3 de junho de 2021

Quando o "Peru profundo" emerge

No dia 6 de junho acontecerá o segundo turno das eleições presidenciais no Peru. Segundo José Luis Rénique, a intensidade e aspereza com que o processo eleitoral foi vivido diante das urnas respondem ao lançamento de uma séria tentativa de reverter a longa história de subjugação das regiões por Lima.

José Luis Rénique


Fujimori nunca mais. (Foto via Resumen Latinoamericano)

Tradução / No dia 6 de junho, será realizado o segundo turno das eleições presidenciais no Peru, onde se decidirá se Keiko Fujimori ou Pedro Castillo, a direita ou a esquerda, ficarão com o governo. Para saber mais sobre a situação política e as implicações deste momento, desde a Jacobin América Latina conversamos com José Luis Rénique, historiador que hoje trabalha como acadêmico na City University of New York.

A situação atual do Peru, conta-nos, lembra as eleições em que Alberto Fujimori venceu no início dos anos 90. Mas hoje há uma diferença importante em relação a esses tempos: o aparecimento em cena de um "Peru profundo", representado por Pedro Castillo, que conseguiu se tornar uma figura unificadora da oposição e a critica à situação atual.

Rénique fez parte da Comissão de Verdade e Reconciliação do Governo do Peru, criada com o objetivo de investigar violações de direitos humanos durante o período de conflito interno durante as décadas de 1980 e 1990. Publicou diversos livros, entre os quais o que se destaca Imaginar la nación: viajes en busca del "verdadero Perú" (1881-1932), Incendiar la pradera: un ensayo sobre la "revolución" en el Perú, La voluntad encarcelada: las "luminosas trincheras de combate" de Sendero Luminoso del Perú e La batalla por Puno: conflicto agrario y nación en los Andes peruanos, 1866-1995.

Jorge Ayala e Pablo Toro

O que essas eleições significam para a cena política peruana? E o que implica o surgimento de Pedro Castillo e Peru Libre neste contexto?

José Luis Rénique

A principal implicação política gira em torno da possibilidade de debate sobre o programa econômico. Os especialistas, pessoas ligadas ao sistema financeiro, consideram que, no plano econômico, o caso peruano foi um sucesso.

É preciso levar em conta que a economia peruana realmente experimentou um boom, um grande crescimento econômico, mas impulsionado apenas pelo aumento da mineração como resultado do processo de industrialização chinesa. Vemos a contrapartida desse crescimento econômico, por exemplo, em uma paisagem urbana repleta de shopping centers. O consumo da classe média aumentou significativamente. Mas se trata de uma classe média que tem todas as características que você conhece e que se replicam na região: sua posição é determinada pela renda e seu eixo é o consumo. É uma realidade estatística bastante frágil.

Esse modelo, que já vinha recebendo fortes críticas de diversos setores, com a pandemia se colocou entre a espada e a parede. Tornaram-se evidentes fenômenos como a degradação do sistema básico de saúde —com os efeitos letais que isto implicou no último ano—, a fragilidade do sistema educativo, que não tem conseguido responder ao desafio da educação a distância e a precariedade de emprego, em uma economia em que mais de 70% das pessoas trabalham no setor informal.

Tudo isso constituiu uma demonstração muito prática e óbvia da fragilidade dos mecanismos de proteção e assistência social aos setores mais pobres e gerou um clima de grande oposição. O Peru Libre, através da candidatura de Pedro Castillo, conseguiu canalizar eleitoralmente todo esse clima de profundo inconformismo.

Mas se dermos alguns passos para trás, esta eleição também traz consigo a resolução de uma velha contradição na própria construção do sistema político peruano, um sistema altamente centraliado com mecanismos de participação nas províncias, nas regiões, que funcionaram apenas. episodicamente ou foram desmontados. Todas as implicações que isto tem - tanto nos aspectos simbólicos como nos ideológicos, políticos e mesmo raciais ou étnicos - são as que hoje vêm à tona, estão expostas. É isso que dá a essa escolha uma intensidade e um fervor particulares; o que traz sentimentos tão poderosos.

Jorge Ayala e Pablo Toro

A irrupção eleitoral de Pedro Castillo teve sua origem no "Peru profundo", fortalecendo sua campanha a partir daí e terminando em Lima. Pode-se dizer que foi "na contramão" do que dita o sistema político peruano tradicional. Como historiador, o que você pode nos dizer sobre essa relação da capital com as regiões?

