Uma entrevista com
Farid Kahhat
Pedro Castillo nos últimos dias da campanha eleitoral. |
Tradução / O Peru caminha às eleições presidenciais em 6 de junho, onde os eleitores vão poder escolher entre dois candidatos muito diferentes: o sindicalista de esquerda Pedro Castillo e a política de extrema direita de Keiko Fujimori.
Sobre o entrevistado
Castillo era uma figura relativamente desconhecida quando, em 11 de abril, conquistou o primeiro lugar nas eleições presidenciais. Líder sindical de origem camponesa, ele se assemelha com Evo Morales, e o ex-presidente da Bolívia endossou com entusiasmo a candidatura de Castillo. Nas palavras de Morales: “Castillo tem um programa muito parecido com o nosso”.
Já a oponente da direita, Keiko Fujimori, é um obstáculo na perspectiva de um “socialismo do século XXI” chegando ao Peru. Filha do ditador Alberto Fujimori, ela pegou uma página do manual de seu pai e lançou uma implacável campanha de terror contra seu rival de esquerda, na esperança de requentar os traumas da sangrenta guerra contra a organização guerrilheira marxista-leninista Sendero Luminoso.
Resta saber se a estratégia de Fujimori renderá dividendos – a violência recente, atribuída de forma questionável ao Sendero Luminoso, fez com que Fujimori estreitasse a diferença com Castillo. As pesquisas atuais sugerem que os dois candidatos estão virtualmente empatados e, em um país onde as eleições nacionais são notoriamente voláteis, poucos analistas ousam anunciar o resultado.
Uma coisa, entretanto, é certa: o Peru pode escolher entre dois futuros muito diferentes. Uma vitória de Fujimori – que concorre pela terceira vez à presidência – representaria o pior tipo de regressão política, atrasando o relógio para o regime autoritário neoliberal imposto na década de 1990 por seu pai.
O editor contribuinte de Jacobin, Nicolas Allen, conversou com Farid Kahhat sobre o que uma vitória de Castillo pode significar para o Peru e a América Latina. Kahhat, especialista em relações internacionais e colunista do maior jornal do Peru, El Comercio, falou sobre o programa político de Castillo, os desafios que seu governo enfrentaria e por que só uma vitória poderia reescrever a história peruana.
Nicolas Allen
Se acreditarmos na palavra da imprensa internacional, as eleições peruanas produziram uma espécie de confronto entre a extrema direita e a extrema esquerda. O quão precisa você acha esta caracterização?
Farid Kahhat
Essa caracterização se baseia obviamente na percepção geral do partido Perú Libre, cujo candidato é Pedro Castillo. Perú Libre apresenta uma plataforma chamada Ideario y Programa, onde se define como um partido marxista-leninista. Digamos que isso, bem ou mal, se encaixa em uma definição da esquerda radical. O programa também fala em nacionalizar setores estratégicos da economia, algo que soa bastante radical para grande parte da esquerda contemporânea.
Agora, tenho minhas dúvidas sobre até que ponto Pedro Castillo representa o programa do Perú Libre – é importante lembrar que Castillo é candidato, mas não é membro do partido. Por sua fé evangélica, podemos até dizer que é mais conservador do que sugerem os ideais que movem o partido Perú Libre. Em todo caso, independentemente de ele ser tão radical quanto o programa do partido, algumas das opiniões pessoais de Castillo são de fato radicais.
Para dar um exemplo: embora não fale em nacionalizar empresas, Castillo fala em colocá-las sob controle estatal em um sentido muito semelhante ao de Evo Morales. A regulação estatal significaria, neste caso, a renegociação de contratos com empresas extrativistas – mineração, gás etc. – segundo a ideia de que é lícito tributar lucros extraordinários, frutos de bons preços internacionais – e não mérito da própria empresa.
Para os padrões peruanos, isso é bastante radical. Não importa que os Estados Unidos também tenham tido os inesperados impostos sobre lucros durante o governo Jimmy Carter – para o Peru, as políticas econômicas de Castillo são suficientes para assustar a classe empresarial e a elite governante.
