30 de março de 2023

Por que a questão nacional importa para a esquerda

Karl Marx escreveu que "os trabalhadores não têm país" — mas ele imediatamente acrescentou que eles tinham que se tornar "a classe dirigente da nação". Por mais de um século, a esquerda lutou para conciliar as duas ideias.

Uma entrevista com
Jean-Numa Ducange


Por mais de um século, a "questão nacional" inspirou muita reflexão na esquerda. (Jorge Gil/Europa Press via Getty Images)

Entrevistado por
Adrian Thomas

Quando a primeira-ministra francesa Élisabeth Borne se levantou no parlamento para aprovar sua controversa reforma previdenciária, os parlamentares da esquerdista France Insoumise reagiram de uma maneira que seus colegas em muitos países europeus não reagiriam — ou seja, cantando o hino nacional. Ao contrário da sombria "God Save the King" da Grã-Bretanha, a trovejante "La Marseillaise" da França é pelo menos uma canção enraizada na revolução — ou mais precisamente, na guerra revolucionária. Mas seu patriotismo estridente significa que certamente não é amado por todos os esquerdistas, mesmo na França.

A relação da esquerda com o patriotismo e a identidade nacional não tem uma "solução" única — até porque não significa a mesma coisa em todos os países. Os socialistas nas democracias liberais no núcleo imperial dificilmente podem abordar o problema da mesma forma que os partidos que lideram a resistência armada à ocupação colonial. No entanto, a "questão nacional" certamente inspirou muita reflexão na esquerda, produzindo diferentes escolas de pensamento que fornecem uma visão do problema hoje.

Jean-Numa Ducange é um historiador do movimento socialista, com foco particular na França e nos países de língua alemã. Seu livro recente, Quand la Gauche pensait la Nation, discute como os socialistas na virada do século XX pensavam sobre a dimensão "nacional" de sua política e como ela se encaixava em seu proclamado internacionalismo.

Ele conversou com Adrian Thomas, da Lava Media, sobre como a esquerda tem lidado com a questão nacional — e por que ainda é um problema hoje.

Adrian Thomas

Por toda a Europa, os nacionalistas têm o vento nas velas. Eles saturam a mídia com visões fantasiosas de identidade nacional, de fato com algum sucesso. A esquerda parece não ter noção disso. Para muitos da extrema esquerda, cantar o hino nacional ou agitar a bandeira parece ultrapassado, até mesmo suspeito de tendências conservadoras. Então, partindo de suas origens, o que é de fato a nação — e de onde vem esse conceito?

Jean-Numa Ducange

É um conceito muito antigo que passou por muitas grandes reviravoltas, até o presente. Na França, costuma-se dizer que a "nação" foi um tema de esquerda após a Revolução de 1789 e gradualmente girou para a direita durante o século XIX com a ascensão do nacionalismo. "Vive la Nation" era o grito de guerra comum dos revolucionários de 1789, além de outros pontos que poderiam dividi-los. Nascia assim a ideia de uma nação política, teoricamente aberta a todas as nacionalidades, e que se baseava sobretudo num pacto político, contra os monarcas e contra qualquer perspetiva étnica.

De fato, muitos historiadores mostraram que a "nação" francesa é menos aberta do que parece. Alguns revolucionários tinham uma visão estritamente francesa, ligada à história de um povo enraizado em um território circunscrito. Mas, para muitos atores — e importantes movimentos revolucionários ao redor do mundo no século XIX — falar sobre a nação significava progresso humano e político.

Isso pode parecer uma perspectiva excessivamente centrada na França. Mas a ideia nacional manteve por muito tempo um caráter progressista para muitos povos sujeitos à opressão estrangeira. Isso se aplica a grande parte desse período histórico. Acima de tudo, a nação não é um conceito fixo definido de uma vez por todas: do ponto de vista socialista, é originalmente uma construção amplamente "burguesa", mas que pode assumir um caráter progressivo, dependendo das circunstâncias.

