30 de abril de 2021

A raiva transborda na Colômbia

A reforma tributária profundamente impopular promovida por Iván Duque desencadeou fúria na Colômbia. Após a greve geral de 28 de abril, os protestos continuam a crescer, assim como o desafio ao regime autoritário neoliberal de Duque.

Estefanía Martínez


Foto: Luis Carlos Ayala

Tradução / Na Colômbia, a proposta de uma reforma tributária profundamente regressiva – que visa “salvar o Estado” do déficit fiscal em que se encontra após a crise – foi a gota d’água que trouxe milhares de pessoas de diferentes cidades e territórios do país a aderir ao grande dia de greve nacional na última quarta-feira, 28 de abril. Realizaram-se passeatas em todas as cidades, incluindo os municípios mais afastados das fronteiras agrícolas e extrativas, em Choco, Meta, Vichada e Arauca.

Em meio à falta de proteção geral que vive a população colombiana, com mais de 72 mil mortes por causa da COVID-19, mais da metade da força de trabalho na informalidade, 4 milhões de desempregados e um setor camponês abandonado à própria sorte, o governo pretende aprovar uma reforma que vai aumentar a desigualdade. Embora existam modelos de reformas tributárias progressivas que buscam tributar os lucros das empresas e redistribuir a riqueza, a atual reforma na Colômbia é, ao contrário, uma reforma regressiva com características do ancien régime: busca fazer com que as massas paguem mais tributos indiretos, tributando os salários dos trabalhadores, ao mesmo tempo que exclui “a nobreza”, o poder eclesiástico e a classe oligárquica capitalista deste reajuste. Também busca preservar o orçamento militar do Estado para manter a política de controle territorial e garantir o modelo de desenvolvimento neoliberal que se baseia na propriedade e na expropriação da terra. Não é paradoxal que seja um “duque” que esteja por trás dessa reforma.

O caráter ilusório da igualdade e da solidariedade no regime neoliberal

O problema não é que a reforma “fará com que todos paguemos impostos”, como indicam algumas mensagens benevolentes que circulam nas redes sociais para convencer pessoas de diversos setores sociais, partidos políticos e origens a se unirem ao protesto contra a reforma tributária do governo. Ficou claro desde o início, quando vazaram informações sobre o projeto de reforma, que ele não buscava tributar “todo mundo”, mas sim os não-ricos. A chamada “Lei de Solidariedade Sustentável” é uma reforma tributária proposta pela bancada uribista que apoia o atual governo para viabilizar as finanças públicas no contexto da crise e manter a confiança dos investidores e credores estrangeiros.

A palavra “solidariedade” é um eufemismo copiado das atuais reformas na Alemanha, França, Espanha e Itália para se referir ao imposto “temporário” sobre a riqueza que visa fazer com que os ricos contribuam um pouco para reconstruir as economias pós-pandêmicas. Na Colômbia, a lei propõe a criação de um imposto sobre o patrimônio de 1% sobre os ativos que excedam 4.800 milhões de pesos (US$ 1,35 milhões) e de 2% sobre os ativos que excedam 14.000 milhões de pesos (US$ 4 milhões). Da mesma forma, propõe a redução do imposto para as empresas, a criação de impostos verdes para mitigar as mudanças climáticas (por exemplo, a sobretaxa de gasolina, diesel, biocombustível e álcool combustível e impostos sobre o plástico) e a cobrança de contribuições aos trabalhadores em os setores público e privado que ganham mais de 10 milhões de pesos por mês (cerca de US$ 2.765).

Segundo a CEPAL, na América Latina os 10% mais ricos detêm 71% da riqueza e pagam apenas 5,4% de sua renda. Na Colômbia, o 1% mais rico paga menos imposto de renda na proporção de sua renda, uma porcentagem abaixo da média regional. Portanto, embora a reforma possa parecer à primeira vista uma reforma “progressiva”, na realidade não é.

A reforma, na verdade, procura garantir que os ricos paguem menos, dando-lhes esmolas para deduzirem seu imposto sobre a riqueza do imposto de renda, que por sua vez é fixado em alíquotas regressivas. Por outro lado, o imposto não incide sobre os lucros das empresas que, ao contrário, receberiam um alívio na carga tributária que seria assumida por um novo grupo de pessoas: a classe trabalhadora que ganha mais de 2,6 salários mínimos mensais (2,4 milhões de pesos equivalentes a US$ 663).

Mas, o ponto mais regressivo da reforma é a tentativa de aumentar o ICMS de 16% para 19% sobre uma série de produtos básicos de consumo (como ovos, café e leite) e sobre as tarifas dos serviços públicos de energia, gás e esgoto. De acordo com estatísticas oficiais, uma família média precisa cobrir suas despesas de alimentação com meio salário mínimo mensal e um pouco mais do que um salário mínimo para cobrir outras necessidades básicas, como transporte e etc. Mesmo assim, esse valor não inclui os altos custos da saúde – dada a saturação do subsidiado e o custo dos medicamentos em um país onde os preços são fixados por empresas farmacêuticas multinacionais – nem as dívidas com o ICETEX para pagar aos ensino superior privado frente ao subfinanciamento da educação pública.

Ao todo, o governo pretende com a reforma que o maior percentual (74%) da arrecadação de dinheiro venha desse grupo de pessoas consideradas “pessoas físicas” enquanto as empresas contribuiriam com apenas 25% (sem incluir igrejas, um setor lucrativo que o presidente Duque, no entanto, se recusa a tributar). Assim, esperava-se arrecadar 25 bilhões de pesos adicionais (cerca de US$ 6.850 milhões) para o orçamento dos próximos anos.

O presidente Duque defendeu a lei mesmo depois de protestos massivos que eclodiram em 28 de abril. Segundo ele, é a única alternativa que permitiria ao país reduzir o endividamento, aumentar as receitas e estabilizar as contas em meio a uma crise econômica provocada pela pandemia do coronavírus, mantendo programas de previdência social. Com isso, ele se refere a programas como Renda Solidária que concede a soma de 160 mil pesos (menos de US$ 45 dólares) a 5 milhões de famílias colombianas, apoio a estudantes de baixa renda para estudar em escolas particulares e universidades e o apoio a pequenas e médias empresas para pagar a previdência social de jovens com idades entre os 18 e os 28 anos.

Esses programas, que fazem parte do arcabouço da política de redução da pobreza e da desigualdade, foram, no entanto, criados para adoçar um modelo de disciplina fiscal baseado nos princípios da economia neoclássica que sugerem a retirada do Estado na prestação de serviços sociais básicos. Em vez de restaurar a gratuidade e garantir a qualidade dos serviços públicos para melhor enfrentar a atual crise de saúde, a proposta do governo é manter o modelo neoliberal que beneficia uma minoria enquanto despeja migalhas sobre a maioria.

A obsessão de Duque com o déficit fiscal e o crescimento

A “reforma solidária pós-pandêmica” de Duque não oferece nada diferente do pacote de políticas lançado em 2018 sob a Lei de Crescimento Econômico, que havia sido construído seguindo à risca as recomendações de organizações internacionais como o FMI e o Banco Mundial e o mandato (ainda em vigor na Colômbia) do Consenso de Washington: disciplina fiscal, corte de gastos públicos, liberalização financeira, liberalização comercial, investimento estrangeiro direto e privatização de empresas estatais. Essa lei buscou reativar a economia e gerar confiança nos investimentos, após a desaceleração regional vivida em decorrência da queda dos preços das matérias-primas em 2014.

O governo Duque aplicou medidas de austeridade e cortou gastos públicos, baixou impostos para empresas e bancos. Isso se refletiu em um crescimento do PIB de 2,7% no final de 2018 no aumento extraordinário dos lucros do setor financeiro (11 bilhões de pesos que os bancos ganharam em 2019 com uma rentabilidade de 12%).

Enquanto isso, os colombianos estavam ficando cada vez mais empobrecidos. Os protestos de novembro de 2019 foram o resultado desse processo, denunciando, entre outras coisas, o rebaixamento dos padrões de vida, uma proposta de reforma da previdência e o desmantelamento das leis trabalhistas. Mas mesmo assim, o projeto de reforma tributária atual era uma preocupação crescente.

Após os protestos de novembro, o governo Duque tentou recuperar a popularidade com a propaganda de pão e circo: anunciou um dia de compras frenéticas sem imposto no auge da pandemia, ganhando o apelido de “Black Friday da COVID”. Milhares de pessoas correram para shoppings e supermercados, algumas delas usando o subsídio da Renda Solidária para comprar produtos livres de impostos (ao mesmo tempo em que aumentam as vendas das grandes redes de lojas e supermercados). Mas o esforço para aumentar o apoio popular acabou falhando.

“Uma economia desenvolvida em 2035”

Existem várias razões pelas quais o governo Duque está tão obcecado em reduzir o déficit fiscal e em buscar novas fontes de receita para programas de subsídio à pobreza. Por um lado, Duque deseja manter seu apoio entre as classes mais baixas da Colômbia, de olho nas próximas eleições presidenciais de 2022. Mas, como o ex-presidente Álvaro Uribe previu em seus comentários sobre a recente onda de protestos, “a reforma vai prejudicar o partido”.

Por outro lado, Duque mantém um apego ideológico, quase religioso, aos princípios da economia neoclássica em que foi formado, segundo os quais maior disciplina fiscal e redução do déficit são necessárias para garantir o crescimento. Ele compartilha esse apego ideológico com o grupo de “Chicago Boys” colombianos que assessoram a política econômica e monetária do país. Um deles, o criador do atual projeto de reforma tributária e agora ex-ministro da Fazenda, Alberto Carrasquilla, anunciou que renunciará ao cargo em face dos crescentes protestos nas ruas.

Duque também está preocupado que agências de classificação como Fitch e Moody rebaixem a pontuação do país, limitando o acesso ao investimento estrangeiro e empréstimos internacionais dos quais o país depende para financiar uma série de grandes projetos de infraestrutura que deveriam permitir que a Colômbia se tornasse um “economia desenvolvida” em 2035.

De acordo com o Relatório de Competitividade Global elaborado na Agenda de Davos, a Colômbia ocupa a 104ª posição em uma lista de 141 países em termos de qualidade de sua rede de infraestrutura. Em particular, é por isso que o governo Duque pretende usar uma parte significativa do orçamento público (3,3 bilhões de pesos) para financiar as obras do chamado Pacto Bicentenário: uma série de estradas, conhecidas como “4 e 5g”, destinadas a melhorar o transporte em diferentes regiões da Colômbia. Esses projetos de infraestrutura representam em potencial uma mina de ouro para o capital internacional.

Além dos empreiteiros envolvidos (incluindo o magnata colombiano Luis Carlos Sarmiento Angulo, um dos homens mais ricos do mundo com uma fortuna próxima de US$ 12 bilhões), os projetos de infraestrutura também beneficiariam muitos dos oligopólios do país. Por exemplo, o setor canavieiro, a Federação Nacional dos Pecuaristas e o Grupo Empresarial de Antioquia (que por sua vez controla as principais redes de supermercados e indústrias básicas) seriam beneficiados. O mesmo se aplica às multinacionais que atuam no país.

O modelo colombiano de acumulação

O atual modelo de acumulação capitalista na Colômbia consolidou-se na década de 1990 com o programa neoliberal de liberalização econômica. Essa agenda descentralizou os royalties extrativistas e reduziu a participação do Estado na produção e distribuição de energia, saúde e outros serviços sociais básicos, mas manteve medidas protecionistas para os setores oligárquicos do país.

