvir os debates Lincoln-Douglas, que todos hoje dizem ser o ápice da retórica política americana, eles estão cheios de Lincoln dizendo que “os negros não têm capacidade de autogoverno. Claro que não sou um abolicionista”, mas então ele foi empurrado para a abolição pelo sentimento público.
Não temos grandes homens de história. Temos burros maleáveis que são colocados em boas posições pelo sentimento público, e é nosso trabalho tornar esse sentimento público.
LS
Gates é conhecido popularmente como um filantropo e como alguém que viabilizou o acesso ao computador doméstico. Mas sua fortuna na verdade esteve intimamente ligada à criação do monopólio do software. Você pode falar sobre o papel que a propriedade intelectual desempenhou na carreira de Gates, na criação de sua riqueza e também em seus chamados empreendimentos filantrópicos?
Cory Doctorow
Gates entra em cena pela primeira vez com uma carta que escreveu quando era uma criança petulante ao Homebrew Computer Club – que era uma instituição muito centrada na engenharia, onde as pessoas estavam construindo e inventando o computador como o conhecemos hoje. A carta de Gates basicamente diz: “Todos nós aceitamos o código um do outro. Isso acaba agora. ”
Gates ganhou sua fortuna porque a IBM foi sujeita a anos de inferno antitruste: a cada ano, durante doze anos, a IBM gastou mais do que toda a divisão antitruste do Departamento de Justiça (DOJ) lutando contra uma reivindicação antitruste. Finalmente, sob Reagan, eles foram deixados em paz.
Portanto, a IBM havia passado anos amarrada ao pára-choque do DOJ, e uma das coisas que eles sabiam que o DOJ odiava era monopolizar o software amarrando-o ao hardware. Então eles fizeram o PC de peças de commodities para que pudesse ser clonado. Eles sentaram-se enquanto a Phoenix Computing fazia a engenharia reversa de sua ROM e começaram a vendê-la para a Dell, Gateway e Compaq para que houvesse máquinas compatíveis. E eles disseram: “Não vamos fazer o sistema operacional”, e então procuraram Bill Gates e Paul Allen e pediram que fizessem um DOS que pudessem usar em suas máquinas para que o DOJ os deixasse em paz.
É daí que vem a fortuna de Gates. Ele estava no lugar certo na hora certa, e sua mentalidade – essa ideia de competição acirrada, sem compartilhamento, sem coleguismo – permitiu que ele alavancasse a fraqueza da própria propriedade intelectual da IBM (sua capacidade de controlar seus críticos, concorrentes e clientes e, em seguida, impor-se).
Gates é conhecido popularmente como um filantropo e como alguém que viabilizou o acesso ao computador doméstico. Mas sua fortuna na verdade esteve intimamente ligada à criação do monopólio do software. Você pode falar sobre o papel que a propriedade intelectual desempenhou na carreira de Gates, na criação de sua riqueza e também em seus chamados empreendimentos filantrópicos?
Cory Doctorow
Gates entra em cena pela primeira vez com uma carta que escreveu quando era uma criança petulante ao Homebrew Computer Club – que era uma instituição muito centrada na engenharia, onde as pessoas estavam construindo e inventando o computador como o conhecemos hoje. A carta de Gates basicamente diz: “Todos nós aceitamos o código um do outro. Isso acaba agora. ”
Gates ganhou sua fortuna porque a IBM foi sujeita a anos de inferno antitruste: a cada ano, durante doze anos, a IBM gastou mais do que toda a divisão antitruste do Departamento de Justiça (DOJ) lutando contra uma reivindicação antitruste. Finalmente, sob Reagan, eles foram deixados em paz.
Portanto, a IBM havia passado anos amarrada ao pára-choque do DOJ, e uma das coisas que eles sabiam que o DOJ odiava era monopolizar o software amarrando-o ao hardware. Então eles fizeram o PC de peças de commodities para que pudesse ser clonado. Eles sentaram-se enquanto a Phoenix Computing fazia a engenharia reversa de sua ROM e começaram a vendê-la para a Dell, Gateway e Compaq para que houvesse máquinas compatíveis. E eles disseram: “Não vamos fazer o sistema operacional”, e então procuraram Bill Gates e Paul Allen e pediram que fizessem um DOS que pudessem usar em suas máquinas para que o DOJ os deixasse em paz.
É daí que vem a fortuna de Gates. Ele estava no lugar certo na hora certa, e sua mentalidade – essa ideia de competição acirrada, sem compartilhamento, sem coleguismo – permitiu que ele alavancasse a fraqueza da própria propriedade intelectual da IBM (sua capacidade de controlar seus críticos, concorrentes e clientes e, em seguida, impor-se).