A nação não tem o mesmo significado quando intimamente ligada a um processo revolucionário como quando é produto de forças reacionárias. Uma das grandes questões é o lugar da nação diante de instâncias supranacionais (quer se trate de impérios, quer de estruturas mais recentes como a União Européia). Quem pode defender a nação nestas circunstâncias e em nome de quê?

Estas grandes questões não perderam a sua actualidade: e ainda hoje não há consenso sobre este ponto entre as forças da esquerda radical (dos comunistas aos ex-comunistas que permanecem à esquerda da social-democracia...).

Adrian Thomas

Que lugar Karl Marx deu à nação? Ele não escreveu no Manifesto Comunista que "os trabalhadores não têm pátria"?

Jean-Numa Ducange

Marx não deu nenhuma definição clara de nação, nem estabeleceu algum plano estratégico que teria permitido aos socialistas e comunistas dizerem "Marx disse que em tal e tal instância, devemos apoiar as demandas nacionais", etc. Ele adotou uma espécie de abordagem caso a caso — por exemplo, apoiando as demandas da oprimida Polônia — e concedeu à questão maior ou menor importância dependendo do período em que escrevia. Por exemplo, no caso de l’Algérie française — a Argélia, conquistada pela França a partir de 1830 — ele estava, como muitos socialistas da época, inicialmente convencido dos benefícios da colonização.

Mas ele evoluiu nessa questão e tornou-se cada vez mais consciente do destino específico dos povos não europeus. De Kevin Anderson a Marcello Musto, muitos pesquisadores recentes mostraram que, mais tarde na vida, Marx adotou uma leitura cada vez mais multilinear da história, abandonando a ideia de que o desenvolvimento da história humana teria de ser basicamente combatido e vencido na Europa.

Quanto à famosa linha do Manifesto de que os “trabalhadores não têm pátria”, observo que o que ele diz neste texto é muito mais nuançado quando consideramos toda a passagem. Mais precisamente, ele disse: “Os trabalhadores não têm pátria. Não podemos tirar deles o que eles não têm. Uma vez que o proletariado deve antes de mais nada adquirir a supremacia política, deve ascender à classe dirigente da nação, deve constituir-se a nação, até agora ele próprio é nacional, embora não no sentido burguês da palavra”.

Então, se citarmos apenas a primeira parte, estamos enfatizando que a falta de pátria dos trabalhadores é a principal perspectiva, também para o futuro: a abolição das fronteiras deve ser incentivada, e o desenvolvimento do capitalismo deve nos levar até lá. Mas se trouxermos a segunda parte da mesma passagem, que fala explicitamente sobre defender a nação, mas de uma forma diferente do sentido burguês, então a perspectiva muda.

Lendo a obra de Marx de forma mais ampla, acho que ele nunca realmente vislumbrou a abolição das nações, pura e simplesmente. Em vez disso, ele queria o fim da hostilidade entre as nações. Ele deixou aos marxistas muitas questões ainda por resolver: quando e em que circunstâncias eles podem defender a nação? E até onde devem ir, em termos de suas alianças políticas, para justificar uma frente comum no âmbito nacional?

Marx não entrou em detalhes sobre esse ponto, porque não considerava essa questão de importância tão central. Foram os líderes das gerações seguintes que levantaram esta questão: [Joseph] Stalin, Leon Trotsky, Karl Renner, Otto Bauer, Jean Jaurès, para citar apenas alguns.

A ideia de nação da esquerda tem variado muito. Foi um foco central durante a Belle Époque (1871-1914), tanto com Jaurès na França quanto na Europa Central. Os socialistas alemães e austro-húngaros estavam particularmente preocupados com esta questão. Para Jaurès na França, o mor pátrio estava acima de qualquer discussão: ele amava profundamente seu país, sua cultura e sua língua, que frequentemente elogiava em tons vigorosos. Mas ele nunca teve uma concepção exclusivista ou “racial” da nação.