E, certamente, Keiko Fujimori também pode ser considerada uma radical, embora seja uma radical de direita. A propósito, Fujimori se define abertamente como de direita. Como seu pai, Alberto, Keiko representa uma espécie de populismo de direita: o fujimorismo é provavelmente a primeira grande força política no Peru a usar um discurso populista, colocando indiscriminadamente o povo como um todo contra o establishment político.
Economicamente, Fujimori é um mercantilista, no sentido de que promove a iniciativa privada, mas não necessariamente mercados competitivos. Basicamente, é um modelo capitalista baseado em empresas que conquistam fatias de mercado por meio de contatos políticos. Nesse mesmo sentido, Fujimori representa os interesses comerciais que preferem permanecer nas sombras, o que leva alguns a descrever o fujimorismo como um fenômeno semelhante à máfia.
Finalmente, Fujimori, como seu pai, tem uma orientação claramente autoritária. Essa veia autoritária também poderia existir, até certo ponto, em Pedro Castillo; mas é importante ressaltar que Castillo e Fujimori são politicamente opostos, especialmente pelos padrões do debate político peruano. Sem dúvida, em toda a história do Peru, nunca houve um candidato como Pedro Castillo em um segundo turno.
Nicolas Allen
Talvez o candidato mais próximo de Castillo nos últimos tempos seja Ollanta Humala, presidente do Peru entre 2011 e 2016.
Farid Kahhat
Sim, mas Humala era um militar aposentado. Humala era de esquerda que nem alguns oficiais de escalão médio nas Forças Armadas – que costumam ter opiniões de esquerda. O Exército peruano é mais plebeu do que a Marinha e a Força Aérea em sua composição social (também acho que isso é bastante comum em toda a região). O Exército peruano tem o que poderíamos chamar de esquerda, mas é a esquerda militar no sentido de que seu nacionalismo o faz promover uma participação mais ativa do Estado na economia.
Mas Humala não era ideologicamente de esquerda. Ele não se definiria como socialista, ao passo que Castillo tem uma visão mais claramente de esquerda em termos de política econômica, e não se intimidaria com o termo “de esquerda”, como fez Humala.
Ainda mais importante, Humala não representou nenhum movimento social significativo. Castillo, por outro lado, vem do maior sindicato do Peru: o sindicato dos professores, que tem entre 300.000 e 400.000 membros.
A primeira posição de liderança que Castillo ocupou, e que mais tarde lhe deu destaque político como dirigente sindical, foi nas rondas campesinas (patrulhas camponesas). As rondas, que dão segurança nas áreas fora do alcance do Estado, começaram na década de 1960 como organizações que tentavam impedir o roubo de gado. Em seguida, se juntaram à luta contra a organização guerrilheira Sendero Luminoso nas décadas de 1980 e 1990. Os próprios rondas incluem certas correntes de esquerda, ao mesmo tempo que lutam contra o terrorismo de esquerda.
Esta é talvez a maior diferença: Castillo tem algum nível de organização social por trás dele, coisa que faltava a Humala.
Nicolas Allen
Você mencionou as rondas campesinas e os sindicatos de professores como base social de Castillo. Como você caracterizaria sua base eleitoral?
Farid Kahhat
É preciso entender algo sobre as eleições peruanas para compreender Castillo. Desde 1990, uma parte significativa do eleitorado não tem candidato natural e tende a fazer votos de protesto. Em 1990, Fujimori aproveitou esse voto antissistema. Essa parte do eleitorado tende a aparecer apenas na fase final da campanha e, quando isso acontece, alguns candidatos que estavam muito atrás nas pesquisas duas semanas antes, de repente, disparam para o topo. Efetivamente, foi o que aconteceu com Castillo.
Geralmente é um candidato de esquerda que se beneficia dessa dinâmica nas eleições nacionais. Nas eleições de 2016 foi Verónika Mendoza a beneficiária, com o apoio de um eleitorado do sul e na área central de Sierra – o voto rural no Peru. Esse eleitorado agora é o grande bastião do Castillo.