Desde então, o modelo de acumulação da Colômbia tem se baseado na exploração das classes urbanas por meio de bens de consumo, energia e tarifas de serviços públicos, o que por sua vez é possibilitado pela exploração do campo e da força de trabalho rural: Na Colômbia, os camponeses são responsáveis por 70% dos alimentos, mas 1% das grandes propriedades rurais que concentra 81% das terras. Em outras palavras, os camponeses e pequenos produtores rurais ocupam menos de 5% do total das terras rurais e possuem em média menos de dois hectares de terra.

Como David Harvey apontou em sua análise sobre “acumulação por expropriação”, a expansão do capital na fase neoliberal foi baseada na especulação, predação, fraude e roubo da riqueza socialmente produzida. Embora essas dinâmicas não sejam de forma alguma excepcionais para a Colômbia, o modelo de acumulação lá foi fortemente voltado para a expropriação e deslocamento de milhares de pessoas de seus territórios, incluindo camponeses, povos indígenas e populações afro-colombianas. Em seu lugar, são formadas grandes propriedades agrícolas que recebem incentivos fiscais para produzir óleo de palma, biocombustíveis, ração para animais e carne para exportação.

Como parte desse modelo, o governo Duque destina uma grande parte do orçamento do Estado para a continuação da guerra interna da Colômbia. O resultado desse conflito foi o deslocamento interno de quase 7 milhões de pessoas (atrás apenas da Síria em todo o mundo) e a morte de inúmeros civis. Os gastos militares também permitem manter o controle sobre as populações que não têm acesso a nenhum serviço do Estado.

Nesse sentido, a contra-insurgência militar desempenhou um papel fundamental para garantir que as empresas petrolíferas e a classe proprietária de terras (em sua maioria criadores de gado) tenham acesso seguro às áreas que permanecem sob o controle da guerrilha. Da mesma forma, é graças a essa política de contra-insurgência que o Estado colombiano continua obtendo apoio financeiro internacional para o combate às drogas.

O sistema em teste

A atual onda de greves na Colômbia também é uma resposta à virada cada vez mais militarista e autoritária que o país tomou sob Duque. Além do assassinato da governadora indígena Liliana Peña, do departamento cocaleiro de Cauca, manifestantes denunciam o assassinato de mais de 1.100 camponeses, líderes sindicais, afro-colombianos e mulheres desde a assinatura do Acordo de Paz de Havana entre o Estado e o grupo guerrilheiro das FARC em 2016.

Duque não apenas ignorou esse acordo, mas também seguiu uma política de execuções extrajudiciais sob o modelo de “falsos positivos” implementado pelo governo de Álvaro Uribe em 2006, em que civis assassinados são disfarçados de guerrilheiros e apresentados como “vítimas de combate”.

A revolta popular que deu origem à Revolução de fevereiro de 1917 na Rússia começou em condições semelhantes às da Colômbia hoje: um regime autocrático e repressivo com uma economia fundamentalmente agrária, uma elite latifundiária concentrando terras sob um regime de estilo feudal e uma classe trabalhadora concentrada na cidade, atraída pelo crescimento das indústrias de capital estrangeiro. No final da Primeira Guerra Mundial, o Império Russo mergulhou em uma crise com ampla escassez de alimentos e fome. Foi a repressão aos protestos ordenada pelo czar, levando à morte de centenas de manifestantes, que acendeu a raiva e a indignação que resultou na revolução.

Por trás do regime neoliberal repressivo da Colômbia está um setor camponês explorado, propriedades agroindustriais concentradas e uma classe urbana empobrecida, informal e muitas vezes desempregada que tem que pagar pelo acesso a bens e serviços básicos. Com o aumento da raiva e nenhum sinal de que os protestos irão diminuir, o futuro da Colômbia é incerto.

Os protestos são cada vez mais violentos, com mais de 20 pessoas mortas pelos esquadrões do choque nos últimos dias, além de centenas de prisões e vários desaparecidos. A ordem de Duque para que o exército reprima os protestos em Cali, o epicentro do ataque no sudoeste, é um sinal do que está por vir.

Os protestos conseguiram que o governo revogasse a lei de reforma tributária e anunciasse a elaboração de um novo projeto de lei, supostamente menos oneroso. Embora em princípio isentasse alguns dos pontos mais impopulares, como o imposto sobre alimentos básicos, salários e pensões. Entretanto, essas concessões não parecem mais suficientes e os colombianos continuam nas ruas exigindo mais.

À medida que os protestos continuam, mais pessoas pedem que o Estado ponha fim à violência e repressão aos manifestantes, à renúncia do ministro da Defesa, o descarte da lei que permite a intermediação financeira na prestação de serviços de saúde e a eliminação de privilégios aos bancos, empresas privadas, milícias e políticos, especialmente aqueles inseridos na atual elite governante.

Embora seja muito cedo para saber como isso vai acabar, a raiva crescente contra a resposta do governo à crise econômica e sanitária está reunindo os pobres, trabalhadores da saúde, estudantes, camponeses, indígenas, LGBT, afrocolombianos, vendedores ambulantes e trabalhadores informais. Depois de três décadas sofrendo sob um dos regimes neoliberais mais violentos do mundo, os colombianos estão começando a se unir e tentando virar a maré.

Sobre a autora

Socióloga pela Universidad del Valle, estudante de doutorado em geografia pela Universidade de Montreal e ex-membro do Centro Nacional de Estratégias pelo Direito à Terra (CENEDET), Equador.

O fim da Commonwealth de Puerto Rico

Representantes dos EUA apresentaram dois projetos de lei que finalmente acabariam com o status subordinado da Commonwealth de Porto Rico. Mas a continuação do domínio colonial pode ser a única opção que o Congresso considera seriamente.

Pedro Cabán

(Lorie Shaull / Flickr)

O Comitê de Recursos Naturais da Câmara realizou audiências em 14 de abril de 2021 sobre dois projetos de lei que propõem o fim da condição de Porto Rico como território não incorporado dos Estados Unidos: HR 1522, a Puerto Rico Statehood Admission Act e HR 2070, o Puerto Rico Self-Determination Ac de 2021. De acordo com o HR 1522, Porto Rico realizaria um referendo, com uma transição para um estado se o eleitorado escolher essa opção territorial. A H.R. 2070 não especifica opções territoriais; em vez disso, os delegados eleitos para uma Convenção de Status de Porto Rico redigiriam uma lista de opções de autodeterminação e um referendo seria realizado para que os eleitores selecionassem a opção preferida. De acordo com o senador Bob Menendez, co-patrocinador do H.R. 2070, as opções disponíveis incluem “um estado, independência, uma associação livre ou qualquer opção que não seja o atual arranjo territorial”. Ambas as medidas obrigariam o Congresso a acatar a decisão do povo porto-riquenho sobre o status territorial de seu país.

As audiências sinalizaram uma mudança na abordagem do governo em relação a Porto Rico. Pela primeira vez, o Congresso apresentou legislação que excluía o Estado Libre Asociado (“Estado Livre Associado”, comumente conhecido como Commonwealth) como uma opção territorial. O ELA surgiu durante a Guerra Fria como uma forma de refutar a denúncia credível da União Soviética aos Estados Unidos como potência colonial. O governo Truman pediu ao Congresso em 1950 que votasse a Lei Pública 600 (a legislação que permite a ELA) porque, "em vista da importância do 'colonialismo' e do 'imperialismo' na propaganda antiamericana", a aprovação do projeto teria " grande valor como um símbolo da liberdade básica desfrutada por Porto Rico.” O governador porto-riquenho Luís Muñoz Marín disse que a ELA “libertará os porto-riquenhos e o povo dos demais estados da acusação maliciosa de colonialismo tão constantemente feita contra eles por grupos comunistas na América Latina”. Depois de assinar o PL 600 como lei, o presidente Truman anunciou triunfantemente que “a autoridade e a responsabilidade total pelo autogoverno local serão investidos no povo de Porto Rico”. O ELA foi oficialmente estabelecido em 25 de julho de 1952, exatamente 54 anos após o dia em que o General do Exército dos EUA Nelson A. Miles desembarcou com uma força de invasão na cidade costeira de Guánica durante a Guerra Hispano-Americana.

No entanto, a autonomia de Porto Rico sempre foi provisória. O Congresso não abriu mão de seus poderes constitucionalmente delegados sobre os territórios. Simplesmente permitia que os porto-riquenhos “organizassem um governo de acordo com uma constituição de sua própria adoção”. Na verdade, os porto-riquenhos ratificaram uma constituição que consentia efetivamente em sua contínua subjugação colonial. Para o governo Truman, a aprovação do projeto de lei da Commonwealth foi “da maior importância... a fim de que o consentimento formal dos porto-riquenhos possa ser dado ao seu relacionamento atual com os Estados Unidos.” Sem rodeios, o ELA foi um instrumento para provar que os colonizados aceitavam formalmente o domínio colonial dos EUA.

No entanto, por sete décadas os Estados Unidos retrataram a ELA como um provedor de poderes de autogoverno  a Porto Rico. Recentemente, em 2011, a Força-Tarefa do Presidente sobre Status relatou que a Commonwealth "tem uma autonomia política local significativa" e relatou que "tal autonomia nunca deve ser reduzida ou ameaçada".


Com o colapso da União Soviética em 1991, o valor estratégico e ideológico de Porto Rico para os Estados Unidos diminuiu rapidamente, assim como qualquer urgência em sustentar economicamente a colônia. Em 2006, os Estados Unidos fecharam a enorme Estação Naval Roosevelt Roads e encerraram as políticas fiscais preferenciais que atraíam corporações multinacionais para o arquipélago. Ambas as decisões resultaram em um declínio vertiginoso da renda nacional bruta, e Porto Rico começou a cair em uma recessão prolongada. Em um esforço arriscado para reverter a dramática contração da receita, o governo colonial fez empréstimos excessivos do mercado de títulos institucionais dos EUA. Mas a economia exaurida de Porto Rico não conseguiu sustentar o fardo do aumento da dívida. As sucessivas administrações utilizaram a autonomia fiscal que o Congresso concedeu a Porto Rico para decretar medidas draconianas de austeridade em um esforço fracassado para restaurar a solvência fiscal, mas os profundos cortes no emprego e nos serviços do governo não conseguiram reduzir a dívida pendente.

Depois de anos de punição pelas medidas de austeridade, os porto-riquenhos começaram a compreender a realidade de que sua classe política devia sua fidelidade ao capital estrangeiro e não a trabalhadores desempregados, aposentados em dificuldades ou famílias pobres. Os porto-riquenhos também aprenderam que o ELA, independentemente de qual partido controlasse as alavancas do governo, não estava à altura da tarefa de administrar a crise fiscal. O ELA foi exposta pelo que era: um instrumento de gestão colonial que havia sobrevivido ao seu propósito.

Em 6 de novembro de 2012, porto-riquenhos indignados votaram pela destituição do governador pró-categoria de estado, Luis Fortuño. Mas em um referendo realizado no mesmo dia, 54 por cento do eleitorado votou contra a manutenção do atual status territorial de Porto Rico. A maioria havia abandonado a esperança de que o ELA pudesse ser restaurado para a era moderna, mas eles mudaram de um lado para outro em relação ao apoio aos partidos da categoria de Estado e da Commonwealth na esperança de que cada nova administração não fosse prejudicada pela inépcia, corrupção e tendência para a austeridade de seu antecessor.

