Em Antologia, Bergel restaura com serenidade historiográfica a vontade de socialismo sem a qual a vida, o pensamento e a paixão do intelectual peruano se tornam irreconhecíveis.
Omar Acha
A propósito de José Carlos Mariátegui, Antología, selección, introducción y notas de Martín Bergel, Buenos Aires, Siglo XXI, 2021. 341 páginas.
A herança do escritor socialista peruano José Carlos Mariátegui está em disputa, e o historiador argentino Martín Bergel propôs sua versão em uma Antologia destinada a deixar uma marca nos estudos mariateguianos. Vou explicar porque, na minha opinião, se houve um Mariátegui de Robert Paris, outro de Aníbal Quijano e ainda outros de Alberto Flores Galindo e Ricardo Portocarrero, Oscar Terán, Michael Löwy, Fernanda Beigel e Miguel Mazzeo, agora temos um Mariátegui de Bergel.
Talvez seja conveniente resumir em poucas palavras a figura e o significado de Mariátegui, para traçar aquelas características que o distinguem na história política e intelectual da esquerda na América Latina. Nascido na cidade de Moquegua em 1894 e falecido em Lima em 1930, a curta vida de Mariátegui foi condicionada por uma infância pobre e castigada, não em menor medida pelas doenças que o afligiam desde criança, obrigando-o a amputar um perna na década de 1920 e levando à morte aos 36 anos.
Foi assistente de tipografia, revisor autodidata, jornalista, ensaísta, palestrante em universidades populares, organizador e inspirador de sindicatos, editoriais, partidos políticos e revistas de esquerda como Amauta. Sua obra mais conhecida são os 7 ensaios sobre a interpretação da realidade peruana, publicados em 1928.
A peculiaridade de Mariátegui consiste em ter considerado um projeto socialista moldado para um país de composição social predominantemente camponesa e indígena. Esse gesto criativo não fez do marxismo um dogma, mas sim a chave para a leitura de uma biblioteca heterogênea e ativa, atenta às novidades da época sem abandonar uma disciplinada triagem crítica.
1919 foi um divisor de águas na biografia de Mariategu. Em seguida, iniciou uma viagem de quatro anos à Europa, e em particular à Itália, que tocou as anteriores sensibilidades decadentes e antiburguesas do jovem Mariátegui, já desafiado pela crise do positivismo e do liberalismo aprofundada pela Primeira Guerra Mundial, gerando uma composto de convicções, marxistas e socialistas que não o abandonariam. Mas não só isso. A experiência de uma Europa em suspense após a Revolução Russa e seus ventos renovadores em todos os níveis aumentaram uma curiosidade pré-existente e insaciável diante das vanguardas estéticas e das inovações técnicas (o cinematógrafo, por exemplo), sem descartar aberturas teóricas como as da psicanálise.
Socialista convicto, soube dialogar com as intensidades de uma vida universitária convulsionada pelos ecos da Reforma Universitária de Córdoba, Argentina, envolver-se com o nascente movimento operário (em cuja formação da CGT Mariátegui teve um papel orientador), construir o partido socialista vinculado à Terceira Internacional Comunista, sem esquecer sua intervenção nos acalorados debates em torno do indigenismo na política e na literatura.
A sensibilidade ao indigenismo e os mitos para os quais leu Georges Sorel à esquerda, a abordagem revolucionária e a estratégia socialista situada, fizeram da herança mariateguiana um proscênio para debates após sua morte. Desde a década de 1980, esse interesse esmaeceu, embora obras importantes tenham sido publicadas. Com a eventual recomposição da política de esquerda no século XXI, o legado de Mariátegui é convocado nas polêmicas latino-americanas do nosso presente.
Ao misturar marxismo e indigenismo, literatura e pedagogia, nação e revolução mundial, Mariátegui devia oferecee à posteridade um arquivo múltiplo legível de diferentes horizontes. Mariátegui é um dos tópicos de estudos latino-americanos mais transitados. Não há um volume geral sobre a história da cultura, da história política da esquerda ou da história intelectual da América Latina que não tenha uma seção sobre o pensador e político peruano. É claro que um livro pode passar sem ele, mas ele se destaca por sua ausência.
