22 de junho de 2021

Para os cineastas soviéticos, não havia glória na guerra

A experiência soviética da invasão nazista inspirou muitas obras poderosas do cinema. Em contraste com a abordagem de Hollywood à Segunda Guerra Mundial, os cineastas soviéticos evitaram imagens triunfalistas de guerra, retratando o conflito como uma necessidade brutal que nunca deveria ser repetida.

Greg Afinogenov


Still de A Infância de Ivan (1963), de Andrei Tarkovsky. (The Criterion Collection)

Tradução / Na véspera de Ano Novo, em 1940, meu bisavô Aleksandr Afinogenov realizou um jantar em seu apartamento de Moscou. Em um dado momento, os convidados – provavelmente escritores e outros intelectuais – brincaram de um jogo: escrevendo em folhas de papel, eles tentaram prever como seria o próximo ano. Alguns deles pensaram que iam mudar a cor do cabelo; outros acreditavam que se casariam ou se divorciaria.

No entanto, a maior questão era: a União Soviética se envolveria na Segunda Guerra Mundial? Alguns pensaram que sim e que a guerra seria rapidamente vencida – ou mesmo resultaria em uma revolução na Europa Ocidental. Outros acharam que seria uma derrota. Contudo, nenhum deles poderia antecipar como suas vidas mudariam profundamente quando a Alemanha nazista invadiu a União Soviética em 22 de junho de 1941. O próprio Afinogenov seria morto em um bombardeio no fim do ano. Os alemães já estavam dentro do alcance de artilharia em Moscou, e o futuro da União Soviética estava em jogo.

"Naquela manhã de junho... Tudo parecia tão simples, tão comum", diz o cineasta soviético Mikhail Romm em seu documentário de 1965, O fascismo de todos os dias:

Porém, em cada uma das nossas vidas, continua a ser uma cicatriz, uma ferida que não vai se curar. Alguns perderam um filho ou um irmão, um pai ou uma mãe; talvez toda a sua família tenha perecido ou sua casa tenha sido destruída e suas vidas quebradas ao meio.

Essa característica distintiva da experiência soviética – mais do que a incomum brutalidade da guerra ou mesmo a contribuição desproporcional da URSS para a vitória sobre os nazistas – se tornou a preocupação principal dos filmes de guerra soviéticos. Levando em conta que os exemplos americanos do mesmo gênero, sobretudo os pós-soviéticos, glorificam o conflito como uma batalha épica entre o bem e o mal, as comemorações soviéticas mais duradouras da Segunda Guerra Mundial se focaram mais profundamente em retratar a vida dos soldados e civis.

Pessoas reais

Tome Dois soldados, filmado em Tashkent em 1943. Este conto de amor e amizade entre dois camaradas – um de Odessa na Ucrânia e o outro dos Urais – se passa majoritariamente em Leningrado, onde “o front ficava no final de uma linha de bonde”. Os dois protagonistas competem pelo amor de uma mulher que vive a uma distância curta.

Em outro filme de guerra, A Invasão, um ex-criminoso luta pela redenção, mas a própria guerra mal aparece na tela; em vez disso, grande parte da ação acontece em um apartamento familiar. Mesmo no meio da guerra, os filmes soviéticos se concentraram em relacionamentos humanos, que eram pervertidos pela experiência de conflito.

Em A história de uma pessoa real, lançado logo após a guerra, a princípio parece violar tais convenções. O filme retrata um piloto de caça cujos pés são amputados e que luta, por meio da fisioterapia e o uso de próteses, para voltar às cabines de avião. Mal existe quase romance algum, e o principal relacionamento do personagem é com um comissário que o encoraja em seu propósito.

Todavia, mesmo aqui a experiência do combate está praticamente ausente. A história é definida principalmente em um hospital; somente no final, o filme retrata o heroico piloto enquanto ele põe seu plano em ação. O tema principal é a ideia um tanto banal de que um soviético é capaz de conquistar qualquer coisa.