O governo federal também estava chegando à conclusão de que uma mudança era necessária para resolver a crise fiscal. Mas os Estados Unidos estavam convencidos de que os líderes políticos de Porto Rico eram os únicos culpados. Em 2016, a administração Obama promulgou a PROMESA, que rescindiu a autonomia fiscal informal concedida pelo Congresso a Porto Rico em 1952. A lei autorizou o presidente a nomear um Conselho de Supervisão Financeira e Gestão (FOMB) que requeria "fornecer um método" para Porto Rico “alcançar a responsabilidade fiscal e o acesso aos mercados de capitais.” O FOMB "detém a supremacia sobre qualquer lei ou regulamento territorial que seja inconsistente com a lei ou planos de reforma fiscal."

Os porto-riquenhos, que não têm representantes no Congresso, foram excluídos das deliberações e da redação de uma lei que teria consequências catastróficas para muitos no arquipélago. A PROMESA negou a declaração de Truman em 1952 de que "a Comunidade de Porto Rico será um governo que é verdadeiramente pelo consentimento dos governados." Mas Obama não teve que revogar o PL 600, porque a lei nunca restringiu “a autoridade do Congresso sob a Cláusula Territorial de determinar a aplicação da lei federal a Porto Rico”. O Congresso simplesmente permitiu que a classe política de Porto Rico administrasse as finanças da colônia - até que essa política de negligência benigna viesse a resultar em uma grande crise para os investidores institucionais dos EUA.

Nas principais mobilizações populares em Porto Rico nos últimos anos, os manifestantes expressaram sua oposição tanto à elite política local quanto a Washington. Em outras palavras, eles estão rejeitando todo o sistema de domínio colonial. Para os porto-riquenhos que protestavam contra o governo Rosselló no verão de 2019, o ELA não tinha mais qualquer legitimidade. Um canto popular capturou sua antipatia pela Comunidade: “Sí, sí, ELA se murió, y el pueblo lo enterró” (“Sim, sim, o ELA morreu, e o povo a enterrarou”).


Mas se o ELA está morto, por quanto tempo permanecerá em vigência? Será enterrado algum dia?

Os senadores de ambos os lados do corredor já expressaram sua oposição à categoria de Estado, incluindo o senador Chuck Schumer, que disse que “não vai apoiar seu projeto de Estado”. Mesmo se o Congresso concordasse em aceitar os resultados de um referendo, é duvidoso que se comprometeria a admitir Porto Rico na união com base na maioria simples dos votos, como prevê a H.R. 1522. Na ausência de um apoio popular esmagador para a criação de um Estado, o Congresso não agirá.

Exigir a aceitação de um referendo pelo Congresso é o calcanhar de Aquiles de ambos os projetos em consideração. Mais de trinta anos atrás, o Congresso debateu a legislação de status territorial que continha uma “cláusula autoexecutável”, obrigando o Congresso a aceitar os resultados do referendo. A legislação foi adiada até que a exigência vinculante fosse removida das versões do projeto de lei na Câmara e no Senado. A Câmara aprovou a Lei de Autodeterminação de Porto Rico em 1991, mas o projeto morreu na Comissão de Recursos Naturais e Energia do Senado. O New York Times informou que os senadores republicanos “temiam que um estado porto-riquenho enviasse uma delegação majoritariamente democrata ao Congresso”. Alguns senadores também estavam convencidos de que conceder um estado a Porto Rico “daria impulso a uma campanha para conceder um estado ao Distrito de Colúmbia”. Outros questionaram os custos de manutenção do estado de Porto Rico, onde quase metade da população se qualificaria para receber benefícios sociais. Todas essas questões surgirão nas próximas deliberações do Congresso sobre a legislação sobre status.


A Suprema Corte decidiu em 1901 não incorporar Porto Rico como território porque era “habitado por raças estrangeiras”. O racismo há muito influencia o tratamento dado a Porto Rico pelos EUA, desde a legislação do referendo de 1991. Depois que o Comitê de Recursos Naturais e Energia se recusou a apoiar o projeto de lei, o senador de Nova York Daniel Patrick Moynihan denunciou o comportamento de seus colegas como a “mais vergonhosa demonstração de nativismo que ainda não encontrei em 15 anos no Senado. Um senador após o outro aproveitou a ocasião para dizer que não tinha certeza se os porto-riquenhos pertenciam à sociedade americana”. Ele condenou os comentários de colegas que acreditavam que os porto-riquenhos “não se encaixam culturalmente” nos Estados Unidos.

E o racismo continua a moldar a questão do status de Porto Rico hoje. Logo depois que o furacão María devastou Porto Rico, o presidente Trump lançou uma enxurrada de declarações humilhantes sobre o arquipélago e seu povo. Poucos meses antes da eleição de 2020, Trump ameaçou vender Porto Rico porque “era sujo e as pessoas eram pobres”. Com seu silêncio, o Partido Republicano endossou os comentários racistas de Trump - e não devemos nos surpreender se o nativismo aparecer novamente nos debates sobre o status territorial que temos pela frente.

Quais são as opções territoriais realistas de Porto Rico? Rubén Berríos, presidente do Partido da Independência de Porto Rico, levantou uma questão nas audiências da comissão do Senado em 1991 que se mantem relevante hoje: a verdadeira questão é que tipo de relacionamento os Estados Unidos deveriam ter com um “povo que constitui um povo historicamente distinto nacionalmente, habitando um território separado e distinto, que falam uma língua diferente, que aspiram manter uma identidade separada e acontecem, sem escolha própria, serem cidadãos dos Estados Unidos ” A história sugere que, embora o Estado Libre Asociado esteja morto, a continuação do domínio colonial pode muito bem ser a única opção que o Congresso considerará seriamente.

Sobre o autor

Pedro Cabán é professor de Latin American, Caribbean and U.S. Latino Studies na Universidade de Albany.

Trabalhadores de apps, uni-vos!

É possível combinar prestação de serviços via plataformas eletrônicas com direitos básicos

Nelson Barbosa


Amanhã é 1º de maio, e aproveito para falar sobre mercado de trabalho.

Antes da Covid, já assistíamos a mudanças estruturais no mundo do emprego, com redução de contratos formais e aumento de trabalhadores autônomos, sobretudo na prestação de serviços via aplicativos.

Os avanços da tecnologia de informação proporcionaram grandes ganhos de produtividade nos últimos anos, mas parte da queda de preço de alguns serviços também se deve à arbitragem regulatória feita pelas empresas.

Traduzindo do economês, a entrada de grandes firmas de tecnologia (as big techs) em vários mercados reduziu margens de lucro e aumentou o acesso da população a vários serviços, mas nem toda redução de preço veio de eficiência produtiva.

Parte dos ganhos veio da contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas, de modo a evitar o custo e a regulação trabalhista (recomendo o filme britânico “Você Não Estava Aqui”).

Sou favorável a que cada um trabalhe como e para quem quiser, mas o leitor sabe que gosto de chamar as coisas pelo nome. Quando uma pessoa presta serviços preponderantemente para o mesmo empregador, isso é relação de trabalho, e, portanto, o contrato deve ser acompanhado de um mínimo de direitos.

O tema é complexo e já gerou discussões e propostas no resto do mundo. Recentemente, uma iniciativa de garantir direitos a trabalhadores de aplicativos foi derrotada na Califórnia, mas venceu no Reino Unido. O debate continua quente lá fora e um dia chegará aqui.

Um dos desafios dos próximos anos será aperfeiçoar a legislação trabalhista para lidar com as novas demandas e tecnologias, sem lançar milhões de pessoas na insegurança de serem “empresários de um cliente só”.

Sei que minha visão vai contra a cultura individualista da geração “você S.A.”, especialista em coaching de si mesmo, mas o fato é que grande parte dos ganhos das big techs se deve à evasão fiscal e regulatória de contratos formais de trabalho.

Quanto? Não sei responder, mas proponho um teste simples: quanto seria o lucro da empresa de aplicativos X, Y e Z caso seus “colaboradores” tivessem carteira assinada?

Comparando o lucro com e sem arbitragem trabalhista, poderíamos saber quanto do ganho de eficiência vem de inovação tecnológica e quanto vem da pura e simples exploração de mão de obra.

Por exemplo: todo ano a Receita Federal publica estimativa de desoneração tributária, baseada na diferença entre arrecadação efetiva e arrecadação sem exceções ao regime tributário.

O mesmo princípio pode ser aplicado ao mercado de trabalho, para avaliar o impacto da exploração de mão de obra travestida de empreendedorismo.

E, uma vez dimensionado o desafio, como diminuir precarização do mercado de trabalho? A senha já foi dada por um velhinho, e não estou falando de quem você está pensando... Marx. Estou falando de Joe Biden, presidente dos Estados Unidos.

Na quarta-feira (28), Biden foi ao Congresso dos EUA e, além de anunciar mais uma rodada de estímulo fiscal (que deixo para outra coluna), o velhinho de lá disse com todas as letras que os sindicatos foram e são importantes para a economia e a sociedade.

Pois bem, seguindo mais uma vez o “companheiro Biden”, minha mensagem de 1º de Maio é: trabalhadores de aplicativos do Brasil, uni-vos!

É possível combinar prestação de serviços via plataformas eletrônicas com direitos básicos como férias, seguro de renda, auxílio-doença, licença maternidade-paternidade e outras conquistas civilizatórias do século 20.

A batalha será longa, mas o caminho começa no primeiro passo. Feliz Dia do Trabalho!

Sobre o autor

Professor da FGV e da UnB, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento (2015-2016). É doutor em economia pela New School for Social Research.

O legado de Raúl Castro

Ao longo de sua carreira, dois estereótipos enganosos distorceram nossa visão de Raúl Castro. Ele não era nem uma sombra pálida de seu irmão, nem um ideólogo pró-soviético unidimensional, mas uma importante figura histórica que desempenhou um papel fundamental na formação do sistema cubano e, em seguida, na sua reforma.

Antoni Kapcia

Jacobin

Raúl Castro assiste ao tradicional desfile do Primeiro de Maio na Praça da Revolução em Havana, Cuba, 1978. (Francois Lochon / Gamma-Rapho via Getty Images)

Tradução / Em 19 de abril de 2021, o Oitavo Congresso do Partido Comunista Cubano finalmente encerrou a era política dos Castros ao eleger Miguel Díaz-Canel Bermúdez, presidente nacional desde 2018, como o novo primeiro secretário do partido. Essa mudança ocorreu após a confirmação de Raúl Castro, em 16 de abril, de que ele se retiraria após dois mandatos consecutivos, conforme havia prometido em 2011.

Embora não tenha sido nenhuma surpresa que Raúl tenha cumprido sua promessa, já tendo feito o mesmo com a presidência cubana em 2018, sua saída teve importância simbólica, encerrando a “geração histórica” de ex-guerrilheiros rebeldes em posições de autoridade. Então, neste momento de transição, o que devemos pensar dos anos de Raúl no poder e de sua importância geral na trajetória e no formato da Revolução Cubana de 1959 em diante?

Lendas dinásticas

As reações da mídia mundial à mudança do partido eram previsíveis, principalmente descartando Raúl como o irmão mais novo de Fidel e a sombra, e vendo sua liderança dentro da estrutura enganosa de uma dinastia Castro ao estilo da Coréia do Norte. De fato, em 2008, quando a Assembleia Nacional elegeu Raúl como presidente, a noção de “dinastia” era apenas a mais recente de uma longa linha de estereótipos que se acumulou a partir do início dos anos 1960 sobre a Revolução Cubana e sua liderança.