Agora, quem compõe esse eleitorado na região sul da Sierra? Existem várias características comuns, como etnia ou classe social, na votação essencialmente camponesa e indígena. Se olharmos para sua base eleitoral e social, notamos que Castillo é, na verdade, muito semelhante a Evo Morales. Castillo, como Morales, não coloca em primeiro plano sua identidade étnica como base de apoio político. Na verdade, ele não precisa fazer valer essa identidade – o eleitorado faz essa associação naturalmente.
Desse ponto de vista, Castillo é também muito diferente de Yaku Pérez no Equador, que, como candidato de um partido de base indígena, Pachakuti, fez dessa identidade a peça central de sua campanha. Novamente, Castillo é em muitos aspectos semelhante a Evo Morales no sentido de que sua identidade indígena e camponesa é indissociável de sua política de esquerda. Seu projeto lembra em muitos aspectos o do partido Movimento ao Socialismo (MAS) de Morales, com sua ideologia de classe e base social popular. Em outras palavras, o que define o discurso político de Castillo não é uma identidade étnica – mas essa identidade está presente de qualquer maneira.
É importante ressaltar que essa figura – um candidato indígena de esquerda – é algo realmente novo para uma eleição presidencial no Peru. Já tivemos um presidente, Alejandro Toledo, que era de origem indígena e invocou explicitamente essa identidade. Mas Toledo era neoliberal em termos de política econômica. E, por outro lado, já tivemos um movimento marxista-leninista como o Sendero Luminoso, mas eles sempre afirmaram que a identidade étnica era um elemento regressivo da política.
Em outras palavras, há pessoas que vão votar em Castillo porque ele é de esquerda, e outras que vão votar nele porque têm um senso de identificação social e cultural.
Nicolas Allen
O bloco antifujimori também pode ser uma terceira variável, certo? Estou me perguntando se o eleitorado liberal e de centro-direita antifujimori votará em um candidato abertamente de esquerda.
Farid Kahhat
O antifujimorismo é um movimento muito peculiar. Estranhamente, meio que se assemelha ao anticorreismo no Equador, embora, é claro, com uma orientação política muito diferente. O antifujimorismo, como o anticorreismo, é extremamente diverso ideologicamente e, como tendência política, pode ser muito volátil.
A ala de direita do bloco antifujimori é liberal. Para ser mais preciso: a direita liberal no Peru tende a ser antifujimori. O que estamos vendo nesta eleição é que a tradicional direita do bloco antifujimori está se fragmentando: alguns liberais estão com Castillo, mas não muitos. Outros simplesmente foram para o fujimorismo, enquanto o resto provavelmente está indeciso.
Mas, novamente, o antifujimorismo como fenômeno varia desde a direita liberal à esquerda radical. Ou seja, é um eleitorado que, no seu conjunto, nada tem em comum a não ser a oposição a tudo o que Fujimori representa (corrupção, autoritarismo etc.). Mas em circunstâncias como a atual eleição, e em um segundo turno onde, historicamente, o antifujimorismo tende a se unir em torno de quem quer que seja o oponente de Fujimori, se esse bloco for devidamente mobilizado, pode de fato acabar definindo a eleição a favor de Castillo.
Agora, o antifujimorismo ainda não se mobilizou massivamente como em 2011 e 2016. Foi esse movimento que derrotou Keiko Fujimori em 2016, quando ela estava 5% à frente de Pedro Pablo Kuczynski cerca de sete dias antes das eleições.
Repetindo, a peculiaridade dessas eleições é que o bloco antifujimori se fragmentou e há, na verdade, um segmento desse eleitorado que pode se juntar a Keiko Fujimori, embora talvez não o faça publicamente.
Nicolas Allen
Mas existem alguns liberais do bloco tradicional antifujimori que expressaram seu apoio a Keiko. Estou pensando em particular no escritor e político Mario Vargas Llosa.
Farid Kahhat
Exatamente, Vargas Llosa é o exemplo arquetípico do voto antifujimori de direita que basicamente se viu assustado e preferiu votar em Fujimori. Mas Vargas Llosa tem o hábito de emitir julgamentos categóricos que mais tarde o fazem parecer ridículo. Nas eleições de 2011, disse que ter que escolher entre Humala e Fujimori seria como escolher entre o câncer e a AIDS. Para em seguida, no segundo turno, fazer uma campanha ardente em favor do câncer. Agora ele está basicamente nos convocando para votar a favor da AIDS.