Os primeiros esforços cinematográficos soviéticos para dar sentido à guerra sofreram alguns dos típicos problemas dos filmes na era Stálin: os personagens eram recorrentemente rasos, e os conflitos eram sentimentais ou melodramáticos. Entretanto, para os espectadores não familiarizados com o cinema soviético, a coisa mais surpreendente é a quase ausência de comentários ideológicos explícitos. Longe de serem propaganda stalinista, esses filmes evitaram frequentemente temas sensíveis ao socialismo e a revolução.

A história de uma pessoa real invoca explicitamente a clássica novela do realismo socialista Como o aço foi temperado, mas a serviço de uma narrativa que poderia provir facilmente de um filme norte-americano. Não seria nada difícil ler seu roteiro como um endosso do poder da iniciativa individual, bem como entendê-lo como uma visão do Novo Homem Soviético.

Perspectivas geracionais

No fim dos anos 1950 e 1960, como o governo de Kruschev afrouxou as restrições da era stalinista sobre a produção cultural, as representações soviéticas de guerras se tornaram ainda mais pesquisadas e elaboradas. Elas também se moveram mais para longe do foco central de batalhas e cercos idealizados.

Ainda que existissem certamente filmes de guerra focados no combate – como o épico A estrela, a respeito de uma tripulação de prisioneiros de guerra que escaparam da Alemanha em um tanque capturado –, estes não eram as vozes dominantes desse período. Em vez disso, a nova onda de filmes soviéticos tentou entender os traumas e experiências da guerra para benefício de uma ascendente geração de jovens com pouca experiência pessoal. O resultado foi um contraste implícito constante entre as vidas idílicas de jovens soviéticos na otimista era do pós-guerra e as dificuldades sofridas por seus idosos.

O filme A Infância de Ivan de Andrei Tarkovsky, feito em 1962, é a mais assombrosa dessas representações. Ele segue um menino que perde sua família durante a invasão nazista e se junta primeiro aos partisans lutando na floresta contra a ocupação, e depois ao Exército Soviético regular. Moldados no ponto crucial da guerra, Ivan fala e pensa como um veterano de combate maduro, mas ele segue sendo uma criança. Tarkovsky explora esse contraste com ternura e sensibilidade, recorrendo deliberadamente a clichês de filmes de guerra – a missão de patrulha secreta, o perigo do ataque inimigo – para explorar os futuros perdidos das milhões de crianças que perderam suas próprias infâncias para a guerra.

Entretanto, o filme que encara a situação dos jovens pós-guerra mais diretamente é aquele que, à primeira vista, não parece ser um filme de guerra. Tenho vinte anos, feito em 1965 por Marlen Khutsiev, segue as aventuras românticas e sociais diárias de um jovem chamado Sergei, crescendo no furor da prosperidade dos anos 1960. Durante a maior parte de sua ação, nem sequer menciona a guerra. Todavia, Sergei é constantemente assustado por sonhos de seu pai, um soldado que foi morto antes de ter a chance de conhecê-lo.

Sergei sente a lacuna aguda entre a seriedade existencial das escolhas impostas ao seu pai em sua idade e a trivialidade comparativa de sua própria vida. No clímax do filme, enquanto seus amigos estão bebendo e dançando em uma festa, Sergei fica sério de repente e propõe um brinde às batatas – contrastando sutilmente a necessidade e o desespero dos anos de guerra com a atual abundância. “Se não há nada sobre o qual você pode falar a sério”, ele pergunta: “Então, para que viver?”.

Como em Tenho vinte anos, O fascismo de todos os dias de Romm comemora a guerra desenhando os contrastes – desta vez, bem explícitos – entre a juventude do pós-guerra e a vida interrompida de seus idosos, o que inclui o próprio Romm. Porém, diferentemente de Khutsiev, a abordagem de Romm não é moralista. Em vez de condenar a inércia da cultura jovem, Romm a vê como o direito das crianças e jovens para pensar coisas banais.

Still de Marlen Khutsiev’s I Am Twenty (1965).

