Joana Ramiro
Jacobin
Tradução / Se você visitar o aplicativo de busca de imóveis mais popular de Portugal e procurar um apartamento de um quarto em Lisboa, não encontrará nada mais barato do que um quarto e sala de 25 metros quadrados por €700 ao mês. Quase não há espaço ao redor da cama e menos ainda no banheiro.
Um apartamento um pouco maior na mesma área custa €800 por mês; em troca dos 5 metros quadrados extras, você terá pouca luz natural e o quarto não tem janelas. Ficará também no térreo, à mercê do barulho da rua, e perdendo toda a privacidade se abrir uma janela nas noites quentes de verão em Lisboa.
Ambos os apartamentos são considerados “pechinchas” por aqueles que os oferecem devido à sua localização, condições relativamente boas e preço. Mas com os salários médios de Lisboa em pouco menos de €1,5 mil por mês, cada listagem exige dedicar metade dos ganhos para poder morar sozinho.
Isso sem o custo de “comodidades” como eletricidade, água e internet. De fato, os dados do Eurostat mostram que alugar um apartamento de 1 quarto na capital (sem incluir os preços inflacionados pelo turismo no centro antigo da cidade) custa em média 63% do salário de um lisboense. Em Londres, uma cidade famosa por seus custos exorbitantes de habitação, o número está próximo de 40%.
O mesmo fenômeno chocante é testemunhado na maioria das cidades de Portugal, e está piorando. Pouco depois do Natal, uma pesquisa da agência imobiliária Imovirtual constatou que os inquilinos aumentaram quase 50% entre 2021 e 2022. A média do aluguel na capital é agora superior a €2.000 por mês.
Na cidade de Évora, a uma hora e meia ao sul de Lisboa, os aluguéis subiram 127,3% em apenas doze meses. Eles estão agora em torno de €1.355 mensais. Enquanto isso, Portugal tem a décima renda média mais baixa da União Europeia, com o típico trabalhador em tempo integral ganhando €1.600 por mês antes dos impostos. O salário mínimo é de €760 por mês. Você não precisa ser um economista para perceber que esse cálculo não fecha.
Classes médias superfaturadas
Ocomediante português Diogo Faro se viu como o representante improvável da crise imobiliária. Num curto vídeo viral, Faro satiriza o aumento exorbitante dos aluguéis, a crise do custo de vida, a estagnação salarial e o fato de, apesar destas estatísticas, a imprensa estrangeira e muitos “nômades digitais” continuam elegendo Portugal como um destino dos sonhos. “O mais interessante foi a reação das pessoas ao vídeo”, conta Faro.
O mesmo fenômeno chocante é testemunhado na maioria das cidades de Portugal, e está piorando. Pouco depois do Natal, uma pesquisa da agência imobiliária Imovirtual constatou que os inquilinos aumentaram quase 50% entre 2021 e 2022. A média do aluguel na capital é agora superior a €2.000 por mês.
Na cidade de Évora, a uma hora e meia ao sul de Lisboa, os aluguéis subiram 127,3% em apenas doze meses. Eles estão agora em torno de €1.355 mensais. Enquanto isso, Portugal tem a décima renda média mais baixa da União Europeia, com o típico trabalhador em tempo integral ganhando €1.600 por mês antes dos impostos. O salário mínimo é de €760 por mês. Você não precisa ser um economista para perceber que esse cálculo não fecha.
Classes médias superfaturadas
Ocomediante português Diogo Faro se viu como o representante improvável da crise imobiliária. Num curto vídeo viral, Faro satiriza o aumento exorbitante dos aluguéis, a crise do custo de vida, a estagnação salarial e o fato de, apesar destas estatísticas, a imprensa estrangeira e muitos “nômades digitais” continuam elegendo Portugal como um destino dos sonhos. “O mais interessante foi a reação das pessoas ao vídeo”, conta Faro.
"Muito organicamente, as pessoas começaram a compartilhar suas experiências [comigo] e, quando eu compartilhava esses testemunhos, uma bola de neve de mais testemunhos surgia”. Expor as experiências das pessoas comuns com a crise imobiliária não apenas aumentou a conscientização sobre o problema, fez muitos se sentirem vistos e legitimados. Faro acredita que permitiu que as pessoas pensassem: “Afinal, não sou louco” e “Há muitas outras pessoas na mesma situação que eu”.
Com sua aparência jovial e unhas coloridas, Faro poderia facilmente ser da geração Z, mas está na casa dos trinta anos. Durante a pandemia, ele também sentiu a crueldade do mercado imobiliário quando, vendo-se com menos trabalho devido ao lockdown, pediu à sua locadora uma redução no aluguel. Ela recusou, e Faro acabou tendo que deixar a casa na qual morou por seis anos. Ele teve sorte e encontrou outro lugar próximo, mas a experiência deixou um gosto amargo.