José Luis Rénique

O Peru é um país cujos grandes sinais de crescimento têm sido dados pela exportação de produtos localizados no litoral, agricultura, açúcar, algodão e posteriormente a pesca. Eventualmente, o setor de mineração também define seu curso, algo que tem antigos antecedentes coloniais. Os centros de mineração estão localizados em áreas muito pobres, onde se cria uma situação agroextrativista que tem pouco impacto na localidade imediata. Os números do conflito em torno das minas são muito grandes.

Quando você compara, por exemplo, os distritos mineiros, e os compara com o mapa da pobreza e do voto em Castillo, a explicação do fenômeno das eleições deste ano fica bem clara.

Temos uma grande parcela da população que vê os minérios passarem, que lhes fazem muitas promessas, que em alguns pontos conseguem algumas negociações com as mineradoras, mas acabam vendo o fenômeno de fora. Em geral, a sensação é de amargura e desconforto. Imagino que se entrarmos em detalhes, as áreas mais pobres, mais indígenas e menos organizadas são as que sofrem mais abusos. Não surgiu uma organização política capaz de organizar esses conflitos. Nem houve pressão suficiente sobre as empresas de mineração, o que degradou a situação geral.

Mas, por outro lado, existe o elemento sócio-político. A fragmentação do país em particularidades étnicas vem criando, desde o final do século XIX, uma tradição radical baseada em temas históricos bem conhecidos. São questões ligadas ao local pela memória de um passado glorioso, um "mito mobilizador", como dizia Mariátegui, construído pelos intelectuais a partir da ideia de uma "glória perdida".

Esse arsenal ideológico foi elaborado, processado, lançado, criado e recriado continuamente por artistas, poetas e intelectuais. É um verdadeiro arsenal de símbolos e instrumentos culturais que servem de ferramentas para lutar contra o centralismo e que dão corpo ao sentimento arraigado de que Lima abusa do resto do país. Os escritos de Mariátegui, González Prada, os romances de Arguedas e de alguma forma também os livros de Vargas Llosa - embora hoje seja difícil de acreditar - contribuíram para forjar aquela imagem de um país servo, profundo, que, como Luis Varcárcel (pai do povo indígena de Cusco) aguarda o momento de lançar sua tempestade sobre os Andes.

Do outro lado, o fantasma da população crioula. Portanto, essa memória coletiva latente sempre existiu e, em certos momentos, surgiram projetos políticos que buscam alicerçar-se nessa tradição radical para lançar algum movimento de transformação. O equilíbrio não é muito bom. Em vez disso, é complicado, como é o balanço da guerra popular senderista, um assunto bastante complicado que exigiria uma conversa em si.

O balanço das experiências guerrilheiras dos anos 60 é mais fácil de realizar: pouca inserção no campo e dificuldade de compreensão dos processos regionais, o que afetaria também o Sendero Luminoso, apesar de ter uma presença regional mais significativa.

Agora, há um mito mobilizador aí, como dizia Mariátegui? Supostamente sim. Quais são as configurações sociais que surgem na realidade do interior do país? É uma questão muito complicada e difícil de generalizar. Há sim uma raiz local que nem mesmo o Sendero Luminoso conseguiu desvendar (e por isso acabou gerando um levante camponês contra eles e explorado pelas Forças Armadas). O caso do Túpac Amaru [Movimento Revolucionário] foi mais doloroso, porque ele acabou fazendo o papel de aprendiz de feiticeiro, certo? Você agita e agita, leva a luta ao máximo, as pessoas confiam em você e no final você não tem força suficiente para lutar a luta que você mesmo semeou (ou que ajudou a catalisar, para ser mais justo). E não sou eu que digo isso: basta ler os balanços escritos por alguns dos protagonistas dessas lutas.

Visto por esse prisma, o que temos hoje é uma tentativa séria de reverter essa longa história. É isso que Pedro Castillo personifica. Agora, isso é consistente em termos ideológicos? Na minha opinião, não. Expressa o surgimento de uma consciência plebeia que garante a asseio dos atos de governo, a implementação de políticas condizentes com a raiva e a fúria da população? Não estou totalmente convencido. O que eu acredito é que este é o mais perto que chegamos de construir algum tipo de consenso nas regiões, um veículo político que lhes permita governar.

Em termos teóricos, o que devemos fazer é construir um movimento que saiba fazer política no marco da democracia e, ao mesmo tempo, consiga canalizar as demandas sociais, redirecionar o Estado, redigir uma nova Constituição ... Esse tipo de questões são as que podem marcar uma verdadeira ruptura na vida nacional. Essa ruptura que não se estabeleceu nem com os movimentos sociais nem com a revolução militar.