Portanto, Vargas Llosa perdeu credibilidade. Além disso, acho que Vargas Llosa está se tornando cada vez menos liberal – mesmo tendo sido o porta voz do liberalismo – e basicamente se estabeleceu em uma posição política conservadora. Sua relação com Álvaro Uribe na Colômbia ou com o Partido do Povo na Espanha sugere isso. Francamente, qualquer peruano que tenha seguido a carreira de Vargas Llosa sabe que não vale a pena levá-lo a sério.
Nicolas Allen
Quero passar a examinar o programa de Castillo, já que seu plano de governo foi finalmente tornado público nos últimos dias. Nesse documento, Castillo levanta a bandeira para algumas pautas de esquerda que Verónika Mendoza também havia proposto: reforma agrária, uma nova constituição e regulamentação das indústrias extrativistas. Quando olhamos para as letras miúdas, o que está por trás dessas agendas?
Farid Kahhat
Pedro Castillo apresentou um documento de 12 páginas que é o seu plano para os primeiros 100 dias de governo, mas também dá uma ideia de como seria o seu governo caso vencesse. Antes, a única coisa que tínhamos era o programa marxista-leninista do Perú Libre.
O documento emitido por Castillo é claramente um passo em uma direção moderada. Essa é uma dinâmica muito comum no segundo turno, onde o que você quer é ser o mal menor e conquistar o eleitorado que não votou em você no primeiro turno. É importante ressaltar que isso não significa necessariamente correr para o centro; significa apenas que Castillo tentará convencer aqueles que não votaram nele no primeiro turno de que ele é a melhor alternativa.
Dito isso, Castillo apresenta um programa bastante radical para os padrões políticos peruanos. Ele fala sobre a nacionalização de empresas, mas prossegue explicitando que não se trata de expropriar empresas, apenas renegociar contratos para que parte das reservas de gás sejam destinadas ao mercado interno, garantindo o consumo de energia barata para a população. Se ele fizesse isso, ainda seria mais do que qualquer governo tentou fazer no passado.
Quando Castillo fala de uma “segunda” reforma agrária, ele está se referindo ao fato de o Peru já ter feito tal reforma – ao contrário de países como Colômbia ou Brasil, que nunca o fizeram. O Peru teve uma reforma agrária sob um governo militar – o de Juan Velasco Alvarado nos anos 1970 – que se definia como socialista e revolucionário. Portanto, boa parte da redistribuição de terras já havia ocorrido. Mas depois que esse processo ocorreu, houve um processo subsequente de concentração de terras nas zonas de agro-exportação.
O plano de Castillo, então, é investigar os casos de grilagem de terras e regular a concentração da propriedade da terra. Mas seu plano não é expropriar terras; ele quer apenas substituir as importações de alimentos pela produção local. No setor agrícola, os governos liberais do Peru sempre apoiaram essencialmente as agro-exportações industrializadas. Esse apoio estava consubstanciado em uma lei bastante polêmica – agora revogada – chamada Lei de Fomento Agrícola, que reduziu as normas trabalhistas e concedeu isenções fiscais para o setor agro-exportador.
Basicamente, o que Castillo propõe é apoiar a produção agrícola familiar e comunitária – gerando linhas especiais de crédito barato e outros instrumentos. Novamente, se ele fizer isso, será mais do que qualquer governo eleito democraticamente fez em mais de duas décadas.
Há também, a questão constitucional. É destinada apenas uma linha ao final de seu programa de governo sobre o assunto, onde afirma que qualquer mudança na Constituição será feita de acordo com os termos constitucionais legais já em vigor. E isso na verdade já limita a possibilidade de uma mudança constitucional. Porque Castillo diz que organizará um referendo para que o povo decida se convoca ou não uma assembleia constituinte – mas até para chamar um referendo ele precisará primeiro submetê-lo à maioria simples no Congresso. Pedro Castillo não tem maioria parlamentar nem perspectiva de obter essa maioria. Por enquanto, poderá tentar fazer reformas parciais na Constituição vigente.
