1 de junho de 2021

A nova década perdida

O PIB brasileiro está atualmente 6,4% menor do que estava em 2014. Perdemos a década passada e a tão sonhada retomada econômica está ficando cada vez mais distante em meio a uma pandemia descontrolada – faceta de uma tragédia nada natural, que caminha paralelamente com a ascensão da direita, alimentada pelo neoliberalismo autoritário e seus dogmas onipresentes.

Edemilson Paraná

Andre Coelho/Getty Images

Tradução / O capitalismo no Brasil se encontra, como se sabe, em uma profunda – e prolongada – crise. Seus efeitos são dramáticos. A despeito dos choques e fatores conjunturais mais específicos, os últimos dez anos podem inequivocamente ser compreendidos como mais uma “década perdida” no país. Mais do que isso: os dados apontam para a pior década em 120 anos. São, nesse período, duas fortes recessões históricas, uma que vai de 2014 a 2016 e outra que começa em 2020, sem perspectiva clara de recuperação no curto prazo – já que, junto à crise econômica, temos agora uma pandemia fora de controle.

De 2011 a 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) teve crescimento médio anual de 0,27%. Para efeitos de comparação, na “famosa” década perdida anterior, que vai de 1981 a 1990, esse crescimento anual foi, em média, de 1,57% – quase 6 vezes maior. Ainda na mesma chave de comparação, na década perdida anterior – de 1981 a 1990 – o PIB per capita caiu 0,4%; na “nossa” atual década perdida, de 2011 a 2020, essa queda foi de 0,56%. O PIB brasileiro está atualmente (dados de 2020) 6,4% menor do que estava em 2014; e o PIB per capita, 10,8% menor. Estamos, em resumo, mais pobres.


O Brasil se especializa, cada vez mais, como produtor de commodities, produtos primários, de baixo valor agregado e baixa intensidade em tecnologia e conhecimento; algo que tem evidentes implicações em outros campos da vida nacional. Isso porque mudança econômica, mudança social e mudança política estão todas conectadas e não podem ser pensadas separadamente.

Um país que se desindustrializa

Para se ter uma ideia, a participação da indústria de transformação na economia, atualmente em 11,3% do PIB (dados de 2020), chegou ao menor patamar da série histórica, que começa em 1947 (à época em 19,9%, quase o dobro da participação atual). Em 1985, a participação desse setor chegava a quase 36% do PIB brasileiro. A fatia do PIB relativa à indústria é, portanto, a menor desde o fim da década de 1940. No agregado, reflexo desta década, a produção industrial em 2020 é 12,4% menor do que em 2011.

A participação dos grupos de alta e média-alta tecnologia em nossas exportações industriais regrediu de 43% em 2000 para apenas 32% em 2019, o menor patamar desde 1995. Ou seja, o pouco que nossa indústria ainda exporta está concentrado em produtos de baixa complexidade tecnológica e valor agregado.

Tomemos, para efeitos de comparação, o que ocorre, em outro setor, o agropecuário, onde um quadro oposto parece se desenhar. A participação das commodities nas exportações totais do país dobra entre 2000 e 2020, sendo a China – que compra, sobretudo, produtos primários – nosso maior parceiro comercial. Tudo somado, consolida-se, no Brasil, um “outro rural”, conforme termo do sociólogo Zander Navarro. Um “Agro” marcado por avanço tecnológico, aumento de produtividade, concentração econômica e, em consequência, desemprego massivo, com migração do campo para a cidade. Segundo o Censo Agropecuário 2017, apenas 2% dos estabelecimentos rurais se apropriam de 71% do valor bruto total produzido (no censo anterior a proporção era 63%). Nas palavras de Navarro:

a antiga segmentação dual entre grandes proprietários de terra dedicados à exportação e, em outro subsetor, os médios e pequenos abastecendo o mercado interno, como prevalecia até os anos oitenta, está deixando de existir. É uma passagem ainda inconclusa, mas sem retorno (...). Médios e pequenos produtores estão sendo encurralados (...)

Assim, a derradeira migração da “questão social” do campo para as cidades. O cenário imediatamente anterior, de geração de empregos formais de baixos salários e redução de parte da extrema pobreza no Brasil nos governos petistas, vem se revertendo fortemente desde 2014. A taxa de subutilização da força de trabalho saltou de 14,9% em 2014 para 28,7% em 2020, e se observa o crescimento da miséria. Verifica-se também alta na informalidade, com 39 milhões de brasileiros nessa condição em dezembro de 2020.