Esses estereótipos tendiam então a ver a revolução como uma tomada popular do poder por um caudilho supostamente típico e carismático da América Latina – começando cinco décadas de foco obsessivo na pessoa de Fidel – ou como um igualmente típico satélite comunista soviético ligado ao marxismo-leninismo. Ambos os conjuntos de suposições ressurgiram no período de 2006-8, quando Fidel adoeceu e “entregou” o poder a seu irmão, e novamente em abril de 2021.

Aqueles que fizeram essas primeiras suposições não perceberam que a revolução como um processo havia começado em 1959, encerrando a rebelião anterior contra o governo de Fulgencio Batista. Foi uma iniciativa amplamente popular para iniciar um processo de construção da nação para um estado que, depois de suportar o domínio colonial espanhol por cerca de oitenta anos a mais do que o resto da América espanhola, se tornou uma neocolônia formal dos Estados Unidos.

Os Estados Unidos condicionaram a independência cubana formal em 1902 à inclusão na Constituição cubana da Emenda Platt, que restringia sua soberania como Estado-nação por pelo menos trinta anos. Washington então supervisionou mais vinte e cinco anos de hegemonia econômica e política. Em 1959, a construção da nação ainda era algo a ser alcançado, e a maioria dos cubanos sabia disso – os rebeldes certamente sabiam. A única pergunta era “como?”

Em última análise, a resposta veio das próprias tradições de dissidência radical de Cuba – como visto na fusão de nacionalismo e socialismo que podia ser encontrada na negligenciada Constituição de 1940 do país – e do discurso prevalecente de anticolonialismo no mundo descolonizante: a saber, através de alguma forma de socialismo. No entanto, isso ainda deixava a questão de que tipo de socialismo deveria ser.

A emergência de Raúl

Foi aí que Raúl Castro entrou em cena, como uma das figuras-chave na adoção pela liderança cubana de um modelo socialista próximo à abordagem soviética. Esse foi um papel que em parte deu origem aos estereótipos sobre ele.

Em 1958, antes da vitória dos rebeldes do Movimento 26 de julho, Raúl era relativamente desconhecido em Cuba. Embora tenha seguido a trajetória acadêmica de seu irmão na Faculdade de Direito da Universidade de Havana, sua trajetória política foi diferente. Como um ativista estudantil em 1952-1953, ele gravitou em torno do comunista Partido Socialista Popular (PSP). Ele se juntou à delegação cubana que viajava para um Congresso da Juventude organizado por Moscou em 1953 na Europa Oriental, e à ala jovem do PSP, Juventude Socialista (JS).

Em seu retorno a Cuba, Fidel disse a Raúl sobre o plano iminente de atacar a guarnição de Moncada de Santiago de Cuba em 26 de julho de 1953. As pessoas que traçaram o plano eram um pequeno grupo pertencente ao Partido Ortodoxo de esquerda nacionalista – formalmente conhecido como o Partido do Povo Cubano. O golpe de Batista em março de 1952 negou ao partido a vitória amplamente esperada nas eleições que aconteceriam em junho, com Fidel como um de seus candidatos ao Congresso.

Apesar das origens deste projecto no Ortodoxo, Raúl concordou imediatamente em aderir. Esta foi uma postura que logo o distanciou do PSP, que condenaria veementemente o ataque de Moncada. O PSP também condenou a expedição de dezembro de 1956 lançada por Fidel do México e a campanha de guerrilha que se seguiu, até que a pressão interna obrigou o partido a aceitar o inevitável e se juntar à aliança rebelde em meados de 1958.

Raúl deixou o JS logo após Moncada. Preso na prisão da Ilha de Pines até junho de 1955, ele se politizou com os outros rebeldes. Ele os acompanhou ao México após sua libertação, a fim de se preparar para o lançamento de uma rebelião guerrilheira.

Esse link para o PSP atraiu a atenção da seção de inteligência da embaixada dos Estados Unidos em 1956. Tentando adivinhar a forma de uma futura Cuba sob o Movimento 26 de julho, eles procuraram o vermelho debaixo da cama ao estilo característico da Guerra Fria.

Junto com Che Guevara – sobre cujas interpretações não convencionais do marxismo eles nada sabiam – eles identificaram Raúl como o candidato mais provável para esse papel. Daí em diante, ele se tornou seu vermelho estatutário, um “ideólogo endurecido” pró-soviético. Essa definição contradizia estranhamente a narrativa da dominação total de Fidel ao retratar Raúl como o gênio do mal que supostamente planejava uma mudança para colocar Cuba sob o controle soviético.

Àquela altura, porém, um Raúl diferente estava surgindo. Embora ele tivesse sido apenas um soldado de infantaria no ataque de Moncada, ele subiu nas fileiras rebeldes à medida que suas qualidades se tornaram claras e sua importância cresceu. Foi ele quem apresentou Che Guevara ao grupo no México, estabelecendo assim a estreita e duradoura camaradagem ideológica entre Fidel e Che.

Nos treinamentos, Raúl mostrou-se líder e habilidoso estagiário, o que lhe valeu a capitania na eventual expedição no iate Granma. Depois que as tropas de Batista dispersaram violentamente a força rebelde três dias após o desembarque, ele liderou um pequeno grupo de sobreviventes para se juntar ao grupo igualmente diminuto de Fidel. Junto com os homens de Che, eles criaram a base do Exército Rebelde na Sierra Maestra oriental.

Em meados de 1958, sua liderança, nous política e habilidades militares lhe renderam o comando de uma frente de guerrilha separada na vizinha Sierra del Cristal. Nessa função, ele demonstrou as mesmas habilidades de liderança, mas também uma eficiência administrativa que ficaria evidente nos anos posteriores.

Mais importante ainda, embora tivesse rompido com o PSP, o seu marxismo – já mais profundo que o do irmão – deu-lhe a noção clara de que as pessoas sob o seu comando deviam receber uma educação política. Ele também viu a importância da colaboração com os quadros locais do PSP.

Institucionalizando a revolução

Essa vontade de colaborar continuou depois de janeiro de 1959. O PSP agora oferecia o apoio incondicional de seus membros – as estimativas variam de seis a dez mil – e tornou-se parte da emergente aliança rebelde tripartite. Isso gerou alarme e ressentimento no Movimento 26 de Julho, mas Raúl e Che viram o valor da inclusão do PSP e de laços mais estreitos com a União Soviética. Isso inevitavelmente reforçou as suposições sobre Raúl como um ideólogo comprometido.

Em 1960, essas suposições se tornaram mais fortes, quando Raúl, um dos três principais líderes da revolução cubana, recebeu o comando e o controle ministerial sobre as novas Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Na verdade, seu papel no FAR o tornou central em grande parte de todo o processo, defendendo a revolução contra ameaças externas. Esse papel também alimentou em parte seu entusiasmo por ligações com Moscou, por meio de um relacionamento crescente com os militares soviéticos. No entanto, sua estratégia preferida para defender Cuba, por meio de uma “guerra de todo o povo” ao estilo guerrilheiro, diferia de suas recomendações.

Havia também outra dimensão para a admiração de Raúl pela URSS, já vislumbrada na Serra: sua crença na organização eficaz e na estabilidade econômica. Como muitos outros, Raúl percebeu que ambos estavam presentes na URSS, ignorando quaisquer dúvidas que ele pudesse ter nutrido sobre a falta de responsabilidade nas estruturas soviéticas. Sua crença na necessidade de um partido único eficaz, responsável e internamente democrático permaneceu consistente ao longo das décadas, refletindo sua preferência por incentivos materiais (em vez dos morais enfatizados por Che), responsabilidade constante e debate efetivo.

Essa preferência o fez saudar o período menos frenético e menos emocionante de “institucionalização” que se desenrolou em Cuba a partir de 1975. Durante este período, muitas vezes erroneamente referido como de “sovietização”, estruturas de estilo soviético substituíram a mobilização e a liderança cubana declarou que a revolução de seu país estava empenhada em uma transição para o socialismo, ao invés do objetivo de alcançar o comunismo rapidamente estabelecido por Che na década de 1960.

Raúl saudou a perspectiva de maior estabilidade e uma relação mais próxima com Moscou – as relações cubano-soviéticas tinham azedado danificamente desde a época da crise dos mísseis em outubro de 1962, atingindo o ponto mais baixo em 1968. Ele também acolheu a ideia de um Partido Comunista Cubano que se reuniu no congresso no ciclo programado de cinco anos: enquanto o primeiro congresso do partido, originalmente previsto para ser realizado em 1970, foi adiado por mais cinco anos, o segundo começou no prazo em 1980.

No entanto, seria errado ver quaisquer diferenças políticas ou ideológicas importantes entre Fidel e Raúl. Ambos acreditavam no mesmo projeto, aquele que haviam concebido em 1953 e moldado de forma mais concreta entre 1956 e 1959: a construção da nação pelo socialismo. Eles diferiam apenas em suas preferências sobre os meios de chegar ao socialismo e a velocidade desse processo.

Fidel concordou muito mais com a noção de Che das condições subjetivas para o socialismo – compromisso ideológico e conciencia sob a liderança de uma vanguarda comprometida – que poderia superar as barreiras objetivas. O ex-PSP e os líderes soviéticos argumentaram que o socialismo era impossível em Cuba, quanto mais o comunismo, por causa desses obstáculos objetivos.

Embora não concordasse totalmente com o PSP e Moscou, Raúl sempre favoreceu um impulso mais comedido em direção ao socialismo, com responsabilidade estruturada e recompensas materiais apropriadas – mas limitadas, mas sempre com um etos claramente socialista e moral por trás de tudo. A abordagem de Fidel ditou uma confiança na mobilização e “paixão”, enquanto Raúl enfatizou a estrutura e a viabilidade pragmática, mas eles trabalharam em conjunto. Ambos viam a meta como o processo de construção da nação que ainda faltava a Cuba em 1959.

Atualizando o sistema

Essa ainda era a meta de Raúl quando, em 2008, ele tranquilizou os duvidosos de que suas propostas de reforma não o tornariam Mikhail Gorbachev de Cuba. Não foi eleito, disse, para “destruir a Revolução”, como alguns temiam, mas como alguém que necessariamente “atualizava” o socialismo cubano para se adequar a um novo mundo, garantindo sua sobrevivência.

A Constituição de Cuba de 2019 mais tarde descreveria isso como um processo “em transição para o socialismo”. Como tal, ela poderia e deveria ser alcançada por meio de estruturas que funcionassem adequadamente com total responsabilidade e comunicação interna, não por meio de um partido ao qual as pessoas se unissem para o autopromoção, como Raúl observara no bloco socialista liderado pelos soviéticos pré-1989. Tão moralista quanto Fidel, ele abominava a corrupção como algo que solapava a consciência socialista.

A partir de 1986, Cuba adotou uma estratégia conhecida como “Retificação” (“dos erros do passado e das tendências negativas”). O papel de liderança de Raúl nessa estratégia tornou absurda a simplificação comum de que constituía um retorno aos anos 1960. Enquanto a ascensão de Gorbachev ao poder na URSS teve muitas implicações para Cuba, o foco de Raúl estava na mensagem subjacente para a economia cubana: o relacionamento benéfico com a URSS iria acabar, e os cubanos precisavam se preparar para isso por meio de racionalização econômica.

O colapso da URSS e do bloco socialista em 1989-91 ultrapassou esse processo de racionalização, desencadeando a crise mais profunda da revolução, momento em que Raúl veio à tona. Desmentindo sua imagem de ideólogo rígido e de linha dura, ele liderou o impulso urgente de reformas sem precedentes para “salvar a revolução”. Mostrou-se um negociador paciente mas determinado, que teve o cuidado de trazer consigo os dirigentes que duvidavam do alcance das reformas. A recuperação da economia cubana deveu-se em grande parte à presença de sua mão no leme, que acabou com a rígida centralização e restaurou o trabalho autônomo privado abolido em 1968.