Nicolas Allen
Pode ser interessante pensar no Peru em um contexto regional. Particularmente, eu estava pensando no Peru e na Colômbia – dois países notoriamente conservadores onde, de certa forma, a Guerra Fria nunca acabou. Apesar disso, temos um candidato declarado de esquerda prestes a assumir o poder no Peru enquanto na Colômbia o candidato progressista Gustavo Petro é favorito nas eleições de 2022. Como você entende essa mudança política?
Farid Kahhat
Existem dois fatores econômicos que ajudam a explicar as recentes mudanças políticas no Peru. Muitos afirmam que as reformas de mercado produziram resultados positivos em termos de redução da pobreza – dizem isso sobre o Peru, mas também sobre outros países da região. Mas o que a pandemia deixou claro, especialmente no Peru, é que a pobreza foi reduzida, deixando as precárias condições dos serviços públicos inalterado – especialmente no caso dos serviços de saúde.
O outro aspecto que ajuda a explicar essa mudança política é que apenas parte da redução da pobreza foi devido às reformas de mercado. A outra parte parece ter sido devido ao super ciclo das commodities.
Todos os países da região reduziram a pobreza durante o super ciclo, que vai de 2003 a 2013. A maioria dos países também reduziu – embora marginalmente – a desigualdade, fossem governos de esquerda ou de direita. Mas nos últimos 5 anos, o super ciclo das commodities chegou indubitavelmente ao fim, e isso minou a legitimidade dos governos, independentemente de sua orientação política.
No Peru, a pobreza não está mais sendo reduzida. Nos últimos cinco anos, a redução esteve estagnada e, com a pandemia voltamos aos níveis de pobreza anteriores a 2010. Em outras palavras, perdemos 10 anos de redução da pobreza alimentada por commodities.
Acredito que esses dois fatores – os custos sociais das reformas de mercado e o fim do super ciclo das commodities – ajudam a entender as mudanças políticas que estamos testemunhando, especialmente na Colômbia e no Peru.
No entanto, pode ser muito cedo para dizer se a direita está em declínio. Uma coisa que devemos entender é que, na América Latina, a direita radical é diferente da direita radical europeia ou norte-americana. A direita radical no hemisfério norte cresceu em contextos nos quais a social-democracia estava recuando eleitoralmente.
Na América Latina e no Caribe, a direita radical floresceu como oposição às vitórias eleitorais de esquerda associadas à Maré Rosa. Como consequência, o componente anticomunista é muito mais forte, e a extrema direita tem uma visão anti-esquerda muito mais marcada. Para usar de um contraexemplo, na França, quando a extrema direita alcançou duas vezes o segundo turno das eleições presidenciais, ela estava competindo com outras forças de direita: Chirac em 2002 ou Macron em 2017.
Não é o caso na América Latina – aqui a extrema direita vê seu oponente como a esquerda. E nos casos da Colômbia e do Peru, há outro fator: a guerra contra grupos armados de esquerda como as FARC e o ELN, na Colômbia, e o Sendero Luminoso e MRTA, no Peru. Essas são forças que, ao contrário de grupos guerrilheiros de outrora como o FMLN em El Salvador ou o FSLN na Nicarágua, são extremamente impopulares entre a população em geral, e a direita aproveita ao máximo sua impopularidade para desqualificar a esquerda como um todo.
Agora, acredito que esta associação está começando a ceder, em parte porque o Sendero Luminoso foi reduzido à sua expressão mínima e, na Colômbia, a atividade armada das FARC foi reduzida significativamente. Acho que isso ajuda a entender por que a esquerda de repente tem mais espaço de manobra em países como Colômbia e Peru.
Nicolas Allen
Além dos aspectos da economia e do recuo do Sendero Luminoso, quais são outras razões políticas para o evidente declínio do fujimorismo?
Farid Kahhat
É importante lembrar que o antifujimorismo tem dois componentes: o primeiro, original, era a oposição ao governo de Alberto Fujimori, associada ao autoritarismo e à corrupção extrema. De 2016 até hoje, Keiko Fujimori criou sua própria fonte de animosidade, principalmente devido ao seu comportamento obstrucionista no Congresso e sua corrupção descarada. De acordo com a Transparency International, entre 1994 e 2004, Alberto Fujimori foi o sétimo governo mais corrupto do mundo. Reclamar sobre corrupção é um passatempo latino-americano, mas quando se trata do Peru, colocamos a régua mais alta. E isso continuou com Keiko Fujimori.