Neste quadro, em que os mercados financeiros, as instituições financeiras e as elites financeiras passam a ter peso crescente sobre as políticas econômicas e seus efeitos, os ganhos e perdas socioeconômicas são, como se sabe, distribuídos de modo desigual entre as classes e setores econômicos. De 2010 a 2019, o lucro anual dos quatro maiores bancos brasileiros somados saiu de 38,91 para 81,51 bilhões de reais, crescimento nominal de 109,4%.


Baixo crescimento, desindustrialização, reprimarização, financeirização e concentração econômica em múltiplos setores, com aumento de desemprego, precariedade, pobreza e desigualdade. Eis o Brasil que emerge de nossa mais nova “década perdida”.

O fracasso de programas, previsões e promessas

Responsável, em grande medida, pela produção deste quadro foram as políticas econômicas que dominaram neste período – à direita e à “esquerda” –, amplamente baseadas no dogma da “austeridade”. Essas políticas entregaram, sistemática e estruturalmente, como se viu, o oposto de sua triunfante promessa: o tão almejado crescimento econômico.

Apesar dos não-insignificantes ensaios anteriores, o marco fundamental das políticas de austeridade é o ano de 1999, com a adoção do tripé macroeconômico até hoje em vigor: metas para inflação, câmbio flutuante e ajuste fiscal. Logo em seguida, no ano 2000, vem a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal. Neste pacote supostamente “modernizador” somam-se a abertura da economia e as privatizações, a liberalização financeira, o ajuste fiscal e seguidas reformas trabalhistas e previdenciárias.

De sua parte, valendo-se das margens abertas pelo superciclo das commodities e seus efeitos benéficos na economia doméstica, o “desenvolvimentismo” petista mantém este arranjo – a despeito das tímidas medidas de distribuição de renda, das políticas de valorização do salário mínimo e de oferta de crédito popular, acompanhada de uma frágil retomada dos investimentos públicos. O projeto de consolidação do Brasil como um misto de plantation high tech com plataforma de valorização financeira, garantindo ganhos financeiros de curto prazo em moeda forte, mantém-se e, em alguns aspectos, aprofunda-se. Mesmo as políticas públicas implementadas neste período, cujos efeitos sociais não podem ser ignorados – apesar de, a essa altura, terem se mostrado bastante frágeis e passageiros –, são concebidas e implementadas à luz deste modelo e seus imperativos, sob a direção, em suma, da racionalidade financeirizante. Superávits fiscais, para citar outro aspecto significativo da cartilha, são produzidos sistematicamente pelo menos até 2013.

Entre prévios suspiros, ensaios pontuais e descoordenados de resistência a esse arranjo, o ajuste fiscal agressivo no Brasil se torna vitorioso definitivamente a partir de 2015, cristalizando-se, daí em diante, como programa hegemônico das elites econômicas e políticas no Brasil. Para além da desarticulação crescente do poder de investimento e ação do BNDES e de sociedades de economia mista como a Petrobrás, esse recrudescimento, já no âmbito de um novo e mais sombrio ambiente político no país, se consolida com a inclusão na constituição federal, em 2017, do “Novo Regime Fiscal”, cujas medidas incluem o draconiano e asfixiante “teto de gastos” por 20 anos. Ação sem paralelo no mundo, que, sob a ameaça de inviabilizar o funcionamento material do Estado, demanda cotidianamente a destruição de sua capacidade de ação econômica e social. As escandalosas e desqualificadas declarações de achaque do atual ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, fina flor e representante espiritual da parte significativa da mencionada elite, servem de didática ilustração deste ponto.

É certo que a crise da pandemia de 2020 impõe um avanço significativo do gasto público – particularmente com o limitado, ainda que comparativamente significativo, auxílio emergencial que é concedido no país, para contrariedade do governo federal. Isso reabre, em nossas paragens, a discussão sobre assuntos como política econômica, gasto e indução do Estado, emissão de moeda; algo que se expressa nas controvérsias recentes entre economistas ortodoxos e heterodoxos, com destaque para os debates em torno da Teoria Monetária Moderna (MMT na sigla em inglês) dentro e fora do Brasil. Desde o início, no entanto, a frente ampla do andar de cima conforme já abordei em outras ocasiões, agrupada em torno da austeridade, segue firme na defesa de um aprofundamento deste programa no cenário pós-pandêmico. Quer-se, em verdade, dobrar a aposta: autonomia do Banco Central, PEC da Calamidade, PEC Emergencial, reformas tributária e administrativa, novas e mais agressivas privatizações.