Os acontecimentos no período de 2006-8, quando Raúl foi eleito para suceder Fidel, estimularam a noção de uma “dinastia” castrista entre os observadores externos. Muitos dos que acalentavam essa ideia esqueceram que Raúl devia seu título de vice-presidente sênior, não a qualquer relação familiar com o Comandante, mas a sua condição de único dos três líderes que restaram ao lado de Fidel. Ele, portanto, gozava de uma legitimidade histórica que já havia lhe dado autoridade suficiente para assumir o controle efetivo em meados de 2007, tendo em vista a condição crônica de saúde de Fidel.

Ele usou a mesma legitimidade para lançar a crítica mais feroz e abrangente à revolução que havia sido ouvida dentro de Cuba em 26 de julho, de uma forma que muitos acharam chocante, e para decretar a abertura de um debate nacional prolongado e público, via as Organizações de Massa e o Partido, para levar essa crítica adiante. Foi uma estratégia brilhante, usando o feedback daqueles que amplamente acolheram suas críticas e propostas como munição para desafiar a resistência antecipada da hierarquia do partido.

Embora essa resistência tenha durado três anos, em 2011, Raúl forçou o partido a convocar seu Sexto Congresso – que deveria ter sido retido em 2002 – embora com compromissos. Eleito primeiro secretário, passou a ter plena autoridade para reformar, sin prisa pero sin pausa (sem pressa, mas também sem pausa).

Novas direções

Oque se seguiu pareceu transformar Cuba. Houve um anúncio surpresa de reconhecimento total dos EUA em 2014-15, embora o embargo permanecesse firme em vigor, aplicado pelo Tesouro dos EUA. As reformas que Raúl iniciou em 1992-93 foram ainda mais longe em áreas como trabalho autônomo e liberdade de viagem.

Nesse ínterim, no entanto, duas outras coisas mudaram. Em primeiro lugar, estava claro em 2006 que a liderança cubana havia discretamente reduzido a “Batalha de Idéias” que Fidel lançou seis anos antes, com o objetivo de revigorar a juventude cubana ideologicamente por meio da cultura, educação e mobilização. Isso refletia a preferência de Raúl por estabilidade produtiva em vez da custosa “paixão”.

Em segundo lugar, houve mudanças dentro do partido no poder. Antes de se tornar líder, Raúl já havia iniciado um processo de renovação em nível provincial, trazendo líderes mais jovens. Depois de 2008, ele continuou esse trabalho no governo, eliminando gradualmente a geração histórica e fortalecendo a autoridade da Assembleia Nacional.

Ao cumprir sua promessa de se aposentar como presidente de Cuba após dois mandatos, Raúl usou seus três anos restantes como líder do partido para continuar o esforço de renovação, distanciando o partido de uma participação ativa no governo, ao mesmo tempo que esclareceu seu papel como fonte de orientação ideológica. Em 2019, Díaz-Canel pediu-lhe para liderar a comissão para a nova constituição de Cuba. Raúl sabia que essa carta atualizada era necessária para legitimar a Cuba emergente e atualizar suas estruturas de legalidade.

O documento trazia a marca de Raúl. Ele manteve muitos aspectos da primeira constituição da revolução de 1976, que parecia seguir os modelos soviéticos, mas mudou sutilmente suas definições ideológicas. No lugar do compromisso com o marxismo-leninismo – sempre uma abreviatura de comunismo de estilo soviético – havia referências sem hifenização ao “marxismo, leninismo” como fontes de inspiração política, junto com as ideias de José Martí e Fidel Castro.

A Constituição de 2019 também começou a estabelecer uma separação de poderes, refletindo as dúvidas conhecidas de Raúl sobre a concentração de poder antes de 2008. Ela compartilhava a responsabilidade pelo governo entre quatro centros potenciais: o presidente nacional de Cuba, que ainda era eleito indiretamente; um primeiro-ministro para o governo do dia-a-dia; o presidente do reformado Conselho de Estado e Assembleia Nacional; e o líder do partido.

A combinação da presidência de Donald Trump com a pandemia de COVID-19 transformou o contexto externo em que essas alterações estavam sendo feitas. Primeiro, Trump impôs um pacote de duzentas e quarenta medidas para endurecer o embargo, depois a pandemia teve um impacto drástico na receita do turismo. A combinação produziu uma profunda crise econômica.

Essa crise acelerou a implementação de uma política que estava muito atrasada: a abolição do sistema de moeda dupla confuso e corrosivo de Cuba. Criado em 1993 como um conserto de curto prazo, já estava causando distorções econômicas e sociais no final daquela década, mas ninguém – incluindo o governo cubano – parecia saber como ou quando poderia ser encerrado. A COVID-19 forneceu a oportunidade de fazê-lo por necessidade.

Em dezembro de 2020, o povo da ilha ouviu um anúncio chocante de que seu governo fundiria as duas moedas a partir de 1º de janeiro de 2021. A mudança ameaçava causar desafios reais para muitos cubanos, mas provavelmente traria benefícios de longo prazo para a maioria . Embora a mudança tenha vindo de Díaz-Canel, ele nunca a teria proposto sem a aprovação ideológica de Raúl.

No geral, os estereótipos dominantes de Raúl sempre estiveram longe do alvo. Ele não era um irmão mais novo irrelevante, nem um gênio do mal, nem um ideólogo de linha dura, nem um chato “homem de sistemas”, mas sim o último dos três líderes históricos da revolução cubana, um dos que planejaram embarcar em um projeto de construção da nação por meio de alguma forma de socialismo.

Depois de suceder Fidel em 2006-8, ele herdou um processo que precisava urgentemente de ajuste. Ele se propôs a reformar, atualizar, reestruturar e agilizar o máximo que pudesse, precisamente para preservar a essência e o objetivo original da revolução. O futuro do sistema que ele ajudou a construir e transformar agora está nas mãos de uma nova geração.

Colaborador

Antoni Kapcia é professor de história da América Latina no Centro de Pesquisa sobre Cuba da Universidade de Nottingham. Suas obras incluem Leadership in the Cuban Revolution: The Unseen Story, A Short History of Revolutionary Cuba: Revolution, Power, Authority and the State from 1959 to the Present Day e Cuba in Revolution: A History Since the Fifties.

29 de abril de 2021

Tomando o poder para salvar o mundo do capitalismo

À medida que os vínculos entre o capitalismo e a crise ecológica se tornam cada vez mais evidentes, a filosofia política do ecossocialismo vem ganhando apoio. Ambientalistas de esquerda não estão sem ideias: agora eles precisam de uma estratégia que possa alcançar o poder necessário.

Sam Knights


Um bombeiro tenta apagar o incêndio em 19 de agosto de 2020 em San Mateo, Califórnia. (Liu Guanguan / Serviço de notícias da China por meio do Getty Images)

Tradução / Em 2001, dois acadêmicos marxistas, Joel Kovel e Michael Löwy, publicaram An Ecosocialist Manifesto (Um Manifesto Ecossocialista). Eles ficaram frustrados com muitos de seus camaradas no Ocidente que aparentemente nada tinham a dizer sobre a perspectiva de uma catástrofe climática e ecológica. Eles acreditavam que “a esquerda em geral tinha pouquíssimo interesse na questão ecológica” e esperavam que este manifesto pudesse trazer seus “camaradas socialistas para a luta ecológica”.

“O ecossocialismo ainda não é um espectro, nem está fundamentado em nenhum partido ou movimento concreto”, escreveram. “É apenas uma linha de raciocínio, a partir de uma leitura da crise atual e das condições necessárias para superá-la.”

Este manifesto, como tantos que vieram antes dele, estava em diálogo consciente com o Manifesto Comunista. No entanto, ao contrário de Marx e Engels, os autores careciam de um movimento com o qual associar suas ideias. Kovel e Löwy ficaram se perguntando: “O espectro pode ser trazido à existência?”

An Ecosocialist Manifesto apareceu apenas em algumas publicações radicais para um público limitado. Ao longo dos anos, no entanto, acadêmicos e ativistas o revisitaram enquanto tentavam compreender e narrar a história emergente do ecossocialismo.

O mundo mudou muito nas últimas duas décadas. Muito mais pessoas morreram como resultado da destruição ecológica; muitas outras espécies foram extintas. A crise climática se intensificou e as pessoas no Norte Global estão começando a perceber o que as pessoas no Sul Global vêm dizendo há séculos: é hora de contra-atacar.

A era do colapso

Este é o contexto em que Mathew Lawrence e Laurie Laybourn-Langton publicaram seu novo livro, Planet on Fire: A Manifesto for the Age of Environmental Breakdown (Planeta em chamas: Um Manifesto para a Era do Colapso Ambiental). O livro fala sobre os movimentos que surgiram nos últimos cinco anos — de “greves de crianças em idade escolar até os Green New Dealers” — e visa conduzi-los em direção a uma política ecossocialista mais coerente. “Este livro pretende ser um guia”, escrevem Lawrence e Laybourn-Langton, “para se entender como chegamos nisso, e explorar algumas ideias de para onde ir”.

Ao longo dos anos, os proponentes do “ecossocialismo” se aglutinaram em torno de um conjunto vago de crenças centrais. De modo geral, um ecossocialista é alguém que acredita que o capitalismo deve ser desmontado para abordar as crises ecológicas que enfrentamos. Isso significa redefinir a relação entre os seres humanos e o mundo natural. Significa também construir um futuro sustentável e democrático, construído sobre os princípios de justiça, liberdade e solidariedade — ou, como os autores colocam, “um futuro de florescimento coletivo”.

Durante a história, ambientalistas de esquerda têm estado na vanguarda de campanhas para democratizar a sociedade, transformar a economia e proteger o meio ambiente. De Gerrard Winstanley a William Morris, eles procuraram reimaginar nosso mundo fragmentado e decadente. Eles lutaram para expandir os bens comuns, aumentar o tempo de lazer e reimaginar nosso relacionamento com o capital.

Este livro é uma tentativa brilhante de consolidar essas ideias, consolidar esse pensamento e conectar o trabalho vital que já está sendo feito hoje. “É um projeto já em andamento”, escrevem os autores, e “a cada dia, a lista fica maior.”

Lawrence e Laybourn-Langton escreveram o que chamam de “Manifesto para a Era do Colapso Ambiental” (Manifesto for the Age of Environmental Breakdown). No entanto, apesar do título um tanto ousado, há uma óbvia humildade em seu trabalho. Eles estão claramente conscientes das pessoas e dos movimentos que surgiram antes deles e não procuram reivindicar essas ideias como suas.

Os autores estão cientes de suas próprias limitações e admitem que seu foco está no Reino Unido e nos Estados Unidos, “os países que conhecemos melhor”. Eles argumentam que agora devemos “aproveitar os períodos recentes de avanço, aprender com os erros e derrotas e preparar o terreno para uma frente popular capaz de renovar a esperança econômica e política.”

De ideias para a ação

A crise climática, dizem eles, é uma questão de poder. Já temos as ideias e os recursos para uma mudança transformadora: “O desafio é mobilizar poder e energia para responder ao tamanho da emergência.” Ecossocialismo é a resposta óbvia — mas o que Lawrence e Laybourn-Langton querem dizer quando invocam esse termo?