Em seu trabalho de 1911, The New Army, ele ligou estreitamente a nação e o internacionalismo: “Um pouco de internacionalismo nos afasta da pátria; muito internacionalismo nos aproxima dela.” A lealdade ao próprio país era combinada com a defesa do internacionalismo. Para Jaurès, a França significava a pátria da Revolução e da República. Historiador dos anos de 1789 a 1794, ele se identificou com os “patriotas” desse período que se opunham aos “aristocratas”. Quanto aos países de língua alemã, o quadro era bem diferente. O ano de 1871 foi o momento em que a unificação alemã foi finalmente alcançada. Mas além do fato de que a Alemanha era agora uma realidade política e geográfica, permanecia a questão das minorias cujos direitos não haviam sido reconhecidos.

O mesmo vale para países totalmente dominados por outras pessoas. No seu caso, havia uma forte determinação em fazer valer os seus direitos nacionais, muitas vezes assumindo maior protagonismo do que as questões sociais, colocando assim poderosos desafios aos socialistas.

Podemos tomar os tchecos como exemplo. Hoje, eles estão reunidos em um país independente. Na época do império austro-húngaro, os tchecos estavam ligados à sua parte austríaca e não tinham reconhecimento específico de sua nacionalidade. No entanto, os tchecos compreendiam um grande número de trabalhadores, que estavam presentes em várias cidades industriais. A princípio, o alemão era a língua franca; o tcheco também era aprendido, mas isso foi relativamente pouco levantado como uma questão política. Mas as reivindicações linguísticas e nacionais ganharam força, a ponto de gerar conflitos com os trabalhadores de língua alemã.

Essa foi uma das razões pelas quais os austríacos (os chamados “austro-marxistas”) escreveram muito sobre questões de nacionalidade: essencialmente, eles não tiveram escolha a não ser fazê-lo e tiveram que oferecer algumas perspectivas a esses vários povos. Mas isso também definiu uma corrente mais ampla de pensamento e política, que resultou em um número impressionante de estudos e análises marxistas, estendendo-se até o início dos anos 1930.

Atendo-se à questão das nacionalidades — e simplificando enormemente — a visão deles era a seguinte: diante da realidade multinacional do Império Habsburgo, propunham uma “autonomia pessoal”, ou seja, a possibilidade de ter seus direitos “nacionais” reconhecidos pelo estado, sem que o estado seja sinônimo de qualquer nação. No contexto da Áustria-Hungria, isso significou notavelmente o reconhecimento dos direitos dos tchecos, mas sem sua secessão coletiva.

Os socialistas esperavam assim evitar a criação de muitos pequenos Estados-nação, que consideravam inviáveis. Esses princípios inspiraram alguns compromissos na época, especialmente na Morávia (parte da atual República Tcheca). A Primeira Guerra Mundial deixou de lado todos esses esforços, mas surgiram iniciativas interessantes próximas a essas ideias, como a “Federação dos Balcãs”: uma espécie de órgão supranacional que permitiria evitar a “balcanização” (uma palavra que entrou na linguagem cotidiana para se referir a guerras e fragmentação). Alguns sistemas políticos mais concretos e duradouros inspiraram-se nessas ideias, como a Iugoslávia.

Às vezes, lemos que o sistema atual na Bélgica (que reconhece as especificidades dos falantes de francês e holandês) é inspirado por essas ideias. Para mim existem sim algumas semelhanças familiares, mas nunca devemos esquecer que os austro-marxistas eram... marxistas!

A luta pelos direitos das nacionalidades tinha que estar ligada à luta social e de classes. Achavam que pelas contradições que o capitalismo gera ele seria incapaz de resolver o problema.

Adrian Thomas

Fundamentalmente, isso não é centralização idealizadora? As pessoas da classe trabalhadora têm mais interesse em viver em grandes unidades (pluri)nacionais, como a social-democracia alemã (SPD) uma vez imaginou com seu discurso de “Grande Alemanha” (isto é, que incluia todos os falantes de alemão), ou em pequenos Estados mais coerentes, como sugere o princípio da autodeterminação nacional?