Houve quatro tentativas de impeachment do presidente nos últimos anos, uma das quais levou à renúncia do presidente em exercício e outra ao seu impeachment – e tudo isso foi liderado pelo fujimorismo no Congresso. É isso que quero dizer quando digo que o fujimorismo é percebido como uma força obstrucionista.
A maneira mais evidente de ver que o apoio a Keiko Fujimori diminuiu é que em 2016 ela obteve 39% dos votos no primeiro turno e agora, em 2021, ganhou apenas 13%. Ela só chegou ao segundo turno por causa da fragmentação dos eleitores entre 18 candidatos – caso contrário, ela nunca teria passado no primeiro turno. Nunca na história alguém com apenas 13% dos votos foi para o segundo turno no Peru.
Nicolas Allen
Castillo teve uma vantagem considerável nas pesquisas por um tempo, mas encolheu consideravelmente nas últimas semanas. Quais são os principais desafios a serem observadas nesta campanha?
Farid Kahhat
Os poderes constituídos nunca apoiarão uma figura de esquerda como Castillo. Mas eles definitivamente apoiariam o autoritarismo de direita – eles já o faziam com Fujimori nos anos 1990. As igrejas evangélicas, as forças armadas, a mídia, associações empresariais e outros nunca apoiariam um candidato de esquerda e farão o possível para colocar Keiko Fujimori na linha. A maior parte da mídia já cerrou as fileiras atrás da candidatura de Fujimori. O grupo El Comercio, maior grupo de mídia do país, detém um oligopólio de jornais e dois canais de televisão, um dos quais é o mais assistido, e estão apoiando abertamente Fujimori.
Por outro lado, é óbvio que Castillo nunca se candidatou a um cargo eletivo e que carece de assessores adequados. Ele cometeu muitos erros. No entanto, acho que as coisas estão começando a mudar e ainda acredito que ele pode ganhar.
Castillo se distanciou de Vladimir Cerrón, o líder do Perú Libre que tem duas condenações de corrupção. O programa de Cerrón também pode assustar um grande setor do eleitorado – como eu disse, o Perú Libre se define como um partido marxista-leninista em um país onde o termo “marxista-leninista” e a foice e o martelo estão associados ao Sendero Luminoso. Portanto, o fato de Castillo se distanciar de Cerrón foi fundamental.
Por fim, Castillo montou uma equipe técnica mais ou menos competente, formada por pessoas que não são militantes do Perú Libre. Além disso, Pedro Castillo está finalmente tentando mobilizar o voto antifujimori – a força política mais poderosa do Peru nas últimas décadas. Acho que, se Castillo não tivesse dado esses passos, Keiko venceria a eleição. Agora acredito que Castillo tem chance de vencer.
Nicolas Allen
O fato de ter chegado a um acordo com a outra força de esquerda, Nuevo Perú de Verónika Mendoza, deve tê-lo ajudado a consolidar uma equipe com maior formação técnica.
Farid Kahhat
Sim, de fato, Nuevo Perú tem uma equipe formada principalmente por economistas de esquerda vindos da Universidade Católica, que é uma das melhores universidades do Peru. E essas pessoas tiveram experiência em cargos públicos, por isso oferecem expertise e, ao mesmo tempo, dissipam alguns temores de radicalismo. Um membro de sua equipe foi presidente do Banco Central e foi muito prudente com a política monetária, mantendo a inflação em níveis muito baixos.
Nicolas Allen
Suponhamos que Castillo ganhe a eleição. A mídia peruana já avisa que sua presidência resultaria em colapso da bolsa de valores, fuga maciça de capitais etc. Ou seja, essas declarações podem ser uma estratégia para assustar o eleitorado, mas também podem ser uma ameaça real que imporia limites a quaisquer planos para uma transformação mais radical.