"A sociedade, o capitalismo, o sistema no qual vivemos, promete que se estudarmos, trabalharmos e nos tornarmos qualificados, teremos nossa independência, uma vida boa”, diz Faro, “mas aí você chega aos trinta e poucos, quarenta, e você tem que morar em um quarto (em uma casa compartilhada)”.
Algumas das pessoas que o contataram nos últimos meses foram médicos, enfermeiros e professores, muitos deles de famílias com renda dupla, mas ainda sem condições para pagar uma casa no interior de Lisboa ou Porto. “Isso explodiu porque agora chegou à classe médias, infelizmente os pobres, as classes baixas, estão muito tempo lutando por moradia”, acrescenta Faro.
Na sequência de seu vídeo viral, Faro ajudou a fundar a campanha Casa É Um Direito. Junto com outros movimentos o grupo planeja uma manifestação dia 1° de abril. Os números para a data ainda são incertos, mas há pelo menos quinze grupos envolvidos, e o evento contará com o apoio da Coalizão de Ação Europeia pelo Direito à Moradia e à Cidade, que por sua vez realiza uma semana de ação entre 24 de março e 2 de abril. Nos círculos ativistas, a esperança é que o descontentamento palpável e universal traga o retorno do movimento anti-austeridade que encheu as ruas de Portugal há uma década.
Os tapa-buracos do governo e os liberais assustados
Recentemente, o governo português propôs que, como parte de seu programa habitacional mais amplo, as casas que ficassem vazias por mais de um ano pudessem ser alugadas à força para o estado. Teoricamente, o dever dos proprietários de uma segunda habitação de fazer uso dessas casas está consagrado na lei portuguesa há alguns anos.
Na prática, muito poucas pessoas experimentaram o “arrendamento obrigatório” das suas casas de férias ou portfólio de imóveis. Mas lembre a burguesia portuguesa desse fato e o inferno começa.
Especialistas conservadores e liberais surgiram com força, alarmistas e em abundância. Mas, na realidade, o pacote proposto é “um pouco tarde demais”, segundo a maioria dos especialistas em habitação.
Em declarações à CNN Portugal, o advogado e ativista da habitação Vasco Barata disse que medidas como acabar com o regime de vistos gold e licenças de aluguéis de curta duração (conhecidas como Alojamento Local) são bem-vindas, mas terão pouco impacto em Lisboa e Porto, cidades que já foram muito alteradas e estão irreconhecíveis.
O mesmo se aplica a um limite indexado à inflação no preço de novos inquilinos. “Há dez anos poderia ter um efeito interessante, mas agora que Lisboa tem um aluguel médio de 2.000 euros, pergunto-me se fará alguma diferença na vida das pessoas”, disse Barata.
Pior ainda, até certo ponto as novas políticas habitacionais significam uma transferência direta de dinheiro do Estado para bolsos privados. A chamada apreensão de propriedades vazias é um excelente exemplo disso, mesmo que representantes do grande capital tentem afogá-la sob a retórica de “ataques aos direitos individuais”.
Em vez disso, o Estado está se oferecendo para alugar propriedades a preços de mercado, para depois sublocá-las a um custo menor para dezenas de milhares que precisam de casas acessíveis. Em algum lugar ao longo da linha, o contribuinte cobre a diferença.
O governo também está oferecendo isenções fiscais aos proprietários de imóveis que vendem seu estoque de moradias para o estado. Em um longo fio no Twitter, o estimado cientista clima João Camargo colocou isso claramente quando escreveu que o governo tem uma “bomba-relógio em suas mãos que eles esperavam desarmar com grandes anúncios”. Mas é improvável que a contagem regressiva desacelere.
“O governo é muito irônico, mas não é nada engraçado porque estamos falando sobre a vida das pessoas”, diz o rapper e ativista comunitário de longa data LBC Soldjah Soldjah.
Atualmente, LBC dá voz ao movimento Vida Justa, que coloca a crise da habitação no contexto das questões mais amplas que afligem os mais pobres de Portugal. Vida Justa é uma organização de base e independente, responsável por uma manifestação de milhares de pessoas em 25 de fevereiro, em Lisboa.
As pessoas com quem o Vida Justa trabalha não são apenas médicos e engenheiros. Suas contas de mídia social estão repletas de testemunhos de pessoas que vivem em habitações sociais, e favelas no cinturão do transporte urbano, os bairros. “As medidas do governo não resolverão nenhum problema”, continua LBC, “a começar pela forma como o processo foi organizado: de cima para baixo. O que o governo tem oferecido aos moradores da periferia? Nada”.