Jean-Numa Ducange

Muito além do SPD, a ideia de que os proletários têm mais interesse em viver em espaços imperiais ou nacionais maiores era muito difundida ainda no início do século XX. A lógica era: não há nada a ganhar com um número cada vez maior de pequenos estados, que representam tantas divisões na classe trabalhadora.

Daí o apego de muitos militantes à ideia da "Grande Alemanha", um projeto que obviamente pode nos chocar hoje, já que essa grande Alemanha está ligada ao projeto nazista de Anschluss (anexação da Áustria à Alemanha por Adolf Hitler em 1938). Mas havia um antigo projeto "Grão-Alemão", surgido a partir da revolução de 1848, que visava, no fundo, criar um vasto território germanófono, que alguns imaginavam no modelo da República Francesa.

Por seu lado, Rosa Luxemburgo considerou ilusória a reivindicação da independência da Polônia, à época dividida entre a Rússia, a Alemanha e a Áustria. Por que, perguntou Luxemburgo, os socialistas deveriam desperdiçar o tempo dos proletários construindo novas fronteiras? Ela pensou que apoiar a independência polonesa obrigaria os partidos dos trabalhadores poloneses a se aliar a outras forças “burguesas”, ou mesmo reacionárias, sobre essa questão. Daí sua rejeição a essa demanda.

Esta prioridade colocada em unidades maiores também era difundida entre as perspectivas austro-marxistas, e os franceses também não necessariamente se distanciaram de tal perspectiva, embora em geral mostrassem pouco interesse por abordagens plurinacionais, bastante alheias à sua própria situação.

Adrian Thomas

Mas depois da Primeira Guerra Mundial, a rejeição do "social-chauvinismo"— como foi chamada a virada nacionalista dos social-democratas – esteve na base da criação dos partidos comunistas. A noção de patrie — a pátria — parece ter caído em desgraça após o grande banho de sangue de 1914-18.

Jean-Numa Ducange

Sim, de fato; uma das explicações para o grande sucesso do bolchevismo a partir de 1917 foi sua rejeição ao chauvinismo. Houve uma forte rejeição à "lavagem cerebral" e à propaganda de guerra, e os social-democratas foram associados a esse horror porque quase todos haviam apoiado os esforços de guerra de seus próprios estados no verão de 1914. Portanto, não surpreende que nos jovens partidos comunistas houvesse um repúdio visceral a todo patriotismo e a qualquer referência nacional. A nação — bem, foi em seu nome que os homens foram chamados para massacrar seus vizinhos...

Recentemente, tenho trabalhado sobre a fundação e desenvolvimento dos partidos comunistas da Alemanha e da Áustria em 1918-1920. Essas jovens organizações — especialmente na Áustria — a princípio reuniam uma ala minoritária do movimento operário e eram movidas por um internacionalismo radical que as levava a pensar que uma “Red Mitteleuropa”, uma espécie de URSS na escala da Europa Central e Oriental , estava ao seu alcance.

Sabemos das posições fortemente antinacionalistas de Luxemburgo, mas, nessa época, alguns foram ainda mais longe do que ela, defendendo um movimento operário que era “antinacional” tanto em princípio quanto na prática. Mesmo que ignoremos esta ala extremada, é claro que o internacionalismo comunista na origem destes partidos tendia a rejeitar a nação, excepto no caso dos povos oprimidos que ainda tinham de passar pela etapa nacional (a aplicação do “direito nacional à autodeterminação”) para se livrar das potências ocupantes.

Mesmo o movimento comunista francês dos primeiros anos – embora tenha dado seus primeiros passos em um país que havia saído vitorioso da Primeira Guerra Mundial e onde havia um forte sentimento de pertencimento nacional devido à ordem republicana – tinha uma visão crítica do patriotismo. Os membros do jovem Partido Comunista Francês (PCF) não quiseram cantar “La Marseillaise” e se recusaram a comemorar a Revolução Francesa, uma revolução “burguesa” que nada tinha a ver com o proletariado: era preciso abrir espaço para 1917 e o futuro pertencia ao sovietismo, que, mesmo respeitando as culturas nacionais, não pretendia mais fazer referência às nações de outrora.

