Marta Arretche, Rodrigo Mahlmeister e Eduardo Lazzari
Ilustração - André Stefanini |
Se você está acompanhando (com simpatia) os primeiros passos do governo Joe Biden e acredita que ele pode servir de inspiração para o caso brasileiro, nos desculpamos desde já pela má notícia. O Congresso brasileiro não aprovou uma única mudança tributária substantiva de caráter progressivo nos últimos 30 anos.
Do total de propostas legislativas sobre o tema submetidas desde 1988, apenas 2% podem ser consideradas progressivas, e a imensa maioria nem sequer foi para a ordem do dia no Congresso. Isenções, deduções e benefícios fiscais, por sua vez, são aprovados com generosa regularidade.
A tributação progressiva é um tema controverso, tanto na teoria econômica como na opinião pública. Mais recentemente, deslocamentos importantes ocorreram em ambas as frentes, mas acreditamos que eles não serão suficientes. A aprovação de reformas progressivas é pouco provável no Brasil porque não cumpre seu requisito mais fundamental: a formação de maiorias parlamentares.
O princípio de que alíquotas mais elevadas para os estratos superiores de renda e de capital devem ser evitadas encontrou amparo na literatura econômica. Taxas mais altas para os maiores rendimentos poderiam reduzir os incentivos dos mais capazes para trabalhar, poupar e investir. Logo, gerariam ineficiência, já que reduziriam o crescimento econômico e, por consequência, o bem-estar. A redistribuição deveria estar concentrada nas políticas de gasto.
Essas premissas foram discutidas por Peter Diamond, Emmanuel Saez, Joseph Stiglitz e Gabriel Zucman. Suas contribuições nortearam a plataforma de Elizabeth Warren, senadora democrata que propôs um imposto permanente sobre a propriedade nos EUA, e o Plano Biden.
O reconhecimento de que os muito ricos pagam uma alíquota efetiva muito inferior aos demais, como divulgado recentemente pela agência de jornalismo investigativo ProPublica, subverteu a crença de que somos todos igualmente “patos” perante o fisco. Nos EUA, como aqui, os bilionários podem explorar brechas na legislação tributária e não pagar impostos.
Com base no reconhecimento de que a tributação pode contribuir para aumentar a desigualdade de renda, governos e instituições multilaterais voltaram a discutir, recomendar e submeter reformas tributárias capazes de aumentar a arrecadação sem onerar os mais pobres.
O Plano Biden propôs uma ambiciosa agenda redistributiva, financiada pelo aumento do imposto sobre empresas e elevação do imposto mínimo sobre ganhos no exterior, dificultando ainda a transferência de rendimentos de empresas americanas para outros países de menor tributação. A OCDE e o FMI, por sua vez, recomendaram aumento na tributação sobre bens e renda como forma de combater os devastadores efeitos da pandemia e fomentar o crescimento inclusivo.
O G7 está próximo de chegar a um acordo sobre a tributação das multinacionais, que permitiria cobrar tributos onde elas operam e não apenas onde têm sede fiscal. Com a medida, empresas gigantes do setor de tecnologia teriam que pagar impostos pelo mundo todo, aumentando significativamente a arrecadação. Há tempos essa era uma demanda de países europeus.
O que vem ocorrendo no Brasil? É sabido que nosso sistema tributário é altamente regressivo, não apenas porque os pobres pagam parcela maior de sua renda com os tributos indiretos. A isenção de dividendos que os acionistas retiram de suas empresas viola princípios de equidade horizontal, isto é, contribuintes de mesma renda pagam valores muito distintos.
Contribuintes mais ricos pagam menos impostos que contribuintes menos ricos. Os 0,05% mais ricos pagam menos imposto, proporcionalmente à sua renda, que as frações da classe média alta e dos trabalhadores em geral. Quem recebe mais de 160 salários mínimos mensais paga menos IRPF (Imposto de Renda de Pessoa Física), em termos relativos, que aqueles que auferem ao menos 10 salários mínimos.
A eliminação de brechas legais que permitem a elisão fiscal permitiria financiar um amplo programa de combate à pobreza no Brasil, sem aumentar o déficit público e sem desmontar os programas existentes.