Inicialmente, eles definem “ecossocialismo” como “o esforço coletivo para democratizar nossas instituições econômicas e políticas, redirecionando-as para o bem-estar social e o florescimento individual, enraizado em um mundo natural abundante e próspero”. Mais tarde eles dizem no livro que se você não gosta da palavra ecossocialismo, “então use outra coisa”. Este não é um manifesto que se preocupa particularmente com a teoria política.

Lawrence e Laybourn-Langton trabalham para think tanks — os Common Wealth e Institute for Public Policy Research, respectivamente — e dá pra perceber. O livro está repleto de sugestões de políticas. Ele fornece ao leitor uma visão ampla e bem evidenciada da mudança sistêmica radical. É acessível, mas com nuances, detalhado, mas expansivo.

Ocasionalmente, no entanto, essa abordagem pode limitar o escopo de seu projeto. Até o capítulo final, há pouca consideração sobre teoria política ou estratégia revolucionária. Os autores identificam o poder como o problema, mas não se concentram na questão de como conquistamos esse poder. Embora digam repetidamente que “ter uma visão não é suficiente”, este é um livro sobre visão. É um “plano para que a vida floresça”, mas como o alcançamos não está muito claro.

Esta é, talvez, uma crítica injusta. Um livro não pode atingir todos os objetivos, e os autores estão tentando fazer outra coisa aqui. Aparecendo no The Owen Jones Show, Mathew Lawrence repetiu sua afirmação central: “O problema não é que não tenhamos ideias; é como construímos as coalizões políticas que podem superar os poderosos interesses enraizados.”

Este manifesto é uma tentativa de abordar a primeira metade dessa reivindicação. O objetivo é mostrar que temos ideias em abundância, para que possamos então discutir mais facilmente como colocá-las em prática. É uma resposta às pessoas que dizem: “Então, o que você faria?”

Um, dois, muitos Green New Deals

Lawrence e Laybourn-Langton articulam uma visão convincente do futuro que está “ancorada na democracia, justiça e solidariedade mútua.” Eles procuram “desmantelar as hierarquias de riqueza, classe, gênero, raça e poder na sociedade, substituindo-as por relações democráticas e coletivos poderosos”. As ideias que apresentaram incluem medidas para democratizar as finanças, investir em serviços públicos, dimensionar modelos alternativos de propriedade, apoiar a construção de riqueza da comunidade, expandir os bens comuns e reimaginar as empresas. Eles apóiam políticas específicas para combater a pobreza alimentar, reconstruir cidades, reduzir o uso de carros e reimaginar o trabalho.

Essa visão se baseia no Green New Deal e vai vários passos à frente. Como os autores dizem na introdução, “precisamos de um, dois, muitos Green New Deals”. Embora Lawrence e Laybourn-Langton nunca mencionem a política partidária explicitamente, a sombra das últimas eleições gerais britânicas se torna grande. É impossível ler Planet on Fire sem pensar no manifesto do Partido Trabalhista em 2019. Este documento transformador colocou “uma revolução industrial verde” no centro de sua oferta política; os dois textos incluem muitas das mesmas políticas.

Se os críticos achavam que Jeremy Corbyn prometia muito, espere até que leiam este livro. Não faltam boas ideias — nem bons manifestos para se inspirar. Na verdade, em certo sentido, Planet on Fire é um manifesto dos manifestos: um catálogo de boas ideias, baseado na tradição ecossocialista e visando, com sorte, um futuro mais justo e sustentável.

O passado, porém, também é importante. Os autores dizem em duas ocasiões que o “grito de guerra” da nova era deve ser “luxo público para todos”. Outros termos são usados alternadamente: “Florescimento coletivo” e “luxo comunitário”. A visão de luxo comunitário se baseia no trabalho de pensadores contemporâneos, ao mesmo tempo que aponta para a ideia de luxo comunitário que surgiu pela primeira vez durante a Comuna de Paris em 1871.

Como Kristin Ross mostrou, os revolucionários parisienses estavam tentando construir uma sociedade que priorizasse a felicidade humana acima da acumulação de capital privado; a criatividade foi uma parte essencial da revolução. Artistas que apoiaram a Comuna compuseram seu próprio manifesto, argumentando que a arte deveria ser integrada à vida pública ao invés de tratada como uma mercadoria privada. Eles queriam reimaginar o trabalho e o lazer e aguardavam o “nascimento do luxo comunitário”.

Planet on Fire, portanto, lembra alguns dos manifestos que vieram antes dele. Lawrence e Laybourn-Langton querem que espaços de lazer ecologicamente abundantes tenham prioridade; assim como os revolucionários da Comuna de Paris, eles defendem os serviços básicos universais e uma semana de trabalho mais curta. Eles reescreveram sua definição de ecossocialismo como uma “meta que exige outro tipo de economia”, promovendo “luxo comunitário em sociedades de beleza cotidiana”.

Realismo utópico

Os autores insistem que essa visão de “abundância sustentável” não deve ser considerada utópica. Em 2013, o francês Parti de Gauche (Partido de Esquerda) fez uma afirmação semelhante em seu próprio manifesto ecossocialista — um documento visionário que estava, é claro, à frente de seu tempo. “O ecossocialismo não é uma utopia à qual a realidade deva obedecer”, afirma o manifesto; pelo contrário, é uma “resposta humana racional” aos problemas da nossa época.

Essa é uma resposta compreensível, já que os críticos costumam acusar os ecossocialistas de serem pouco práticos ou ingênuos. No entanto, como John Storey apontou, nossas idéias sobre o que deve ser considerado “realista” ou “utópico” são inerentemente subjetivas e politizadas:

A realidade é um consenso organizado construído em torno das necessidades de um grupo relativamente pequeno de pessoas. Quando se afirma que o utopismo radical é irreal, é por ser contra essas construções da realidade que se está contestando, e não contra alguma realidade absoluta.

Em outras palavras, precisamos ter mais confiança em nossas visões e mais fé na utopia. Não há nada de impraticável no ecossocialismo, e o impulso utópico nem sempre é irreal. A socióloga Ruth Levitas, que escreveu extensivamente sobre o pensamento utópico, argumenta que “o elemento essencial na utopia não é a esperança, mas o desejo — o desejo de uma maneira melhor de ser”. Ler Planet on Fire é um exercício de desejo utópico, e não devemos ter vergonha de admitir isso.

A imaginação utópica é necessária para desenvolver alternativas genuínas ao capitalismo. Ele desbloqueia o desejo por outro mundo e abre novas possibilidades. Fredric Jameson certa vez escreveu que “a utopia como forma não é a representação de alternativas radicais; é simplesmente o imperativo de imaginá-los”. A imaginação está no centro dessa visão — Lawrence e Laybourn-Langton anunciam, no final de seu livro, que “recuperar o futuro exigirá extrema imaginação”.

É sabido que Marx se recusou a escrever “receitas para as cozinhas do futuro”. Mas isso não significa que as visões do futuro não apareçam em parte alguma de sua obra. No A Ideologia Alemã, Marx e Engels tentam imaginar o futuro sob o comunismo: “Em uma sociedade comunista não há pintores, mas apenas pessoas que se dedicam à pintura entre outras atividades.” Isso soa suspeitosamente como os artistas revolucionários da Comuna de Paris. Nos Grundrisse, Marx argumenta que o comunismo resultará na expansão do “tempo livre — que é tanto lazer quanto tempo para atividades mais elevadas.”

Muitas das ideias em Planet on Fire são, em sua raiz, verdadeiramente utópicas. Considere Gerrard Winstanley, o radical inglês do século XVII que argumentou que “a terra foi feita para ser um tesouro comum de sustento para todos, sem respeito pelas pessoas, e não foi feita para ser comprada e vendida.” Sem essas ideias utópicas, o ecossocialismo não existiria hoje. É importante lembrar disso.

O primeiro passo

Isso é o que torna Planet on Fire um livro tão cativante. Está repleto de ideias ousadas e ambiciosas que antes pareciam impraticáveis, mas agora parecem eminentemente razoáveis. Lawrence e Laybourn-Langton estão interessados em ideias e permitem que elas ocupem o centro do palco. Isso por si só é um sinal de quão longe chegamos.

Vinte anos atrás, quando Joel Kovel e Michael Löwy escreveram An Ecosocialist Manifesto, eles só conseguiam reunir algumas mil palavras. Naquela época, eles ainda estavam tentando convencer as pessoas a se importarem. Hoje, a esquerda não precisa ser convencida e podemos encher livros inteiros com nossas ideias. O espectro do ecossocialismo finalmente foi criado.

A ideologia, no entanto, não é tão diferente. Ambos os manifestos invocam as mesmas frases familiares: “Crise”, “catástrofe”, “ecossocialismo ou barbárie”. Ambos rejeitam o capitalismo e enquadram a crise ecológica de maneira semelhante, e ambos fazem referência à mesma citação famosa de Antonio Gramsci: “A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem.”

A utopia ecossocialista é assim apresentada como o “novo mundo” que ainda está por nascer, mas os autores têm certeza de que este é apenas o começo da jornada. Este não é um livro sobre um futuro teórico. Planet on Fire é um “manifesto para a era do colapso ambiental”; é um manifesto para o agora, “neste interregno”.

Em 1999, Saral Sarkar escreveu um livro intitulado “Eco-socialism or Eco-Capitalism?” (Ecossosialismo ou Ecocapitalismo?) que se propôs a atingir um objetivo semelhante. Sarkar argumentou que era difícil imaginar um futuro ecossocialista: “Também não é urgente para nós. Para nós, o período de transição é mais importante.” Para Sarkar, havia uma diferença significativa entre o ecossocialismo no período de transição e o modelo final de uma sociedade ecossocialista: em um primeiro momento, um estado forte seria necessário para garantir um recuo planejado e ordenado, após o qual o estado poderia ser gradualmente democratizado e, quando apropriado, desmontado.

Lawrence e Laybourn-Langton não oferecem tais teorias explícitas de transição, mas fica-se com a impressão de que, para eles, a democracia não é um subproduto da transição, mas uma parte integrante do processo. Encarnando o grande ambientalista Murray Bookchin, o foco deles está no aprofundamento da democracia: “Ao criar benefícios materiais tangíveis e nutrir novas formas de engajamento democrático, um bem comum do século XXI pode prefigurar uma mudança de sistemas mais ampla.”

No capítulo final, Lawrence e Laybourn-Langton oferecem algumas reflexões iniciais sobre a estratégia ecossocialista, argumentando que precisamos de uma estratégia de cima para baixo e de baixo para cima. Esta é a parte menos convincente do livro. Em um ponto, eles comparam uma futura transformação ecossocialista ao processo de neoliberalização sob Margaret Thatcher. Eles estão tentando nos dar uma compreensão da escala, mas o exemplo não parece convincente.

Eles insistem que para que surja uma nova estratégia, precisamos de cinco componentes principais: uma visão alternativa do futuro, um antagonismo construtivo com o capital, um claro senso de coalizão, uma prova demonstrável da alternativa e uma estratégia clara de priorização. Planet on Fire é a primeira etapa desse plano de cinco etapas. É uma visão essencial do futuro que, espero, terá um grande impacto no socialismo contemporâneo.

O desafio que temos pela frente é imenso. Como os autores observam logo no primeiro capítulo: “Existem poucos, possivelmente não há, exemplos históricos de sociedades que realizam com sucesso essa ação transformadora fundamental em tão pouco tempo.”

O caminho à frente é perigoso e incerto. Portanto, vamos levar este manifesto adiante e todos os manifestos que o precederam. Vamos aprender com os movimentos de resistência no Sul Global e ser humildes em nossa resposta; muitas dessas ideias já existem há séculos e se baseiam em conhecimentos antigos mantidos por comunidades indígenas.