Mas o que se aplicava em 1918-20 logo mudou. Na Alemanha, 1923 foi o último ano em que um movimento revolucionário de grande escala abalou o país. No início daquele ano, as tropas francesas e belgas marcharam para a região industrial do Ruhr para exigir o pagamento de reparações de guerra. Agora, a Alemanha estava parcialmente ocupada por um exército estrangeiro. Isso fez de Berlim a capital de um país oprimido? Foi um debate que percorreu a Internacional Comunista.

Alguns comunistas defendiam a resistência nacional contra o ocupante, enquanto outros desafiavam essa linha. Mas isso mostrava uma coisa: o movimento comunista não conseguia se esquivar do imperativo de se posicionar sobre a questão nacional, constantemente colocada. Dez anos depois, em 1935, quando a Internacional Comunista deu a guinada para as “Frentes Populares”, os Partidos Comunistas mudaram radicalmente sua perspectiva: agora, o PCF cantava “La Marseillaise” e reapropriava-se do legado de 1789, contrariando seus argumentos dos anos 1920. As minorias de esquerda ficaram profundamente feridas com essa mudança de atitude.

Essa virada se intensificou ainda durante a Segunda Guerra Mundial, com a resistência contra o ocupante nazista: a França, por sua vez, encontrava-se, de certa forma, na posição de país oprimido. No imediato pós-guerra, o PCF apresentou-se sobretudo como “o” grande partido nacional que defendia a independência e a soberania do país; alguns socialistas e militantes de extrema-esquerda o acusaram de chauvinismo, especialmente em questões coloniais.

Era uma forma excessiva de enquadrar as coisas, se compararmos tudo isso com a população francesa como um todo: as camadas da sociedade influenciadas pelo PCF eram mais internacionalistas e menos chauvinistas do que a norma, especialmente em comparação com as forças conservadoras que — não podemos esquecer — continuou a influenciar estruturalmente a vida política.

Adrian Thomas

Parte do movimento socialista não se desviou para o apoio à guerra e ao colonialismo, precisamente por causa de uma virada imperialista em sua ideia de nação? Por exemplo, na Bélgica poderíamos citar o caso de Émile Vandervelde.

Jean-Numa Ducange

Entre os grupos de liderança dos vários partidos da Internacional Socialista pré-1914, havia de fato uma orientação claramente favorável ao esforço colonial. Havia minorias de esquerda, principalmente em torno de [Vladimir] Lenin e Luxemburgo, que desafiavam isso, mas sem dúvida estavam isoladas.

A ideia de que era preciso reformar os impérios coloniais em um sentido mais humanista, mas sem realmente questionar seus fundamentos, era muito difundida: Vandervelde condenava o “tipo errado” de colonização. Ele tinha uma certa dimensão humanística: era capaz de condenar os crimes coloniais, mas não, mais fundamentalmente, o sistema estrutural de dominação colonial.

Isso estava no centro das contradições do Parti Ouvrier (Partido dos Trabalhadores) da Bélgica: a questão do Congo era então um dos grandes temas em debate dentro do partido. Isso era bastante difundido na época: Eduard Bernstein na Alemanha e, por muito tempo, alguém como Jaurès na França, estavam convencidos de que havia uma certa hierarquia dos povos, e desenvolveram uma espécie de “socialismo colonial” que não imaginava os povos colonizados tornando-se independentes.

Acho que essa também é uma das razões do sucesso internacional do comunismo de 1919 em diante; Lênin havia entendido bem que o século XX seria o século das lutas anticoloniais e que os comunistas deveriam lutar pela independência dos países oprimidos, mesmo que isso exigisse às vezes amplas alianças crivadas de perigos. Era necessário aliar-se a certos partidos burgueses ou nacionalistas, contra o colonizador? De sua parte, os social-democratas, ou pelo menos muitos de seus líderes, absolutamente não previram esse desenvolvimento.