Gates (à direita) com Paul Allen em 1970. (Wikimedia Commons) |
Ele então faz muitas tramas. Ele vincula a capacidade de instalar o Windows ou DOS em sua máquina a um contrato de não pré-instalação de produtos rivais. Ele pode sabotar o sistema operacional, o que faz por meio da integração vertical: vende a você um sistema operacional e um conjunto de aplicativos que são executados nele e, se você criar um aplicativo concorrente, ele pode ajustar o sistema operacional. O Excel, por exemplo, tinha um concorrente de longa data que, segundo todos os relatos, era melhor chamado de Lotus I, II e III. O lema da Microsoft era “O DOS não está pronto até que o Lotus não funcione”, e a cada novo lançamento simplesmente desmoronaria.
Eles tinham a capacidade de eliminar estrategicamente os rivais, agrupando versões gratuitas de seus produtos no sistema operacional. Em Toronto, houve uma grande história de sucesso de um software chamado Delrina, que se tornou o software de fax de maior sucesso do mundo. Um dia, eles começaram a incluir software de fax gratuito no Windows e ninguém mais comprou uma licença Delrina. Esse foi o fim de tudo.
Assim, Gates foi capaz de estruturar o mercado. Ele teve que decidir quem poderia vender, o que eles poderiam cobrar por isso, o que os clientes poderiam ver, o que eles não poderiam, o que funcionaria, quão bem funcionaria e assim por diante. Basicamente, ele agia como um comissário particular que apresentava um plano de cinco anos para estruturar o mercado, que poderia então comandar para atender às suas necessidades paroquiais.
Os argumentos à direita em relação a essas coisas são interessantes, porque há uma tendência antimonopólio que gosta da ideia do mercado se autorregular e é cética quanto à estruturação do mercado pelo Estado ou por empresas dominantes. Também há um argumento à esquerda interessante aqui: se você não acredita que as empresas dominantes vão estruturar bem os mercados, por que ser otimista e acreditar que indivíduos e ministérios podem estruturá-los bem? (E podemos falar sobre responsabilidade democrática e se isso os torna melhores em seus empregos e assim por diante.)
Mas Gates foi capaz de fazer o que todos que sonhavam com uma “economia de comando” queriam fazer: subordinar as prioridades individuais de outros atores do mercado às suas necessidades para atingir um objetivo estratégico – neste caso, seu próprio enriquecimento.
Isso durou até o início dos anos 90, quando houve a ação antitruste que o condenou por ser um monopolista. Posteriormente, ele foi derrubado, mas ele é um monopolista condenado e a ação antitruste não foi tão desagradável para a Microsoft quanto para a IBM.
Acho que para ele pessoalmente – contanto que estejamos investigando a psique do jovem Bill Gates – foi muito difícil. Um dos primeiros vídeos virais de todos os tempos foi a passagem das gravações em VHS do longo e cansativo depoimento de Bill Gates, no qual um homem que claramente se tornou muito acostumado a ser um tirano cujo julgamento ninguém questionou foi forçado a aguentar as perguntas impertinentes dos advogados do governo, e estava a um fio de cabelo de apenas sair atirando coisas. É uma birra real que se arrasta e ele parece um idiota no vídeo.
Isso se espalhou amplamente, e os relatos internos da Microsoft, bem como algumas das coisas que Gates disse depois, sugerem que o trauma pessoal e institucional que a Microsoft passou ali é o que os impediu de fazer com o Google o que eles fizeram para a Netscape. Eles poderiam ter esmagado o Google, já que tinham o poder de mercado no nível do sistema operacional, mas não queriam ser puxados de volta para o inferno antitruste.
Em 2019, Gates estava sendo entrevistado por, eu acho, Kara Swisher, que perguntou: “Por que vocês não compraram o Android?” E ele disse: “Bem, fomos distraídos pelo processo antitruste”. O Android ficou à venda por sete anos após o término da ação antitruste. O que ele quis dizer é que estava tão traumatizado, que seu PTSD era sentido com tanta intensidade, que não queria arriscar a ira do DOJ comprando o Android. (E, claro, hoje temos o Google como um monopolista que se envolve em roubo de salários de criadores e em fraudes nos mercados de publicidade e é capaz de estruturar todos os tipos de mercados por meio de seu domínio sobre a pesquisa e os anúncios da mesma forma que Gates fez em relação aos sistemas operacionais.)