Desde que os seres humanos caminham pela Terra, essas ideias existem. Agora precisamos começar a tarefa urgente de organizar, mobilizar e conquistar o poder. Temos o manifesto — é hora de falarmos sobre estratégia.

Colaborador

Sam Knights é escritor, ator e ativista climático. Ele é o co-editor de This Is Not a Drill: An Extinction Rebellion Handbook (Este não é um exercício: um manual de rebelião de extinção, em tradução livre).

O movimento trabalhista tem uma oportunidade única em uma geração. Agora não é hora de moderação.

Em seus primeiros 100 dias como presidente, Joe Biden se mostrou extraordinariamente disposto a associar sua administração à agenda do movimento trabalhista. Os sindicatos têm uma abertura maior para conquistar uma agenda pró-trabalhador expansiva do que em décadas. Mas ainda não vimos uma mudança real.

Alex N. Press

Jacobin

O presidente Joe Biden discursa em uma sessão conjunta do Congresso, com a vice-presidente Kamala Harris e a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, no estrado atrás dele, em 28 de abril de 2021 em Washington, DC. (Melina Mara / Pool-Getty Images.

Em seu primeiro dia no cargo, Joe Biden demitiu Peter Robb, o terrível ex-advogado da administração que era conselheiro geral do National Labor Relations Board (NLRB). Desde então, Biden reforçou os planos de reforma dos sindicatos com o seu projeto de lei de alívio à pandemia e divulgou um vídeo se opondo à repressão sindical da Amazon em Bessemer, Alabama - mesmo que evitasse chamar a empresa pelo nome. Após cem dias de sua presidência, está claro que Biden está disposto a trabalhar com mão de obra organizada, pelo menos no que se refere às condições do chão de fábrica.

"Esses primeiros cem dias são incomparáveis com qualquer outro em minha vida, e os trabalhadores foram fundamentais para a resposta de Biden", disse Sara Nelson, presidente da Association of Flight Attendants - Communications Workers of America (AFA-CWA). Além de Biden demitir Robb e se opor à repressão sindical, ela lista o seguinte como evidência: "Mascarar mandatos e aplicação, alívio da COVID-19, restabelecendo os direitos sindicais para funcionários federais, priorizando nomeações e nomeações trabalhistas importantes, incluindo a última esta semana com Celeste Drake para atuar como diretora do Made in America, exigindo um salário mínimo de $ 15 para contratos federais de trabalho,
e fazer com que seu gabinete forme uma força-tarefa pró-sindicato que exigirá que sua administração torne os sindicatos o centro de sua consideração e tomada de decisão."

O salário mínimo de US $ 15 por contrato de trabalho federal a que Nelson se refere vem por meio de uma ordem executiva emitida esta semana. Ele oferece um grande aumento salarial para os trabalhadores cujo salário mínimo está atualmente em US $ 10,95 - o Instituto de Política Econômica estima que afetará 390.000 trabalhadores federais.

A força-tarefa pró-sindicato, encarregada de “organização e capacitação dos trabalhadores”, também foi anunciada esta semana e será liderada pela vice-presidente Kamala Harris. Harris não é uma heroina do trabalho, mas o texto da ordem que cria a força-tarefa diz que "a política dos Estados Unidos é incentivar a organização dos trabalhadores e a negociação coletiva e promover a igualdade do poder de negociação entre empregadores e empregados". Essa é apenas uma descrição da Lei Nacional de Relações Trabalhistas de 1935, mas é um desvio para a Casa Branca afirmar isso de forma tão clara.

A força-tarefa emitirá recomendações sobre como o governo pode usar sua autoridade para torná-lo mais fácil a organização. Isso provavelmente incluirá encorajar os empregadores que têm contratos com o governo federal a adotar algum tipo de neutralidade em relação à negociação coletiva. Esperançosamente, a força-tarefa afirmará a prioridade da Lei de Proteção ao Direito de Organização (PRO), um projeto de reforma da legislação trabalhista que Biden apoia - em um discurso centrado no trabalho na noite passada, ele disse ao Congresso para aprovar a legislação - e que, dada a oposição do capital ao projeto de lei, precisa ser pressionado em todas as oportunidades.

Outra grande mudança da presidência de Trump foi a ordem executiva de Biden direcionando a Administração de Segurança e Saúde Ocupacional (OSHA) a considerar a emissão de uma norma de emergência. A OSHA nunca emitiu tal padrão sob Trump; a agência ficou efetivamente desaparecida durante a pandemia, deixando trabalhadores entregue à morte. O mundo do trabalho aplaudiu a ordem executiva de Biden de janeiro, mas seu prazo de 15 de março para a OSHA veio e se foi sem atualizações.

Depois que os murmúrios sobre esse silêncio ficaram mais altos, a OSHA anunciou esta semana que enviou uma norma temporária de emergência ao Escritório de Gestão e Orçamento. A agência diz que a consideração sobre o padrão causou o atraso, embora a oposição de grupos empresariais aos padrões de emergência possa ter tido algo a ver com isso - a National Retail Federation, por exemplo, se opõe firmemente.

Esses são desenvolvimentos importantes, parte de uma mudança dos liberais, tanto em cargos eleitos quanto na comunidade empresarial, da ultra-austeridade e da avareza do déficit em favor da expansão fiscal. Esta mudança de perspectiva não deve ser mal diagnosticada ou exagerada; por exemplo, a classe empresarial ainda se opõe à Lei PRO e moverá céus e terras para impedir o projeto de lei se suas chances de aprovação em lei aumentarem. Mas existem oportunidades aqui para os trabalhadores.

"É nosso trabalho usar este momento e aproveitar este impulso para aprovar a Lei PRO, restaurar os direitos de voto, organizar aos milhões, reverter a desigualdade, lutar pela equidade, alcançar saúde para todos, salvar nosso planeta com bons empregos sindicalizados e garantir que nossa democracia prospere", diz Nelson.

A organizadora e autora do sindicato, Jane McAlevey, ecoa esse sentimento.

"Seja FDR ou Biden, a questão é o que os sindicatos e a classe trabalhadora organizada estão fazendo para ajudar a criar a possibilidade de alcançar os objetivos declarados por Biden de aumentar a sindicalização e diminuir a miséria e a desigualdade? pergunta McAlevey. Apontando para 1933-34 como um paralelo ao presente, ela observa que na era anterior, “houve greves massivas nos principais mercados de trabalho em todo o país que ajudaram a avançar a agenda sobre a objeção da elite do grande empresariado”. Aplaudindo os movimentos pró-trabalho de Biden, ela diz que "ainda não há pressão de baixo sendo gerada que possa forçar a Lei PRO ou uma agenda mais ampla da classe trabalhadora - que é o que é desesperadamente necessário para ir da miséria à justiça."

Se o governo Biden não lutará contra a organização sindical, agora é a hora de avançar a linha, recuperando o terreno perdido durante décadas de guerra anti-sindical e promovendo uma agenda que atenda às necessidades do século XXI.

Os limites do bidenismo

Nenhuma avaliação do histórico da presidência de Biden para os trabalhadores é completa sem considerar os limites das prioridades do trabalho organizado - limites que, em grande medida, refletem a situação estratégica de um movimento atolado em fraqueza. A brutalidade policial, por exemplo, é uma questão urgente da classe trabalhadora, sobre a qual Biden permanece intransigente e defensivo; a mão-de-obra organizada, por sua vez, também não priorizou adequadamente o problema. E então há o rebaixamento das necessidades dos trabalhadores no exterior a um segundo plano.

Na Índia, existem agora mais de 350.000 novos casos de coronavírus por dia - alguns especialistas dizem que pode ser uma "grande subcontagem". As hospitalizações também estão aumentando em algumas partes dos Estados Unidos, mas temos vacinas. Não é assim na Índia. Embora o país tenha começado a vacinar pessoas em janeiro e diga que administrou 141 milhões de doses - colocando-a em terceiro lugar em número absoluto de doses administradas, atrás dos Estados Unidos e da China - isso a coloca mais baixo em termos per capita do que muitos outros países.

O papel da administração Biden na crise é significativo. Os fabricantes de vacinas da Índia instaram os Estados Unidos a suspender a proibição da exportação de matérias-primas necessárias para a produção de vacinas. Quando o Departamento de Estado foi questionado sobre isso na semana passada, seu porta-voz disse que “os Estados Unidos, antes de mais nada, estão empenhados em um esforço ambicioso e eficaz e, até agora, bem-sucedido para vacinar o povo americano”.

América primeiro. A reação a essa resposta foi suficiente para que o governo mudasse de rumo em poucos dias. Eles agora dizem que "matéria-prima específica necessária urgentemente para a fabricação indiana da vacina de Covishield será imediatamente disponibilizada para a Índia." (“Covishield” é a marca da vacina da AstraZeneca; nenhuma palavra sobre se Biden também enviará os milhões de doses de AstraZeneca que temos por aqui.) É uma boa jogada, mas já deveria ter sido feita.

Em seguida, devemos renunciar ao TRIPS (que é o acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio). O governo Trump bloqueou uma renúncia ao acordo da Organização Mundial do Comércio e Biden ainda não mudou de rumo. Países, incluindo a Índia, imploram por essa isenção de emergência desde o ano passado. Os Estados Unidos não são o único país bloqueando a medida, mas são um grande obstáculo. Uma proposta de isenção co-patrocinada por cinquenta e sete países não conseguiu superar as objeções dos países ricos em uma reunião da OMC no mês passado. Conforme relata a Lei 360, "Representantes dos EUA acolheram um maior envolvimento com os patrocinadores da proposta, de acordo com o oficial de comércio, mas gostariam que os países tivessem em mente a importância dos incentivos à inovação." Isso é uma notícia agradável para a Câmara de Comércio dos EUA, que chama a proposta de uma "distração".

O obstáculo da produção e distribuição de vacinas no exterior pelos Estados Unidos influencia o histórico presidencial de Biden no que diz respeito aos trabalhadores. Para o crédito de Biden, também relevantes são seus oficiais anunciando que sua decisão de retirar as tropas do Afeganistão até setembro não é "baseada nas condições" (o que a remoção das tropas dos EUA realmente significará para os residentes do Afeganistão ainda está para ser visto). Menos positiva é a falta de movimento em sua promessa de encerrar o apoio dos EUA à guerra liderada pelos sauditas contra o Iêmen, a postura agressiva do governo em relação à China e à Rússia e declarações como esta sobre a Bolívia do secretário de Estado Antony Blinken. O governo de Biden é muito menos hostil à classe trabalhadora dos EUA do que o de Barack Obama, ou qualquer outro antecessor democrata ou republicano. Mas ainda é liberalismo imperial: muito estreito em casa, muito hostil à vida humana no exterior.

Sobre o autor

Alex N. Press é redator da equipe da Jacobin. Seus escritos foram publicados no Washington Post, Vox, the Nation e n + 1, entre outros lugares.

Carta aos membros da CPI da Covid-19

Pesam sobre vossos ombros responsabilidades que ficarão na memória do país

Margarida Bulhões Pedreira Genevois
Presidente de honra da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns - Comissão Arns

José Carlos Dias
Advogado criminalista e ex-ministro da Justiça (governo FHC), é presidente da Comissão Arns

André Singer
Professor titular do Departamento de Ciência Política da USP e autor, entre outros livros, de "Os Sentidos do Lulismo" e "O Lulismo em Crise"


O Brasil passou nesta semana a marca de 390 mil mortes por Covid-19. No mundo, apenas os EUA superam esse triste recorde nacional.