A visibilidade póstuma de Mariátegui se explica mais por suas virtudes intelectuais do que por uma posterioridade política, já que o socialismo revolucionário no Peru teve uma trajetória difícil. Em vez disso, parece que o projeto de uma estratégia de esquerda desenvolvimentista proposta inicialmente por Víctor Raúl Haya de la Torre, um nome central do populismo latino-americano, teve maior relevância. Não porque o partido fundado por Haya de la Torre, o APRA, tenha alcançado eficácia política no Peru (quando se tornou poder estatal com Alan García nos anos 1980, seu desempenho foi infeliz), mas porque a morte de Mariátegui em 1930 coincidiu com uma mutação da sociedade capitalista na América Latina que preconizava, ao longo de sua extensa geografia, projetos intervencionistas estatais de caráter mais ou menos integrador das demandas populares.
Desde então e até hoje, Mariátegui, o pensador de uma revolução socialista situada tanto nos problemas locais e nacionais como no cenário mundial em que se resolve o futuro pós-capitalista, é uma figura intempestiva e atual. Mariátegui resiste a ser traduzido em qualquer horizonte reformista ou estatista de um bom capitalismo guiado por lideranças virtuosas, conjunto de noções alheias ao momento revolucionário gerado pela Revolução Russa de 1917 que impactou vigorosamente seu pensamento.
Surge então a pergunta: por que uma nova antologia, sempre útil para começar a ler um autor que se tornou um clássico continental? Martín Bergel é um historiador atento às regras do seu ofício. Mas não é só isso. Ele também é um acadêmico comprometido com seu tempo. E dizer o tempo envolve assumir os debates que a época em que vivemos nos destina. Um desses debates é a delimitação nacional-estatal de um projeto de poder popular pautado por uma estratégia socialista.
Ainda está claro - ao contrário do que Michael Hardt e Antonio Negri conjeturaram há apenas duas décadas - que as transformações radicais exigidas pela globalidade capitalista precisam ser colocadas, politicamente, em cenários nacionais práticos. Mas essa mesma globalidade do capital torna inexorável prolongar o escopo de tais projeções localizadas em uma estratégia que também é global. O século XX deu à esquerda a dura lição de que não é possível "em um país", nem aquela versão ligeiramente diferente de "desconexão" do sistema mundial.
O Mariátegui de Bergel resiste a uma tradução arbitrária para o horizonte possível de um Estado capitalista inclusive progressista. E é que, precisamente, este é o movimento interpretativo que ameaça subjugar várias gerações de pesquisa marxista às demandas pragmáticas do reformismo contemporâneo. Com isso, não estou argumentando que a estratégia reformista seja necessariamente injustificável no debate político atual. A opção reformista foi e continua como um aspecto da história da esquerda e, é preciso dizer, seus argumentos são úteis para neutralizar os revolucionarismos utópicos.
O que estou dizendo é que o legado de Mariátegui só pode ser ajustado às preferências reformistas por meio de uma violência simbólica inclemente: aquela que submete um pensamento desdobrado em uma era de desejos extremos às demandas peremptórias das políticas pós-revolucionárias de reformismo nacional-estatal. (Por que fazer de Mariátegui um jogador de xadrez benjaminiano dentro do qual se esconde um pequeno ventríloquo Haya de la Torre?). Em contraposição a essa atitude, Martín Bergel acompanha a honestidade historiográfica de quem foi talvez seu maior professor, o filósofo Oscar Terán. Mesmo depois de renunciar ao projeto revolucionário, mas não à vontade de socialismo, atento ao que as fontes lhe permitiam ler, Terán perseverou, cativado por um Mariátegui caracterizado como um "extremista moderno".
Assim como apontei a violência interpretativa com que em certos casos Mariátegui foi lido nestas décadas de estratégia reformista e nacionalista na América Latina, devo dizer que Martín Bergel não é apenas um historiador ávido por reconstruir um passado como ele foi. Ele também pondera linhas em que as costuras de uma tarefa interpretativa são percebidas. Sua aposta é entender Mariátegui no seio de um "socialismo cosmopolita".
Para enquadrar essa tese, Bergel recorre à proposta de Mariano Siskind no livro Deseos cosmopolitas, onde seu autor amplia o conceito goethiano de Weltliteratur na leitura de alguns trechos da literatura modernista latino-americana e da redação de ensaios produzidos entre 1880 e 1925. Siskind menciona Mariátegui de passagem, e Martín Bergel estende sua análise com nuances que não posso me deter. O fundamental é que, com a ajuda de Siskind, a nova interpretação de Mariátegui adquira um significado mais do que individual.