Em qualquer caso, é preciso que se diga: pintadas de vermelho ou azul, verde e amarelo, a implementação, manutenção e intensificação contínua, ao longo deste período, dessa duras medidas de ajuste fiscal no Brasil revelam, nos dados acima apresentados, sua verdade: resultados pífios, país estagnado e, o que contradiz de maneira ainda mais flagrante o discurso ortodoxo, dívida bruta crescente – que, de 52,29% do PIB em janeiro de 2011, chega, em quase 90% em março de 2021.

O novo tempo do capitalismo brasileiro e os desafios da política

Frente a esse cenário nacional catastrófico, agravado politicamente com o governo de extrema direita, o campo progressista tem ensaiado várias propostas para superação da estagnação e seus efeitos nas maiorias sociais e minorias políticas. Culpa-se principalmente a política econômica austera pelo buraco que estamos (o que é, como vimos, em boa medida, correto), e a partir deste diagnóstico, são propostas retomadas desenvolvimentistas diversas, a “volta do Estado”.

Para bem enquadrar a factibilidade dessas propostas, no entanto, é preciso melhor qualificar o diagnóstico que, no caso mencionado, tende a subestimar ou simplesmente não considerar as causas e consequências sócio-políticas desse quadro econômico. Quem erra na análise, erra na ação. Assim é que devemos melhor equacionar – ainda que, aqui, de passagem, dadas as restrições de escopo e formato – os limites dessa crítica em prol de uma “nova economia” pós-pandemia.

Primeiro porque nossos colegas (hard ou soft) desenvolvimentistas tendem a prestar menos atenção aos problemas estruturais da estagnação brasileira: inserção subordinada do país na divisão internacional do trabalho e da produção – dependência da produção e exportação de commodities aos sabores e dissabores da demanda internacional, sobretudo chinesa; ausência crônica de investimento público e privado, produtividade estagnada e uma baixa qualificação da mão obra que – eis, novamente, a política! – apresenta-se, em certo aspecto, como funcional à reprodução da estrutura econômica e social acima delineada.

Segundo, e talvez de modo ainda mais significativo, porque não consideram o caráter social e político – de classe – do Estado e suas funções estruturais no capitalismo. Isso se faz especialmente compreensível na conjuntura brasileira recente, em que o dogma da austeridade continua a ser um instrumento ideológico poderoso no avançar da ofensiva política de certos setores e frações de classe, naquilo que chamei de uma “frente ampla” – a reunir bolsonaristas e anti-bolsonaristas – no consenso básico em torno desse programa econômico, em vias de consolidação do modelo regressivo acima delineado, no qual estes são parte diretamente interessada.

No encontro de economia, política e sociedade, eis o paradoxo a que nos traz mais essa “década perdida”: como causa e consequência dessas transformações, conforme pude enunciar antes, muito parece indicar que as elites política e econômica deste país escolheram de vez a via da gestão à força, e sem muito espaço para novos ensaios de pacto social, de uma sociedade de crise permanente, em que a gestão “lucrativa” da estagnação-regressão econômica e da miséria apontam como horizonte de um “novo tempo” do capitalismo no Brasil.

Diante disso, a pergunta central a se fazer é: qual ou quais classes, atores e setores sociais podem, no interior desse estado de coisas, servir de base política para essa desejada “volta do Estado” no Brasil pós-pandêmico? Isso porque pouco poderão nossos importantes e necessários planos de ação econômica na resistência e desejável reversão deste cenário senão acompanhados e sustentados por um (novo) esforço concreto de (re)organização de forças populares para tanto. Esforço que, consideradas as evidências, pede uma reflexão honesta e criativa sobre a própria crise generalizada das esquerdas e suas formas de organização no Brasil e no mundo contemporâneo.

Esse artigo é uma versão editada e reduzida do original, publicado no site da Fundação Lauro Campos/Marielle Franco.

Sobre o autor

Edemilson Paraná é sociólogo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC). É autor dos livros A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional (Insular, 2016) e Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico (Autonomia Literária, 2020).

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