Ainda que pudéssemos estancar agora o contágio e, consequentemente, o adoecimento de milhares de brasileiros, o que está longe de ser verdade, o ocorrido aqui desde 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a existência de uma pandemia mundial, entrará para a história. Teremos que responder aos nossos descendentes por que deixamos isso acontecer; por que milhares de mortes poderiam ter sido evitadas, mas se consumaram; e por quê, afinal, milhões de pessoas foram condenadas a passar a viver com sequelas. Pesa, portanto, sobre os ombros dos membros da CPI da Covid apurar as responsabilidades que ficarão gravadas daqui em diante na memória do país.

Desde logo almejamos que o trabalho dos senadores nas investigações que ora começam ajude a reorientar o Estado, de modo a obter, no mais curto espaço de tempo possível, controle sobre a propagação do vírus em solo pátrio. Como já foi repetido por inúmeras instituições idôneas no último ano, a vacinação e a testagem em massa, o isolamento social, o uso de máscaras e de álcool em gel conseguem reduzir de maneira sensível a transmissão do vírus. Isso já está sendo verificado em algumas partes do mundo. Portanto, embora não tenha atribuição direta a esse respeito, cremos que o funcionamento da CPI ajudará a reverter a irracionalidade que tomou conta do governo federal.

Seja por um ou outro motivo, aqui viemos, como um organismo da sociedade civil brasileira, exigir que os nossos representantes no Senado da República adotem a postura que deles se espera nesta hora grave.

Acima de considerações partidárias menores, trata-se de que as instituições cumpram o papel que lhes cabe no ordenamento constitucional. No caso, o da fiscalização severa, rigorosa e completa das responsabilidades pela tragédia que se abateu sobre o povo. Lembrando que é sobre as camadas menos favorecidas da sociedade, cujos direitos humanos são sempre atropelados, que tem recaído o peso maior dos contágios e das mortes.

O Senado da República é um dos principais vértices de poder do Estado. Se ele se dobrar perante o governo de turno, a democracia perderá um instrumento fundamental de fiscalização e controle. Na Câmara dos Deputados, mais de uma centena de pedidos de impeachment do presidente da República aguarda um parecer do presidente da Mesa, o que lhe é atribuído como dever constitucional. Ignorar tais pedidos, como forma de impedir a chance de tramitação, seja qual for o pretexto, não fortalece o nosso Estado democrático. Por isso, enquanto a paralisia toma conta da chamada Casa do Povo, espera-se que o Senado, por meio da CPI da Covid, seja capaz de fazer andar os mecanismos equilibradores previstos na Carta de 1988.

O escândalo de milhares de mortes diárias por Covid-19 não pode continuar, nem passar em branco. O atraso na compra de vacinas, combinado a discursos negacionistas que não cessam de provocar o aumento da contaminação, aponta inexoravelmente para a acumulação dos óbitos. Em nome dos que perdemos e dos que podemos preservar, esperamos que os senadores não poupem esforços e coragem.

28 de abril de 2021

Liberem as vacinas!

As cenas horríveis da Índia devastada pela COVID mostram que, quando países ricos como os EUA aumentam os lucros farmacêuticos sobre vidas, a desigualdade da vacina se transforma em um apartheid global da vacina. Joe Biden tem o poder de acabar com isso imediatamente. Libere as malditas vacinas.

Hadas Thier

Jacobin

Membros da família sentam-se ao lado de uma funerária em chamas em um local de cremação em meio à pandemia de coronavírus em Allahabad, Índia, em 28 de abril de 2021. (Sanjay Kanojia / via Getty Images)

Tradução / A lacuna de vacinação entre os países ricos e pobres aumentou até o abismo. Como observou o cientista Stephen Buranyi esta semana no Guardian: “Das doses já administradas, cerca de metade foi para os 16% mais ricos do mundo... De acordo com análises do Center for Global Development and the Economist, as nações do sul global podem não alcançar a vacinação em massa até 2023.”

Isso não é um problema de acordo com pessoas como Bill Gates, que só defende esse modelo czarista de saúde pública porque é um multibilionário. Em entrevista à Sky News, ele nos garantiu: “A taxa real de mortalidade nos países mais pobres tem sido bastante baixa. Então, os lugares onde você deseja que todos com mais de 60 anos sejam vacinados, como África do Sul e Brasil, se tornarão uma prioridade apenas nos próximos três a quatro meses, quando os EUA passarem para uma posição de excesso”.

Traduzindo: os países pobres deveriam ser gratos por esperar pelas sobras.

Mas todos os dias na Índia, por exemplo, centenas de milhares de novos casos estão sendo relatados. Na segunda-feira, os 352.991 novos casos bateram o recorde de um único dia para qualquer país. Os hospitais estão sem oxigênio, leitos de UTI e suprimentos.

A temperatura está alta em todos os lugares. E a realidade – que Bill Gates e os CEOs da indústria farmacêutica querem que aceitemos – é que pode levar anos para que o fornecimento de vacinas chegue à maior parte do mundo. Nesse ínterim, a desigualdade global da vacina se tornará um apartheid global da vacina – enquanto isso, o vírus poderá sofrer mutação e se espalhar.

Que parte de “emergência de saúde global” você não entende?

Bill Gates é um dos principais impulsionadores da iniciativa global COVAX, um projeto voluntário de compra de vacinas para países em desenvolvimento. Liderada por Gavi, um projeto da Fundação Bill e Melinda Gates, a COVAX foi elogiada como uma missão humanitária. Mas, embora a iniciativa possa ser um avanço em relação ao nacionalismo da vacina, ela deixa em vigor, propositalmente, os mecanismos de mercado e as proteções de patentes dos quais as empresas farmacêuticas dependem. Ela entregou apenas 38 milhões de doses até agora.

O verdadeiro problema é o abastecimento. E a maneira de aumentar a oferta é liberar as patentes e o know-how tecnológico necessários para aumentar a produção em todo o mundo.

Nem as empresas farmacêuticas, que podem perder bilhões se não tiverem o controle do monopólio sobre a produção de vacinas, nem os autoproclamados filantropos bilionários, que fizeram fortuna com as leis de propriedade intelectual, vão liberar as patentes para aumentar a oferta. É contra seus interesses fazê-lo. Mas o fato de que eles foram deixados no banco do motorista, em primeiro lugar, é culpa dos EUA e de outros governos ricos.

Em uma entrevista à Sky News, Bill Gates zombou, “não temos um governo mundial” que poderia ignorar ou substituir os Estados Unidos ou o Reino Unido. E ele está certo: não temos um governo mundial. Mas o que temos são instituições internacionais onde nações ricas, lideradas pelos Estados Unidos, estão ativamente sabotando quaisquer esforços para pressionar por igualdade na produção e distribuição de vacinas. A África do Sul e a Índia propuseram a isenção de patentes e outras restrições de propriedade intelectual (PI) por meio da Organização Mundial do Comércio (OMC) durante a pandemia.

Apesar do apoio de mais de 100 países, esse esforço tem sido bloqueado até agora. E, enquanto isso, de acordo com o New York Times, empresas farmacêuticas como a Pfizer estão “pedindo aos governos que coloquem ativos soberanos, incluindo suas reservas bancárias, edifícios de embaixadas e bases militares” para proteger as empresas de processos judiciais decorrentes de sua própria negligência.

Libere as patentes, compartilhe a tecnologia

Durante meses, ativistas e organizações civis pediram ao presidente Joe Biden que apoiasse uma dispensa temporária de patente na OMS, uma demanda que está em discussão desde outubro passado e voltará a ser discutida novamente em 5 de maio. As mesmas nações ricas que estão acumulando suprimentos também estão bloqueando a renúncia.

Agora, a pressão está aumentando sobre Biden. O editorial do New York Times está defendendo o compartilhamento de patentes e know-how tecnológico, e até mesmo a The Economist está exortando Biden a repudiar o “egoísmo da vacina”. Adar Poonawalla, chefe do maior fabricante de vacinas do mundo, o Serum Institute of India, está implorando ao governo Biden para suspender o embargo às exportações de matéria-prima dos Estados Unidos para permitir uma maior produção de vacinas na Índia.

Biden começou a ceder em certas questões, incluindo o compromisso de enviar geradores de oxigênio e materiais da vacina AstraZeneca para a Índia. O governo prometeu desviar algumas doses que tem em excesso (e não foram aprovadas para uso nos Estados Unidos) para o exterior, seja por meio da COVAX ou de acordos bilaterais. Esses são bons primeiros passos, mas ultrapassam um padrão muito baixo e não chegam nem perto de enfrentar a crise.

Para aumentar a produção de vacinas aos níveis necessários para inocular a maioria da população mundial, as empresas farmacêuticas devem ser forçadas a liberar as patentes e o know-how tecnológico para produzi-las. Isso permitirá que os fabricantes de medicamentos genéricos e outros aumentem a produção de vacinas.

Joe Biden poderia acabar com esta pandemia se quisesse

O governo dos Estados Unidos tem o poder e o direito legal de fazê-lo. O primeiro passo seria parar de bloquear a dispensa de patente na OMC. O governo Biden também poderia fornecer licenças compulsórias de vacinas com financiamento público para fabricantes de medicamentos que têm capacidade para produzir a vacina. A maioria das vacinas para COVID-19, por exemplo, usa tecnologia de proteína spike estabilizada, que foi desenvolvida pelo National Institutes of Health (NIH) com financiamento público. O NIH reivindicou a propriedade conjunta da vacina Moderna.

O governo dos EUA pode ajudar a facilitar a transferência de tecnologia entre fabricantes de medicamentos e compartilhar conhecimento e propriedade intelectual na OMS. Recursos muito maiores também devem ser investidos para aumentar a capacidade de produção em todo o mundo. A Operação Warp Speed, por exemplo, já havia “aumentado e escalado 23 instalações de manufatura em 6 meses”, de acordo com um relatório do Public Citizen. Dado o peso econômico e político dos Estados Unidos, uma combinação dessas medidas poderia ser implementada para transformar as vacinas da COVID-19 em um bem público global.

Esse tipo de ação é extremamente popular. O que impede é o compromisso do governo Biden com a indústria farmacêutica, seus lobbies e seus lucros.

A indústria farmacêutica se beneficia tremendamente com direitos de patente estritos e financiamento governamental para pesquisas. Muitas vezes somos informados de que este é um acordo necessário – caso contrário, as empresas não teriam o incentivo para colaborar e realizar pesquisas arriscadas. Mas as empresas farmacêuticas normalmente gastam uma parcela muito pequena de sua receita em pesquisa e desenvolvimento. Quando o fazem, raramente é para o desenvolvimento de vacinas, que é um empreendimento menos lucrativo e requer pesquisa de longo prazo e investimento.

Não podemos confiar na boa vontade das empresas farmacêuticas ou na “mão invisível” do mercado. Quaisquer outros atrasos irão aprofundar uma já catastrófica crise econômica e sanitário – que ceifou mais de 3 milhões de vidas e mergulhou aproximadamente 150 milhões de pessoas na pobreza.

Os céus de Delhi hoje estão manchados pela fumaça de dezenas de crematórios improvisados. “As pessoas estão simplesmente morrendo, morrendo e morrendo”, disse Jitender Singh Shanty, que coordena mais de 100 cremações por dia, ao Guardian. Este não é um momento para lucrar. Então, liberem as malditas vacinas.

Sobre o autor

Hadas Thier é uma ativista e socialista em Nova York e autora de "A People's Guide to Capitalism: An Introduction to Marxist Economics". Ela tweeta em @HadasThier.

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