A ação da Microsoft foi realmente o último suspiro do DOJ. Mas foi revigorado porque a realidade tem um viés esquerdista bem conhecido, e se você não fizer coisas para impor limitações ao poder corporativo, o poder corporativo aumenta repetidamente.
As corporações são realmente ruins em estruturar mercados: elas estruturam os mercados para os benefícios paroquiais dos proprietários de super iates, e essas prioridades não se cruzam com as prioridades de um estado ordeiro. A contradição pode sobreviver por um tempo, mas então você pega uma pandemia e, de repente, as prioridades dos proprietários de super iates não podem ser acomodadas ao lado das prioridades das pessoas que estão morrendo de um patógeno.
Luke Savage
Quero investigar um pouco mais a questão da ideologia. Acho que, por vários motivos, os CEOs e os exorbitantes ricos se tornaram um demônio popular nos últimos anos. Mas também acho que pode haver um risco em olhar como uma figura como Gates se comportou durante a pandemia e ver isso como uma questão de mero lucro. Você já aludiu à “Carta Aberta aos Hobbystas” escrita por Bill Gates em 1976, e me parece que lucrar não é o suficiente por si só para explicar o tipo de coisas que ele faz. Existe uma crença real aqui. Existe uma verdadeira convicção ideológica e zelo.
Estou curioso em saber até que ponto você acha que a ideologia é um produto de Gates ter tido a trajetória e a carreira que teve, ou se é o contrário? A ideologia de Gates precedeu sua carreira? Ideologia e puro interesse próprio aquisitivo são claramente simbióticos aqui, mas queria saber como exatamente você acha que a simbiose funciona?
Cory Doctorow
Quando é a época da ferrovia, você tem barões da ferrovia, sabe? Acho que a ideologia subjacente de Gates é apenas ideologia de direita. E a definição do que eu realmente gosto vem de Corey Robin, que argumenta que a definição tem se mantido estável desde a Revolução Francesa.
A ideia central do Direito é que algumas pessoas nascem com algo que as torna melhores no comando – e que o mundo é bem organizado quando essas pessoas começam a mandar nas pessoas que não nasceram para estar no comando. Assim é a teoria; se você elevar artificialmente alguém que não é adequado para estar no comando, então as coisas irão mal. Eles farão alocações ruins e todos ficarão em situação pior, ao passo que, se as pessoas certas estiverem no comando, todos estarão em melhor situação.
O que Robin aponta é que é assim que você pode agrupar um monte de ideologias que são incompatíveis sob um único guarda-chuva: você tem dominionistas <[em>grupo de cristãos católicos conservadores que querem construir uma nação governada a partir dos seus entendimentos da Bíblia] que são basicamente nacionalistas cristãos; você tem libertários anti-guerra e anti-intervenção que querem apenas mercados e querem que os patrões sejam os responsáveis pelos trabalhadores; você tem imperialistas que querem que os americanos estejam no comando do resto do mundo; você tem nacionalistas brancos, etc. O que todos eles compartilham, em última análise, é a crença de que alguns de nós nascemos para governar e alguns de nós nascemos para ser governados.
Nesse contexto, a ideologia de Gates faz muito sentido, porque é uma crença de que algumas pessoas têm grandes ideias e, quando suas ideias são protegidas, elas farão mais grandes ideias. Esta não é uma linha de pensamento incomum. Este é <[em>o personagem] Howard Rourke de “The Fountainhead”, de Ayn Rand: Dê às grandes pessoas o que lhes é devido e elas produzirão uma fonte de ideias maravilhosas. Cada vez que critico Elon Musk, algum burro idiota entra em minhas menções para dizer: “Mas ele vai nos salvar da emergência climática! Ele é o Homem de Ferro! Tony Stark está aqui para nos salvar na emergência climática! Ele tem satélites que de alguma forma resolverão nossos problemas de banda larga! ”
Acho que é isso que Gates faz também. E isso explica a fúria dele com a ideia de que outras pessoas poderiam pegar as ideias que boas pessoas teriam, porque isso é como colocar os proletários de dedos gordos na cadeira do gerente e deixá-los decidir como a fábrica vai funcionar. Bem, eles não entendem! Tudo o que eles sabem é como apertar um parafuso. Eles não têm o talento cerebral necessário para administrar a fábrica!
É apenas mais uma variação de uma discussão que tivemos entre a direita e a esquerda desde a Revolução Francesa.
Sobre o autor
Cory Doctorow é autor, ativista e jornalista de ficção científica. Seu livro mais recente é Attack Surface.
Sobre o entrevistador
Luke Savage é redator da equipe da Jacobin.
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