Uma reforma tributária que taxasse as empresas em 20%, combinada a uma alíquota máxima de 36% no IRPF (semelhante à vigente no Chile e no México), com teto de deduções fiscais de R$ 6.000, permitiria arrecadar anualmente R$ 67 bilhões, desde que tributasse a totalidade dos rendimentos, isto é, desde que conceda tratamento isonômico a todos os contribuintes. Este montante permitiria financiar um programa focalizado nos mais pobres, com impacto sobre a pobreza superior ao do Bolsa Família.
Entretanto, grande parte da população não está a par desses debates técnicos, de considerável complexidade. Mesmo assim, uma inflexão importante parece ter ocorrido no Brasil em relação ao consentimento do eleitor aos tributos.
Na última edição da pesquisa da Oxfam Brasil, realizada pelo Datafolha, que foi a campo em dezembro de 2020, o índice de aprovação do aumento geral dos impostos para financiar o gasto social saltou de 31%, em 2019, para 56%. Essa tendência havia começado já em 2017, quando a taxa era de apenas 24% e cresceu expressivamente em todos os estratos sociais.
Na última edição da pesquisa da Oxfam Brasil, realizada pelo Datafolha, que foi a campo em dezembro de 2020, o índice de aprovação do aumento geral dos impostos para financiar o gasto social saltou de 31%, em 2019, para 56%. Essa tendência havia começado já em 2017, quando a taxa era de apenas 24% e cresceu expressivamente em todos os estratos sociais.
Um breve histórico é importante para entender a relevância desse dado. A parcela dos que concordam que “em um país como o Brasil, é obrigação dos governos diminuir a diferença entre as pessoas muito ricas e as pessoas muito pobres” é constantemente alta no país, em torno de 85%.
Essa aprovação maciça, no entanto, deve ser interpretada com cautela, porque a afirmação não menciona possíveis impostos e omite quem vai pagar a conta. Não é o melhor termômetro da disposição para arcar com os custos da intervenção estatal.
Quando pagar impostos é mencionado, o apoio cai, porque o risco de ser taxado entra na balança. Até recentemente, o eleitorado brasileiro convergia em torno da estratégia de “redistribuição sem tributação”, ou seja, apoiava a intervenção social do Estado desde que isso não implicasse a elevação de sua carga tributária.
É nesse contexto que deve ser entendida a mudança revelada na última pesquisa da Oxfam. É inédito que mais da metade dos brasileiros concorde com a afirmação de que “os governos devem aumentar os impostos para garantir melhor educação, mais saúde e mais moradia para os que precisam”. Essa aprovação é a mais elevada de toda a série de pesquisas de que dispomos no Brasil.
Nossa interpretação é que esse nível de concordância indica disposição para pagar impostos, desde que esses recursos sejam destinados para fins redistributivos. Esse deslocamento pode ter sido gerado pela convivência com a Covid-19.
Tal hipótese é consistente com o argumento dos economistas Alan Peacock e Jack Wiseman, que sustentam que crises sociais de larga escala são capazes de promover mudanças nos padrões regulares da opinião pública sobre a tributação. Por ocasião de guerras, a necessidade de responder à situação de emergência se sobrepõe à resistência ao aumento de impostos.
A combinação desses dois fatores —propostas técnicas e deslocamentos na percepção do eleitorado— abre uma janela de oportunidades para a aprovação de tributação para aumentar os recursos destinados ao financiamento das políticas sociais. Se existem propostas progressivas tecnicamente consistentes, apoio na opinião pública e exemplos ao redor do mundo, o Brasil poderia aproveitar essa chance, revertendo uma tendência histórica ao dobrar esforços contra a desigualdade e a pobreza.
Entretanto, tais propostas precisam ser aprovadas no Parlamento para se converterem em legislação —e dessa cartola não sai coelho.
Historicamente, o Legislativo brasileiro tem se posicionado contra a progressividade da política tributária. Dos 2.500 projetos de lei complementares ou ordinários que tratam do assunto apresentados por parlamentares brasileiros de 1988 a 2020, a imensa maioria (88,6%) propõe medidas cujo resultado seria reduzir a arrecadação do governo federal. Essa diminuição está relacionada à mobilização de parlamentares brasileiros para introduzir novas despesas dedutíveis no IRPF ou para criar novas isenções nesse imposto e até mesmo em outros impostos.