Portanto, em vez de falar de uma “virada” (o que implicaria que houve uma posição claramente anti-imperialista para começar), é necessário distinguir entre as linhas opostas dentro do movimento socialista desde suas origens, que não necessariamente se sobrepõem com outras linhas divisórias. Com isso quero dizer que nem todos os reformistas eram pró-colonialistas, e nem todos os revolucionários eram anticolonialistas...

O exemplo francês é revelador a esse respeito. Conhecemos a famosa expressão “Argélia francesa”, que nos lembra o slogan da extrema-direita nacionalista que queria manter a Argélia como território francês. Quando falamos sobre os partidários da “Argélia Francesa” dos anos 1950, claramente é a isso que nos referimos. Pensemos na Organisation armée secrète (OAS), uma organização de extrema direita que organizou ataques terroristas, especialmente contra líderes da esquerda anticolonial. Mas a expressão já existia nas décadas de 1830 e 1840, e foi abertamente adotada e usada por muitos “socialistas utópicos” (por exemplo, Charles Fourier e os fourieristas). Muitas pessoas hoje têm uma queda por esses “utópicos” e cantam seus louvores contra o “socialismo científico” marxista – mas eles se esquecem totalmente desse elemento de sua visão de mundo!

De fato, o horizonte utópico desses primeiros socialistas era frequentemente colonial: os projetos que eles elaboravam para sociedades alternativas eram muitas vezes acompanhados de um orientalismo aberto, que via esses “novos territórios” africanos como o El Dorado onde eles podiam experimentar suas experiências sociais. Oitenta anos depois, os socialistas franceses se dividiram sobre a questão colonial: em 1912, um certo Lucien Deslinières apresentou ao parlamento um projeto de lei sobre o “Marrocos Socialista” em nome do grupo de deputados socialistas. A ideia consistia em enviar “bons” colonos socialistas franceses para explicar aos nativos como deveriam buscar o desenvolvimento. Esta foi uma típica abordagem colonialista de “esquerda”.

Mas esse projeto acabou sendo retirado graças à intervenção de Jaurès, que o considerou ultrajante. Sua posição sobre essa questão havia evoluído desde a década de 1880: ele agora se tornara um crítico ferrenho da ordem colonial.

Mas esse projeto foi apoiado por muito tempo por Jules Guesde, embora tenha sido ele quem mais fez para introduzir o marxismo na França. Certamente, alguns dos primeiros marxistas franceses, como Édouard Vaillant, já eram críticos brilhantes da ordem colonial. Mas neste ponto, Jaurès foi muito mais crítico do colonialismo do que outros, embora externamente eles fossem mais de esquerda em outros tópicos.

Seria necessária a criação da Internacional Comunista em 1919 antes que houvesse uma posição claramente anticolonial. Então, a partir da década de 1930, o mesmo problema surgiu mais uma vez. A virada para a Frente Popular e as amplas alianças que ela envolvia obrigaram o PCF a silenciar seu anticolonialismo.

Adrian Thomas

Chaim Zhitlowsky, um socialista judeu russo exilado na Suíça, parece ter tentado definir uma posição intermediária. Em 1899, ele escreveu em um jornal alemão que você cita que "enquanto o cosmopolitismo encontra seu ideal no desaparecimento das diferenças nacionais e entende a humanidade como um conglomerado de indivíduos isolados, o internacionalismo é baseado na ideia de confraternização entre os povos, o que não significa que um irmão deva ser idêntico ao outro como ervilhas em uma vagem." Esta é uma linha sustentável a seguir, na questão nacional?