O peruano se situa em uma trama maior, sem abrir mão de sua personalidade, neutralizando o excepcionalismo biográfico que tem seduzido importantes segmentos da literatura a ele dedicados. Agora, tendo reconhecido a predileção do antologista, a tese de Bergel contorna melhor o crivo do arquivo mariateguiano do que a hipótese do estado nacional ou daquela figura aparentemente mais complexa, mas muitas vezes essencialista, que o remete a um "marxismo latino-americano"? Penso que sim. E eu continuo explicando.
Os textos de José Carlos Mariátegui na Antologia estão divididos em cinco partes. As primeiras quatro seções correspondem aos livros (se desta forma os ensaios mariateguianos podem ser domesticados - neste plano mais perto de Nietzsche do que de Marx - melhor orientados para produzir intuições vigorosas do que projetar arquiteturas lógicas), a saber, La escena contemporánea, de 1925, os 7 ensayos de interpretación de la realidad peruana, de 1928, e os dois surgidos postumamente: Defensa del marxismo e El alma matinal.
De cada "livro", Bergel seleciona os segmentos mais significativos em sua opinião. Naturalmente, a esse respeito, pode-se falar em geografias textuais complementares. Para dar apenas um exemplo, seria razoável defender a inclusão na seção dedicada aos 7 ensaios do incisivo "Esquema de la evolución económica", em que Mariátegui delineia a pluralidade de temporalidades, cenários e atores que confronta toda estratégia socialista irredutível contra uma vulgata marxista eurocêntrica. Mas sabe-se que no gênero das antologias o espaço é um recurso escasso e é inexorável priorizar.
Em suma, o critério de Martín Bergel se sustenta porque sua aposta essencial e chave editorial reside na quinta parte. Nesta seção, justamente intitulada "Socialismo cosmopolita", retorna o núcleo do Mariátegui renovado que a Antologia descobre e ao mesmo tempo constrói. Talvez seja por isso que o comprimento desta quinta parte triplica em número de páginas em relação àquelas dedicadas a cada uma das seções anteriores.
É preciso admitir que o adjetivo "cosmopolita" está presente em poucas ocasiões nos textos escolhidos em "Socialismo cosmopolita", e que esta última expressão nunca foi usada - que eu saiba - pelo próprio Mariátegui. Talvez a fórmula de um "socialismo indo-americano" lhe tenha sido mais afim. No entanto, Martín Bergel articula textos e suas próprias interpretações onde o diagnóstico de uma "crise mundial" e a enunciação de uma estratégia "global" exigida pela imposição global da sociedade capitalista convergem em uma leitura incompatível com os socialismos nacionais ou latino-americanismos de esquerda, principalmente quando revelam essencialismos como o mencionado acima. Bergel tem razão ao enfatizar que a crise contemporânea animou em Mariátegui o caráter cosmopolita de seu socialismo.
Cidadão do mundo e historiador informado dos problemas globais, Martín Bergel é também um intelectual argentino e latino-americano. Este diagnóstico não requer elucidações de um mistério insondável arrancado pelas virtudes da arqueologia detalhada. Embora Bergel esteja admiravelmente informado sobre a literatura mariateguiana, suas principais referências são, me parece, a argentina: Oscar Terán é o primeiro, embora não o único (José Sazbón é outra presença incontornável). Com isso quero destacar o quanto dos debates teóricos, políticos e intelectuais da Argentina, e propriamente da América Latina, perpassam as páginas desta Antologia. Entendo que sua aposta intelectual não se encaixa bem na consoladora dicotomia que o forçaria a escolher entre um particularismo intransferível e um universalismo monológico.
O escritor peruano editado e construído por Bergel debate com as interpretações nacional-populistas de Mariátegui e com aquelas sustentadas por um latino-americanismo substancial. No Mariátegui da presente Antologia, habilmente formulado e posto à disposição de um público leitor que gostaríamos de fazer crescer, Bergel restaura com serenidade historiográfica a vontade de socialismo sem a qual a vida, o pensamento e a paixão do intelectual peruano se tornam irreconhecíveis. Renovar a leitura de uma obra aberta com uma dose equilibrada de erudição e inteligência política sustenta uma das várias dívidas que é preciso reconhecer com Mariátegui de Martín Bergel.
Este volume entrará nas prateleiras da pesquisa acadêmica. Gostaria também de vê-lo incorporado nas leituras da formação política e intelectual das novas gerações preocupadas em gerar uma alternativa a essa sociedade capitalista desequilibrada e suicida.
Sobre o autor
Historiador, professor da Universidade de Buenos Aires, autor, entre outras obras, de "Crónica sentimental de la Argentina peronista. Sexo, inconsciente y política, 1945-1955".
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