A principal estratégia é aliviar a tributação sobre pessoas físicas ou sobre grupos econômicos. Como as deduções beneficiam o topo da distribuição da renda, o resultado da preferência majoritária de deputados e senadores é agravar a regressividade de nosso sistema tributário, além de reduzir a arrecadação.
Na Constituinte, havia uma proposta apresentada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que permitiria a equiparação do tratamento conferido aos rendimentos de capital aos dos rendimentos de trabalho no IRPF, com base no diagnóstico —ainda atual— de que nosso sistema tributário é altamente regressivo. Existiam alternativas, tecnicamente fundamentadas, para obter a simplificação da tributação sobre bens e serviços e aumentar a progressividade do sistema.
Essa proposta foi ignorada pelo relator da Subcomissão de Tributos da Assembleia Nacional Constituinte, o então deputado federal Fernando Bezerra —hoje líder do governo Bolsonaro no Senado. Bezerra (MDB-PE) foi peça-chave nessa subcomissão, responsável pela redação do capítulo tributário da nova Constituição.
Ele acolheu a proposta de aumento da base do que viria a ser o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), o que agravou a regressividade do sistema. Concentrou-se no aumento das transferências constitucionais, demanda dos estados mais pobres, e na expansão da base tributária do ICMS, demanda dos estados mais ricos.
Como resultado, não houve aprovação na Constituinte de nenhum projeto de tributação progressiva. As propostas nessa direção foram ignoradas pelo relator ou derrotadas na subcomissão.
A inclusão social sem tributação progressiva foi a essência da ordem social desenhada na Constituinte, que expandiu os gastos sociais sem, contudo, gerar fontes de receita compatíveis com as novas funções a serem desempenhadas pela União. No governo de José Sarney (1985-1990), as alíquotas marginais do Imposto de Renda foram reduzidas, reforçando os mecanismos que levariam ao crescente déficit fiscal da União.
Não virá da liderança do governo nenhuma proposta que reduza a regressividade de nosso sistema tributário. Tampouco obterão apoio majoritário no Congresso propostas que concedam tratamento igualitário aos contribuintes, eliminando as brechas que permitem que a alíquota efetiva dos mais ricos seja inferior à da classe média e dos assalariados em geral.
O crônico subfinanciamento dos programas de combate à pobreza no Brasil não decorre da ausência de propostas tecnicamente viáveis ou fiscalmente responsáveis, tampouco pode ser atribuído à rejeição do eleitor. Em vez disso, deve ser imputado à preferência majoritária de nossas elites políticas por desenhos tributários regressivos, que não apenas oneram os mais pobres como suprimem as receitas para programas compensatórios de renda.
O contexto atual não representa apenas uma janela de oportunidades para aprovação de legislação, mas também um espaço para qualificar o debate público em torno das estratégias de intensificar o combate à desigualdade e à pobreza nos estertores da pandemia.
Com vistas às eleições de 2022, o ministro Paulo Guedes anunciou que lançará uma versão ampliada do Bolsa Família. Os detalhes da proposta são pouco conhecidos até o momento, mas parece claro que a agenda desse debate será pautada pelo potencial que o atual governo vê de extrair ganhos eleitorais.
Sabemos que o desmonte dos programas existentes não é capaz de gerar recursos suficientes para financiar um efetivo programa de combate à pobreza no Brasil. Excluída a hipótese de aumentar o déficit público para ganhar a eleição, as únicas saídas seriam o aumento da tributação e alguma revisão da regra do teto de gastos, excluindo políticas reconhecidamente redistributivas da limitação imposta atualmente.
Essas alternativas, no entanto, parecem ter sido descartadas pelo presidente. Se não tivessem, teriam enorme dificuldade em obter apoio em sua base parlamentar.
Enquanto o governo persegue a quadratura do círculo, o Brasil pode, mais uma vez, perder uma oportunidade valiosa para saldar sua dívida social.
Marta Arretche
Professora titular do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)
Professora titular do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)
Rodrigo Mahlmeister
Mestrando em ciência política na USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)
Mestrando em ciência política na USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)
Eduardo Lazzari
Doutorando em ciência política na USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)
Doutorando em ciência política na USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole (CEM/Cebrap)
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