Farid Kahhat
Como eu estava dizendo, o programa de governo de Castillo se distancia do programa original do Peru Libre em um esforço para acalmar os temores da classe dominante. Mas temo que ele não consiga. A questão central parece girar em torno de como Castillo está se saindo nas pesquisas. Não tenho dúvidas de que no caso de uma vitória de Castillo, como aconteceu com Humala em 2011, haveria uma queda significativa da bolsa no dia seguinte.
Na medida em que Humala se curvou para acalmar os investidores, o problema foi que ele parou de assustá-los e, em vez disso, começou a assustar seus antigos aliados de esquerda; mas quando Humala deu sinais tranquilizadores, a economia se estabilizou novamente. No entanto, não acredito que isso não vá acontecer com Castillo – primeiro, porque Castillo está claramente à esquerda de Humala. Mas, em segundo lugar, porque o programa, por mais modificado que seja, ainda é bastante radical para um país em que os grupos empresariais são extremamente conservadores.
Há um velho ditado na América Latina: não há animal mais covarde do que um milionário. Bem, eu diria que um milionário no Peru deve ser ainda mais covarde do que a média latino-americana. Nossa direita é extremamente paranóica e vive com medo de monstros de sua própria criação. Então, o programa que Castillo lançou não vai acalmá-los nunca.
Além disso, quando Castillo anuncia coisas como a renegociação de contratos de mineração e mudanças na Constituição, isso por si só gera incerteza. O tempo que leva para renegociar contratos será repleto de instabilidade e, intrinsecamente, uma mudança na Constituição por meio de uma assembleia constituinte também. Assim, mesmo que os setores empresariais não percebam Castillo como a encarnação do mal – que é, de fato, como o percebem agora – a mera incerteza vai ser um problema para a economia.
Dito isso, Castillo pode ter uma vantagem: alguns produtos de exportação peruanos fazem parte do que as pessoas estão chamando de um novo boom de commodities, embora não tão grande como o de 2003 a 2013. Mas de qualquer forma, vamos chegar ao fim do ano com a maior parte ou quase totalidade da população adulta vacinada contra COVID-19 e com uma economia em plena recuperação em relação a 2020. Isso poderia ajudar a garantir que a incerteza política não acabe por afundar a economia.
Nicolas Allen
O que a vitória de Castillo significaria em termos históricos? Você já disse que seria o triunfo de um candidato camponês e indígena, algo inédito na história do Peru. Mas sua candidatura também coloca sobre a mesa lutas de longa data, como reforma agrária e reforma constitucional. Isso poderia “mudar a história” do Peru, por assim dizer?
Farid Kahhat
Uma das coisas que sempre me impressionou é que, apesar da demonização do general militar de esquerda Juan Velasco Alvarado – uma figura a que aludimos ao longo desta conversa – em uma pesquisa de opinião, Velasco tem os maiores índices de aprovação de qualquer presidente nas últimas décadas no Peru.
Eu teria pensado que, entre a campanha da direita para estigmatizar seu legado e o passar do tempo, a maioria nem se lembraria de Velasco ou só se lembraria dele a partir da imagem moldada pela mídia. Mas não, a memória de Velasco é muito positiva – apesar de que, para a direita peruana, invocar Velasco equivale a invocar o demônio.
O interessante sobre Castillo é que ele pode realmente representar uma mudança tão significativa quanto Velasco no nível da economia nacional. Além disso, seria a primeira vez que o Peru elegeria pelo voto popular um esquerdista indígena que tem uma agenda para fazer uma verdadeira transformação. Nesse sentido, sua presidência pode mudar este país, para melhor ou para pior. Digo para pior, porque se acabar sendo um experimento fracassado, ele se juntará a Velasco no panteão de fantasmas que assombra a elite peruana.
Se ele acabar sendo um sucesso, Castillo pode muito bem mudar o curso da história peruana contemporânea. Nesse sentido, acho que ele pode ser o governo mais importante desde Velasco – e um governo que as pessoas não esquecerão tão cedo.
Sobre o entrevistador
Nicolas Allen é o coordenador editorial da Jacobina América Latina.
Nicolas Allen é o coordenador editorial da Jacobina América Latina.
Sobre o entrevistado
Farid Kahhat é professor de Ciência Política na Pontifícia Universidade Católica do Peru e colunista do El Comercio.
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