Jean-Numa Ducange

Não estou necessariamente de acordo palavra por palavra com isso, mas o insight básico parece certo para mim. Internacionalismo não significa negar a existência de nações e culturas nacionais. Claro, essas são sempre construções históricas, mas sua longevidade e continuidade significam que influenciam estruturalmente a vida cotidiana dos indivíduos. Tentar ignorá-los, em favor de declarações que — embora generosas e fraternas — estão totalmente desconectadas da realidade de setores inteiros das classes trabalhadoras, não nos permite avançar e, portanto, deixa o campo aberto para outros.

Dificilmente poderíamos adotar o ataque de Zhitlowsky do início do século XX ao “cosmopolitismo”, uma linha que hoje tem conotações fortemente direitistas e até mesmo anti-semitas. Mas qualquer tentativa de se posicionar automaticamente contra os nacionalistas — o que à primeira vista pode parecer louvável — acaba por advogar ideias com uma circulação limitada e incompatíveis com o exercício efetivo da soberania em geral, ou da soberania popular mais particularmente.

Existe farta literatura sobre soberania popular e/ou nacional, e nesse contexto podemos discutir teoricamente o que podem e devem significar as fronteiras nacionais hoje. Mas penso que em termos de práticas concretas, a mudança social e política requer uma série de ações situadas e identificáveis envolvendo mobilidades relativamente restritas de fato e enraizamento em um determinado local de trabalho, cidade e assim por diante.

Por exemplo, no mundo de língua inglesa (e em menor escala em outros países, incluindo a França), há um interesse renovado nos conselhos de trabalhadores e em como eles se desenvolveram após 1918 (os soviéticos na Rússia, é claro, o Biennio Rosso na Itália, o Rätebewegung nos países de língua alemã, e assim por diante). Em alguns casos, esses conselhos colocaram a questão concreta do poder dos trabalhadores, do controle dos trabalhadores sobre as ferramentas de produção etc.

Posto assim, parece um ponto bastante banal. Mas me impressiona o quanto alguns tentam deixar de lado essa dimensão territorial (o que, portanto, levanta questões sobre o lugar onde o poder e a soberania concreta, “nacional”, “popular”, com raízes locais, podem ser exercidos).

Na era da revolução digital, pode-se argumentar que um número crescente de empregos está sendo completamente desterritorializado. Mas além do fato de que os trabalhos braçais e de colarinho azul continuam sendo uma realidade, mesmo que aquela parte da esquerda pareça quase esquecida, muitos empregos que são amplamente dependentes de TI estão frequentemente ligados ao trabalho coletivo situado (escritórios com a obrigatoriedade de presença de funcionários pelo menos parte da semana, etc.). Assim, a celebração da mobilidade permanente por parte de um certo tipo de esquerda contradiz certas realidades básicas, mesmo que me pareça uma reivindicação ilusória de grande parte da força de trabalho, dados os múltiplos imperativos da capitalismo.

Isso ajuda a afastar camadas importantes da população do que diz essa esquerda, e para que estas encontrem maior relevância em um discurso nostálgico-reacionário que celebra o chamado povo comum enraizado. Essas pessoas acham essas últimas reivindicações mais próximas de suas preocupações e de seu sentimento de desapropriação. Então, sim, acho que precisamos de uma posição “intermediária”: uma que mantenha uma perspectiva internacionalista da união dos povos e que pense o máximo possível em nosso destino comum e universal, mas também que afirme que uma prática política concreta (especialmente uma política socialista) tem de ser realizado a um nível que corresponda aos horizontes reais das populações. Para uma parcela muito grande das camadas populares, esse horizonte certamente ainda é nacional.

Adrian Thomas

Como você encontraria hoje um caminho marxista entre os dilemas do nacionalismo e internacionalismo, fronteiras e livre circulação, soberania nacional e globalização (ou europeização), integração (ou mesmo assimilação) e multiculturalismo?

Jean-Numa Ducange

Estas questões devem ser respondidas a partir da situação concreta para chegar a um equilíbrio adequado. Você pode me dizer que estou me esquivando da pergunta. De jeito nenhum. Voltemos brevemente ao que Lênin disse sobre a nação: apoiar o esforço nacional em um país imperialista (França, Grã-Bretanha, Alemanha, etc.) em caso de guerra. Por outro lado, Lenin apoiou as demandas nacionais dos países oprimidos, especialmente dos povos colonizados.