Jorge Ayala e Pablo Toro

Tudo isso leva quase inevitavelmente a pensar o que disse Aníbal Quijano sobre a grande heterogeneidade social do Peru, tanto pela diversidade de atores populares quanto pela importância da informalidade e do peso do campesinato. Nos últimos anos, temos visto mobilizações no setor agrário convergirem com protestos liderados por jovens, especialmente após a tentativa de golpe parlamentar. Como você avalia o papel dos diferentes atores sociais na luta contra o neoliberalismo? Qual tem sido o grau de articulação desses movimentos?

José Luis Rénique

A mobilização juvenil tem sido muito importante, mas desta vez não foram os estudantes e sim os jovens trabalhadores precários que foram para as ruas. No quadro de um Estado que há muito tenta flexibilizar o regime de trabalho, que busca impor formas de exploração verdadeiramente leoninas, os jovens saíram e marcharam, mas não creio que tenha sobrado muito dessa mobilização. A última mobilização, tão colorida e espetacular, tão comovente pela forma como um grupo após o outro se juntou —de músicos a skatistas—, realmente surpreendeu e empolgou muita gente. O discurso foi "finalmente a juventude saiu".

Nisso, a analogia com o movimento juvenil chileno jogou muito, é claro, mas ao contrário do que aconteceu lá, não tenho certeza se há um saldo significativo daqueles dias. Pelo que posso ver e pelas informações que manejo, todas essas energias parecem ter voltado ao estado dormente que tinham em todos esses anos. Um estado de latência que não é imobilidade, mas que se refugia nos movimentos locais, nos grupos por questões específicas, culturais, de vizinhança e outras.

Então o cenário aqui no Peru é muito difícil e como você disse citando Aníbal Quijano, há uma fragmentação enorme. Mas, além da dispersão, falta apoio político. Por quê? Porque a esquerda está caindo há muito tempo. Esse também é um assunto que merece uma conversa à parte, mas para entender a situação atual, não pode ser omitido.

Olha, fiz uma entrevista com a figura mais proeminente dessa geração, que é Verónica Mendoza. E é muito interessante, porque ela se define como uma política intuitiva, muito representativa de sua geração e - pelo menos aos meus olhos - você não encontra muita continuidade (exceto através de alguns contatos pessoais) com pessoas da minha geração, a geração dos anos sessenta. O que vejo é um vigor ideológico limitado aliado a uma falta de equilíbrio do passado ou a pouco conhecimento da experiência política anterior. E isso, você sabe bem, é um capítulo obrigatório para desenvolver um projeto de mudança com possibilidades.

Essas fragilidades são contrabalançadas por uma capacidade de chegada massiva, que consegue transcender os círculos clássicos da política contra-hegemônica da história peruana. Gestão da mídia, gestão tecnológica, linguagem flexível que permite questionar os setores médios ... Mas, apesar de obter 19% nas eleições de 2016 e quase conseguir passar para o segundo turno, esta esquerda não consegue criar uma organização sólida ou a inscrição no Servicio Nacional de Partidos, o que acaba levando-a a uma série de contratempos que se expressam hoje na queda do voto para 8% e na bancada de cinco deputados. Esses são sintomas muito claros de que algo está errado.

Em todo caso, tudo isso deve ser colocado em uma perspectiva mais ampla e questionar-se, como o fazem em outros países latino-americanos, o que aconteceu com a militância. No caso do Peru, o que estava dividido, se dispersou. Havia um grupo de mulheres na política com grande potencial liderado por Verónika Mendoza, mas estavam divididas. E eles estavam divididos justamente por causa de discussões sobre a possibilidade de fazer uma aliança com o partido Peru Libre. Vários renunciaram porque tinham objeções a Vladimir Cerrón, o líder do partido, que em 2016 se aliou a Gregório Santos e chegou a 4% e em 2021 optou por se aliar a Pedro Castillo e aqui está ele, no segundo turno.

Jorge Ayala e Pablo Toro

Carlos Iván Degregori afirma em seu livro La década de la antipolítica: auge y huida de Alberto Fujimori y Vladimiro Montesinos que a sociedade peruana está passando pela despolitização do debate público, o que foi inaugurado com o governo de Alberto Fujimori. Nesse contexto de polarização entre as candidaturas de Keiko Fujimori e Pedro Castillo, você acha que o debate voltou a se politizar?

José Luis Rénique

O termo "despolitização" me dá dor. Estamos diante de um fenômeno muito peculiar, em que, por exemplo, você vê propaganda política e fica realmente maravilhado com o que predomina: uma linguagem de guerra fria. Não sei se houve uma espécie de pacto secreto entre quem faz consultoria eleitoral, mas a forma coerente com que a esquerda é atacada através de todo esse arsenal simbólico não deixa muito espaço para reflexão, para apreciar o que existe e o que não existe.. Nem mesmo deixa espaço para os empresários pensarem sobre o que fazer quando Castillo vencer. É uma linguagem dura e intransigente, baseada em comparações internacionais extremamente superficiais.