Só mesmo os incríveis recursos empregados pelo Estado nazista para doutrinar sua juventude no culto ao Führer para permitirem que tantas vidas de jovens – tanto alemães, como russo – fossem fundamentalmente alteradas pela agressão alemã. Essa abordagem humanística é um aspecto central do filme, que começa com uma montagem de desenhos infantis e um apelo às semelhanças entre as crianças de todo o mundo. Enquanto a representação da cultura nazista pelo filme é o tópico central, isso é um subjacente impulso para comunicar aos jovens soviéticos aquilo que seus pais passaram nos terríveis anos de guerra.

Acusações de militarismo

Alguns dos novos filmes de guerra são tratados diretamente com os aspectos que caracterizaram a literatura e a filmografia soviéticas anteriores sobre a guerra. Entre os melhores deles, está Quando voam as cegonhas, feito em 1957 por Mikhail Kalatozov. Este filme emocionalmente avassalador contou a história de uma mulher apelidada de Squirrel [Esquilo] cujo pretendente noivo morreu no front de batalha, deixando-a presa a um casamento forçado com seu irmão estuprador. Lida com um dos clichês mais duradouros – a ideia de que o principal dever de uma mulher no tempo de guerra é aguardar pacientemente o retorno de seu homem.

Squirrel suporta abuso sem fim e é condenada pelas pessoas que acreditam que seu “fracasso” em esperar é uma mancha na sua personagem. Resistindo à um enredo fácil, o filme parece impiedoso quanto às escolhas difíceis e traições involuntárias forçadas por pessoas em condições de guerra. Quando voam as cegonhas não oferece só uma narrativa convincente: é marcada também por cinematografia hábeis, com longas fotos da heroína que fluem entre ambientes lotados com a graça de uma dançarina. Sua cena culminante é uma condenação da guerra como tal e uma promessa do Novo Mundo a ser reconstruído pelos sobreviventes.

Para todo o imaginário de desfiles de tanques na Praça Vermelha associados à União Soviética aos olhos ocidentais e apesar do uso em grande escala da Segunda Guerra Mundial como um novo tipo de mito fundador para o Estado soviético, a ideologia oficial denuncia fortemente o militarismo. Essa é uma das razões pelas quais a guerra nesses filmes raramente parece heróica. Era menos “a boa guerra” e mais uma brutal necessidade forçada ao Estado soviético pela agressão externa. A cumplicidade soviética em algumas agressões internacionais – pela ocupação dos Bálticos e do leste da Polônia – obviamente não foi mencionada.

Também é uma razão por que há tão poucos nazistas nos filmes de guerra soviéticos. As caricaturas raivosas no cinema norte-americano estão praticamente ausentes em sua contraparte socialista. Quando aparecem, muitas vezes, são como figuras sombrias em tanques ou capacetes de infantaria – mais uma força elementar do que um inimigo ideologicamente específico.

O fascismo de todos os dias é uma exceção a essa regra. Outro é a lendária série televisiva de Tatiana Lioznova e Iulian Semënov, Dezessete momentos da primavera, que foi ao ar em 1973. Ela representava os esforços de um grupo soviético secreto – disfarçada como um funcionário da SS de alta patente – para inviabilizar a assinatura de um acordo de paz separado entre Alemanha e os aliados ocidentais. Contudo, os nazistas são retratados com profundidade e sensibilidade em Dezessete momentos. Eles são os arquitetos de um sistema genocida, mas são também conscienciosos, burocratas eficientes, homens da família, muitas vezes inteligente e urbanos.

Para os espectadores soviéticos, cuja experiência de sua própria burocracia era, muitas vezes, de caos e ineficiência, a metódica autoridade oficial do Reich televisionado era uma espécie de utopia. Por mais que o chefe da KGB, Yuri Andropov, tenha encomendado Dezessete momentos para inspirar o patriotismo e formar novos recrutas para o trabalho de inteligência, dificilmente se trata de um trabalho de pura propaganda.

Uma ausência preocupante

Há outra ausência preocupante nesses filmes: quase nenhum personagem judeu é apresentada e nunca retratam a repressão nazista desproporcionalmente voltada contra eles. Até mesmo Romm, que tinha ele próprio descendência judaica, evita a questão em O fascismo de todos os dias: o filme apresenta longas sequências nas câmaras de gás, guetos e campos de batalha, mas nunca menciona a religião ou a etnia das pessoas que foram assassinadas lá. Em vez disso, em geral, caracteriza as vítimas como comunistas, social-democratas e sindicalistas, o que certamente era parte da verdade, mas longe de ser isso tudo.