Em questões de soberania, uma posição sutil é necessária. Mas, em um nível mais geral, acho que estamos chegando ao fim de um ciclo em relação ao movimento livre, que a esquerda radical há muito percebe como um ideal em si mesmo.

Para reivindicar a política e defender os direitos sociais, parece-me necessário "territorializar" a política. O impressionante desenvolvimento de diferentes formas de mobilidade ao longo do último meio século há muito leva à crença oposta. Jamais voltaremos às posições anteriores, o que seria uma ideia reacionária, no sentido original da palavra. Mas a luta pela emancipação não pode prescindir de um marco concreto, de um lugar concreto.

Gostaria de ilustrar essas diferenças entre situações nacionais comparando brevemente a Europa Ocidental e a China. Há dez anos venho desenvolvendo intercâmbios acadêmicos com pesquisadores chineses sobre a história do socialismo e seus vários caminhos na história. Esses estudiosos frequentemente me perguntavam sobre a relação dos comunistas franceses (e europeus) com o mercado, a integração da UE e a nação. Para muitos deles, a reticência em relação ao projeto europeu parecia difícil de ser compreendido: eles nos veem (os países europeus) como tendo fortes especificidades nacionais, mas agora inevitavelmente formando um bloco continental, que deve se posicionar para o multilateralismo em escala internacional.

Da mesma forma, a globalização não tem o mesmo significado, pois a China jogou a carta do mercado e da globalização para o seu desenvolvimento, ainda que de forma amplamente controlada e sob a autoridade do Estado. Na França, a globalização significou um desafio para muitos aspectos de seu modelo nacional. A soberania nacional tem sido ferozmente defendida na China, mesmo quando seu comércio global se desenvolve em uma velocidade incrível.

Claro que tudo isso exigiria uma discussão mais precisa de cada uma das questões em jogo; mas mostra que não podemos definir a priori um conjunto simples e uniforme de respostas. Mais uma razão para reviver o internacionalismo original, que implicava sobretudo intercâmbios entre várias experiências nacionais.

Um último ponto, sobre a questão do "multiculturalismo". Se ficarmos num nível muito geral, podemos pensar que o "multiculturalismo" é uma coisa positiva em si: o reconhecimento dos direitos, da diversidade das culturas, etc. Alguns até veem uma semelhança familiar com o austro-marxismo.

Em certo nível de generalidade, ninguém negará a diferença das culturas e a necessidade de preservá-las. Mas, na prática, é preciso levar em conta as realidades nacionais, as dinâmicas de assimilação e as dinâmicas de integração, que nem todas têm sido negativas — longe disso. No século XX, os sindicatos e os partidos de esquerda desempenharam um papel assimilador para muitos imigrantes por meio de suas lutas e atividades no local de trabalho, por exemplo na França. Isso acompanhou a estruturação de uma consciência de classe.

É totalmente ingênuo acreditar, como dizem alguns multiculturalistas, que a realidade mudou e que qualquer tipo de "assimilação" se tornou reacionária, etc. Para ter uma perspectiva socialista, é preciso criar algo em comum, para "fazer um povo".

Mais uma vez, é difícil encontrar o equilíbrio. Mas a exaltação de todas as especificidades, de todas as diferenças — além do fato de que às vezes são ambivalentes e que os conservadores podem igualmente defender isso, no sentido "cada um a sua religião, suas particularidades, etc." — estão em desacordo com uma perspectiva real de libertação.

Colaboradores

Jean-Numa Ducange é professor da Université de Rouen e autor de Jules Guesde: The Birth of Socialism and Marxism in France (Palgrave, 2020) e Quand la Gauche pensait la Nation: Nationalités et socialismes à la Belle-Époque ( Fayard, 2021).

Adrian Thomas é editor da Lava Media.

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