O movimento tem três demandas principais: a contenção de preços de bens essenciais, moradias acessíveis e melhores salários. E o Vida Justa não tem vergonha de irromper em outros temas urgentes, bem como de fazer pontes entre vários movimentos.
O sindicato dos professores portugueses está apoiando o Vida Justa, assim como a principal campanha climática de Portugal, a Climáximo. No sábado, vimos moradores do bairro caminhando lado a lado com defensores dos direitos humanos, com deficiência e atores famosos, como o astro da série Glória, da Netflix, Miguel Nunes.
“Sentimos uma grande onda de apoio porque as pessoas estão descontentes com o que está acontecendo. Essa é uma raiva legítima e queremos que as pessoas canalizem essa raiva para canais de combate”, diz LBC.
O protesto do Vida Justa teve ampla cobertura ao vivo pelos principais canais de transmissão e pela imprensa, e fotos de multidões em frente ao parlamento com os punhos erguidos se espalharam pelas redes sociais. Na preparação para a manifestação de 1º de abril, o protesto deste sábado seja um divisor de águas, não apenas para a crise imobiliária portuguesa, mas para a justiça social no país na totalidade.
Nesse sentido, Portugal também tem ricas tradições nas quais se espelhar. Nos dezoito meses que se seguiram à Revolução dos Cravos em 1974, um dos acontecimentos mais transformadores para a sociedade portuguesa foi a criação das comissões de moradores.
Essas assembleias populares viram os moradores locais se apropriarem de seus bairros e tomarem decisões democráticas sobre logística, construção, reforma de espaços externos e prédios abandonados e alocação de recursos. Prédios vazios foram ocupados e transformados em creches e centros sociais, e muitas favelas foram reconhecidas, permitindo legalmente que fundos do Estado viessem por meio do fornecimento de água e eletricidade.
Quase cinquenta anos depois, a luta por moradia e vida decentes pode ficar alguns passos atrás da promessa inebriante daqueles dias revolucionários. Mas para todos, menos para a burguesia histérica, tal radicalismo parece fazer muito sentido mais uma vez.
Colaborador
Joana Ramiro é jornalista, escritora, radialista e comentarista política radicada em Londres.
Com sua aparência jovial e unhas coloridas, Faro poderia facilmente ser da geração Z, mas está na casa dos trinta anos. Durante a pandemia, ele também sentiu a crueldade do mercado imobiliário quando, vendo-se com menos trabalho devido ao lockdown, pediu à sua locadora uma redução no aluguel. Ela recusou, e Faro acabou tendo que deixar a casa na qual morou por seis anos. Ele teve sorte e encontrou outro lugar próximo, mas a experiência deixou um gosto amargo.
"A sociedade, o capitalismo, o sistema no qual vivemos, promete que se estudarmos, trabalharmos e nos tornarmos qualificados, teremos nossa independência, uma vida boa”, diz Faro, “mas aí você chega aos trinta e poucos, quarenta, e você tem que morar em um quarto (em uma casa compartilhada)”.
Algumas das pessoas que o contataram nos últimos meses foram médicos, enfermeiros e professores, muitos deles de famílias com renda dupla, mas ainda sem condições para pagar uma casa no interior de Lisboa ou Porto. “Isso explodiu porque agora chegou à classe médias, infelizmente os pobres, as classes baixas, estão muito tempo lutando por moradia”, acrescenta Faro.
Na sequência de seu vídeo viral, Faro ajudou a fundar a campanha Casa É Um Direito. Junto com outros movimentos o grupo planeja uma manifestação dia 1° de abril. Os números para a data ainda são incertos, mas há pelo menos quinze grupos envolvidos, e o evento contará com o apoio da Coalizão de Ação Europeia pelo Direito à Moradia e à Cidade, que por sua vez realiza uma semana de ação entre 24 de março e 2 de abril. Nos círculos ativistas, a esperança é que o descontentamento palpável e universal traga o retorno do movimento anti-austeridade que encheu as ruas de Portugal há uma década.
Os tapa-buracos do governo e os liberais assustados
Recentemente, o governo português propôs que, como parte de seu programa habitacional mais amplo, as casas que ficassem vazias por mais de um ano pudessem ser alugadas à força para o estado. Teoricamente, o dever dos proprietários de uma segunda habitação de fazer uso dessas casas está consagrado na lei portuguesa há alguns anos.
Na prática, muito poucas pessoas experimentaram o “arrendamento obrigatório” das suas casas de férias ou portfólio de imóveis. Mas lembre a burguesia portuguesa desse fato e o inferno começa.
Especialistas conservadores e liberais surgiram com força, alarmistas e em abundância. Mas, na realidade, o pacote proposto é “um pouco tarde demais”, segundo a maioria dos especialistas em habitação.