Venezuela e Maduro aqui, Cuba acolá ... Não deixa a menor lacuna para se dar uma verdadeira discussão política. O que eles querem é que isso seja resolvido por medo, por choque, por colera, por raiva. Existe uma tensão sem precedentes.

O Peru não é estranho a este tipo de grande medo, de enorme raiva que leva a confrontos extremamente impensados. Toda a história do Peru, das décadas de 1920 a 1960, foi dominada pelo medo do APRA. Se você comparar a história do Peru com a do Chile ou com a de muitos outros países da região, aqui quase não houve construção partidária, não houve construção de um sistema político, basicamente porque o grande problema era a proscrição do APRA (às vezes também o PC, mas sobretudo o APRA), que representava um perigo. Por outro lado, a questão era como fazer política desde a proibição. Ainda não tínhamos vivido Allende, não havíamos vivido a Frente Ampla no Uruguai ... Ou seja, não tínhamos cultura política suficiente para imaginar um partido de esquerda que pudesse jogar o jogo duplo entre o uso da força, a pressão e a formação simultânea de quadros políticos para governar. Nada disso existia no Peru.

Nosso treinamento político é extremamente pobre. Quando começou a levantar vôo, foi interrompido pelo golpe de Velazco. Recuperou vigor na luta clandestina e, após quinze anos de acumulação, estava basicamente apedrejado. Então a trajetória da esquerda não é algo que se discute, não há debates ideológicos, não se organizou nada ... A força que emergiu das eleições de 2016 não conseguiu se articular em uma organização política. Naquela época éramos mais politizados e agora menos? O que é politização para nós?

Jorge Ayala e Pablo Toro

Outro elemento que se destaca na situação atual é a crise institucional. O confronto de poderes entre os poderes legislativo e executivo, as denúncias de corrupção que pesam sobre quase todos os ex-presidentes, o julgamento de vários deles ... Que possibilidade tem Castillo de alcançar estabilidade e governança? E Fujimori?

José Luis Rénique

A resposta está implícita em sua pergunta. Antes da pandemia, estávamos passando por uma crise cada vez mais complicada. Como você disse, pela disputa entre Executivo e Legislativo, pelo impacto da Odebrecht na política peruana, pela postura hegemonista de Fujimori (que nunca realmente aceitou ter perdido as eleições de 2016), pela transformação do antifujimorismo na força política mais importante do país ... Foi o que se chama de "tempestade perfeita" em termos políticos, mas o país continuou caminhando.

Quando a pandemia chegou, porém, o nível de erosão do Estado e o divórcio entre o Estado e a sociedade peruana não podiam mais ser ocultados, eram visíveis para todos. Se a governança era difícil antes da pandemia, quais são as chances agora de que ela possa ser estabelecida? Realmente não sei; teria que haver algo como um "grande pacto nacional", o que não é claro. Lembre-se que todos foram às eleições divididos, à direita e à esquerda (embora isso, pelo menos por parte da esquerda, seja parcialmente remediado com o apoio do Juntos pelo Peru e da Frente Ampla por Pedro Castillo).

Acredito que o que está por vir para o Peru vai ser muito difícil. Vai haver uma coalizão que vai tentar governar em nome do povo, bom, com aquela indefinição, e vai ter outro lado, caso vença Keiko Fujimori, que vai tentar governar em nome da democracia, em nome da lei e da ordem, com um discurso explícito de mão pesada.

Até que ponto Castillo vai conseguir construir um governo de esquerda capaz de produzir as transformações de que o país precisa, capaz de redigir uma nova Constituição, capaz de enfrentar corretamente os efeitos da pandemia, ninguém sabe. Mesmo para aqueles que o apoiam. Castillo rompeu a primeira barreira, que é ser reconhecido como uma figura nacional, e quase ao mesmo tempo passou a ser saudado como um grande líder. Tudo isso aconteceu muito rápido, é muito difícil saber o que vai acontecer.

Sobre o entrevistado

Historiador, professor da Universidade da Cidade de Nova York e autor, entre outros, de Imaginar la nación: viajes en busca del "verdadero Perú" e La voluntad encarcelada: las "luminosas trincheras de combate" de Sendero Luminoso del Perú.

Sobre os entrevistadores

Jorge Ayala é sociólogo, mestre em Sociologia da Modernização pela Universidade do Chile, em História pela Universidade de Santiago do Chile e doutor em Geografia pela Pontificia Universidad Católica de Chile.

Pablo Toro é jornalista e mestre em comunicação pela Universidade de Santiago do Chile.

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