Essa omissão crítica reflete a linha do partido soviético, que efetivamente rejeitava a especificidade do Holocausto: suas vítimas eram (em alguns casos) descritas como “cidadãos soviéticos”. Esta forma de negação espelhou uma outra, com consequências ainda mais graves: a falta de qualquer representação de soldados e partisans judeus, que reforçou a percepção generalizada de que os judeus soviéticos permaneceram na Ásia Central durante a guerra, enquanto os russos e os ucranianos morreram para salvá-los.

Vá e veja de Elem Klimov, realizado em 1985, é talvez o filme de guerra soviético mais conhecido entre os cinéfilos ocidentais. Trata-se de um conto de um menino que se junta ao combate por um desejo romântico de proteger sua terra natal e, em seguida, vê e experimenta a brutalidade sem sentido em uma escala incompreensível. Obra sombria, mas, em certos aspectos, importante, Vá e veja não é tão convencional quanto parece à primeira vista.

Cena de Vá e veja de Elem Klimov (1985).

O ápice das atrocidades é a queima de uma igreja repleta de aldeões por um destacamento da SS, mas os alemães no filme não estão especialmente interessados ​​em judeus – mesmo que os judeus fossem massacrados dessas formas na maior parte das vezes. A mensagem acerca dos horrores da guerra também está baseada em um longo legado cinematográfico soviético, que apresenta a guerra como, na melhor das hipóteses, uma experiência profundamente ambígua, e o heroísmo como sempre contrabalançado pelo sofrimento e pela dor.

Nada disso desmerece o filme. Vá e veja é tão poderoso porque aborda tais temas de maneira mais plena, e sua representação do sofrimento do povo bielorrusso é autêntica, ainda que os judeus não sejam mencionados.

Filme anti-guerra

“Eu nunca vi um filme anti-guerra”, afirmou o diretor francês François Truffaut. “Todo filme sobre a guerra acaba sendo pró-guerra”. Vá e veja e muitos dos filmes soviéticos que o precederam desmentem essa caracterização. É difícil assistir o filme Quando voam as cegonhas e sair com a impressão de que a guerra é esteticamente atraente, justa ou boa para moral social – até mesmo uma guerra contra os nazistas. Este é o duradouro legado da tradição do cinema soviético, ainda que alguns de seus produtos sejam jingoístas ou preocupados com o fator heroico.

Se é mais raro encontrar representações similarmente perturbadoras da Segunda Guerra Mundial na cultura cinematográfica norte-americana, é porque os Estados Unidos nunca foram tão tocados pela guerra quanto a União Soviética foi. A contribuição norte-americana na guerra, por meio do Lend-Lease, foi essencial. Porém, foi possível para muitos norte-americanos fazer isso graças aos anos de guerra em que estiveram efetivamente intocados. Apesar de milhares terem morrido ou perdido seus entes queridos, poucos deles eram civis.

Em contraste, a guerra total representada pela Operação Barbarossa não deixou ninguém na União Soviética que não tenha sido diretamente afetado. Até as pessoas em regiões distantes contribuíram como recrutas no front. A fome e a privação afetaram a todos, à medida que o país direcionou todos os seus recursos para a vitória.

Hoje, a guerra funciona como a força de legitimação final para a ideologia oficial russa: parece ser o último episódio na história russa em que quase todos concordam com a importância e as implicações morais. Da mesma maneira, mesmo pessoas que são céticas quanto ao Pacto Molotov-Ribbentrop admitem a importância do papel soviético na derrotar dos nazistas. No entanto, o legado filme soviético torna difícil delinear uma lição única da guerra, até mesmo a sensação de que tudo valeu a pena. Como uma cicatriz, pode ser linda ou horrível, mas a ferida que ela cobre é profunda.

Sobre o autor

Greg Afinogenov ensina história russa em Georgetown. Ele é um organizador de inquilinos do projeto Stomp Out Slumlords da Metro DC DSA.

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