Em declarações à CNN Portugal, o advogado e ativista da habitação Vasco Barata disse que medidas como acabar com o regime de vistos gold e licenças de aluguéis de curta duração (conhecidas como Alojamento Local) são bem-vindas, mas terão pouco impacto em Lisboa e Porto, cidades que já foram muito alteradas e estão irreconhecíveis.
O mesmo se aplica a um limite indexado à inflação no preço de novos inquilinos. “Há dez anos poderia ter um efeito interessante, mas agora que Lisboa tem um aluguel médio de 2.000 euros, pergunto-me se fará alguma diferença na vida das pessoas”, disse Barata.
Pior ainda, até certo ponto as novas políticas habitacionais significam uma transferência direta de dinheiro do Estado para bolsos privados. A chamada apreensão de propriedades vazias é um excelente exemplo disso, mesmo que representantes do grande capital tentem afogá-la sob a retórica de “ataques aos direitos individuais”.
Em vez disso, o Estado está se oferecendo para alugar propriedades a preços de mercado, para depois sublocá-las a um custo menor para dezenas de milhares que precisam de casas acessíveis. Em algum lugar ao longo da linha, o contribuinte cobre a diferença.
O governo também está oferecendo isenções fiscais aos proprietários de imóveis que vendem seu estoque de moradias para o estado. Em um longo fio no Twitter, o estimado cientista clima João Camargo colocou isso claramente quando escreveu que o governo tem uma “bomba-relógio em suas mãos que eles esperavam desarmar com grandes anúncios”. Mas é improvável que a contagem regressiva desacelere.
“O governo é muito irônico, mas não é nada engraçado porque estamos falando sobre a vida das pessoas”, diz o rapper e ativista comunitário de longa data LBC Soldjah Soldjah.
Atualmente, LBC dá voz ao movimento Vida Justa, que coloca a crise da habitação no contexto das questões mais amplas que afligem os mais pobres de Portugal. Vida Justa é uma organização de base e independente, responsável por uma manifestação de milhares de pessoas em 25 de fevereiro, em Lisboa.
As pessoas com quem o Vida Justa trabalha não são apenas médicos e engenheiros. Suas contas de mídia social estão repletas de testemunhos de pessoas que vivem em habitações sociais, e favelas no cinturão do transporte urbano, os bairros. “As medidas do governo não resolverão nenhum problema”, continua LBC, “a começar pela forma como o processo foi organizado: de cima para baixo. O que o governo tem oferecido aos moradores da periferia? Nada”.
O movimento tem três demandas principais: a contenção de preços de bens essenciais, moradias acessíveis e melhores salários. E o Vida Justa não tem vergonha de irromper em outros temas urgentes, bem como de fazer pontes entre vários movimentos.
O sindicato dos professores portugueses está apoiando o Vida Justa, assim como a principal campanha climática de Portugal, a Climáximo. No sábado, vimos moradores do bairro caminhando lado a lado com defensores dos direitos humanos, com deficiência e atores famosos, como o astro da série Glória, da Netflix, Miguel Nunes.
“Sentimos uma grande onda de apoio porque as pessoas estão descontentes com o que está acontecendo. Essa é uma raiva legítima e queremos que as pessoas canalizem essa raiva para canais de combate”, diz LBC.
O protesto do Vida Justa teve ampla cobertura ao vivo pelos principais canais de transmissão e pela imprensa, e fotos de multidões em frente ao parlamento com os punhos erguidos se espalharam pelas redes sociais. Na preparação para a manifestação de 1º de abril, o protesto deste sábado seja um divisor de águas, não apenas para a crise imobiliária portuguesa, mas para a justiça social no país na totalidade.
Nesse sentido, Portugal também tem ricas tradições nas quais se espelhar. Nos dezoito meses que se seguiram à Revolução dos Cravos em 1974, um dos acontecimentos mais transformadores para a sociedade portuguesa foi a criação das comissões de moradores.
Essas assembleias populares viram os moradores locais se apropriarem de seus bairros e tomarem decisões democráticas sobre logística, construção, reforma de espaços externos e prédios abandonados e alocação de recursos. Prédios vazios foram ocupados e transformados em creches e centros sociais, e muitas favelas foram reconhecidas, permitindo legalmente que fundos do Estado viessem por meio do fornecimento de água e eletricidade.
Quase cinquenta anos depois, a luta por moradia e vida decentes pode ficar alguns passos atrás da promessa inebriante daqueles dias revolucionários. Mas para todos, menos para a burguesia histérica, tal radicalismo parece fazer muito sentido mais uma vez.
Colaborador
Joana Ramiro é jornalista, escritora, radialista e comentarista política radicada em Londres.
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