Patrícia Valim
Professora do Departamento de história da UFBA (Universidade Federal da Bahia) em cooperação técnica com a Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto)
Marianna Teixeira Farias
Bacharel em história pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e mestranda em história social
Combate entre rebeldes da Confederação do Equador e forças do Império na luta dos Afogados, no Recife, em 1824; a pintura é de Leandro Martins (data desconhecida) - Wikimedia Commons |
Não há festa de largo, roda de capoeira e roda de samba na Bahia sem um canto que faça saudações às mulheres que tiveram participações decisivas nas lutas pela independência do Brasil na Bahia.
Em "Marias Capoeiras", um dos sambas que homenageiam Maria Felipa de Oliveira, Sara Abreu canta: "Solta a mandiga aê, angoleira/ solta a mandiga á, angolá/ na roda da capoeira/ volta e meia vamos dar/ negras, índias e caboclas/ anciãs e feiticeiras/ guerreiras e capoeiras [...] e a Maria Felipa/ da Ilha de Itaparica/ pela Bahia lutou".
Até chegar a esse lugar privilegiado da cultura do povo, Maria Felipa construiu uma das mais belas trajetórias entre as mulheres guerreiras da história do Brasil.
Segundo Oliveira Lima (1922), a Divisão Auxiliadora se posicionou no Rio de Janeiro no início de 1822 com 2.000 portugueses para obrigar dom Pedro 1º a retornar a Portugal, conforme determinações das Cortes de Lisboa.
O insucesso da operação fez com que Portugal concentrasse seus esforços na província da Bahia para tentar dividir o território do Brasil em duas partes —ocuparia Salvador para, dali, reocupar o Rio.
Para tanto, os portugueses derrotados da Divisão Auxiliadora foram enviados à Bahia para se somar aos quase 2.500 soldados mandados por Portugal. Para vencer a guerra em Salvador, as tropas portuguesas deveriam dominar dois lugares estratégicos da província: a ilha de Itaparica e o rio Paraguaçu.
Maria Felipa foi fundamental para impedir os planos das tropas portuguesas. Mulher negra, livre, marisqueira, capoeirista, moradora de Itaparica e conhecedora do rio Paraguaçu, principal via de comunicação entre Salvador e o Recôncavo Baiano, ela rapidamente se engajou nas lutas como voluntária.
Começou remando durante a madrugada no Paraguaçu para levar mantimentos e informações sobre a guerra obtidas nas rodas de capoeira para a resistência baiana que estava em Cachoeira. Voltava com munições para impedir que os portugueses tivessem acesso ao rio e cercassem o comando das tropas baianas.
Sem acesso ao rio, os portugueses decidiram invadir Itaparica para fechar o acesso à Baía de Todos os Santos e conquistar Salvador. Dominar a ilha era fundamental para que os portugueses obtivessem alimentos, pois as tropas baianas tinham feito uma barreira em Pirajá, única via de acesso ao Recôncavo por terra.
Diante do perigo, Maria Felipa não teve dúvida: organizou um Exército de mulheres insulanas, conhecidas como "vedetas", para vigiar a movimentação das embarcações portuguesas nas praias.
Quando os portugueses desembarcaram na ilha, elas formaram um cerco e lutaram com facas e folhas de cansanção, uma folha urticante que causa queimaduras na pele.
Surrados pelas vedetas, os portugueses correram de volta para suas embarcações com a intenção de ganhar tempo para um contra-ataque. Para garantir que eles não voltassem a pisar na ilha, o grupo liderado por Maria Felipa entrou no mar e ateou fogo nas embarcações, destruindo duas delas e obrigando os portugueses a recuar.
Com seu conhecimento de estratégia militar, ela fez mais: garantiu a vitória das tropas baianas. Quando ela e as vedetas bloquearam o acesso ao rio Paraguaçu e protegeram Itaparica, os portugueses foram derrotados e ficaram sitiados em Salvador sem alimentos até serem expulsos em 2 de julho de 1823.
A vitória baiana representou um momento de inflexão das lutas pela independência do Brasil a partir do qual a ruptura definitiva com Portugal era questão de tempo.
Nesse momento, ocorreu a adesão do setor dominante da província ao projeto de uma monarquia constitucional centralizadora de dom Pedro 1º, fortalecendo a abertura da Constituinte, em 3 de maio de 1823. Havia a promessa de que a centralização não comprometeria a autonomia política local e a preservação dos interesses há muito conquistados, como a manutenção do escravismo.
O início dos trabalhos constituintes, no entanto, não significou o fim das lutas sangrentas, que aconteceram nas chamadas províncias do norte e do nordeste até 1825.
As lutas pela independência contaram com a adesão dos setores populares dessas províncias —indígenas, homens e mulheres escravizados e livres. Eles viram nesses conflitos a possibilidade de construção de um Estado com viés republicano e conquistas de liberdade, participação política e melhores condições de vida.
Sentindo-se traídos pela monarquia, esses grupos continuaram lutando por direitos como na Revolta dos Periquitos, na Bahia, e na Confederação do Equador, ambas violentamente reprimidas pelas tropas de dom Pedro 1º, em 1824.
Para tanto, os portugueses derrotados da Divisão Auxiliadora foram enviados à Bahia para se somar aos quase 2.500 soldados mandados por Portugal. Para vencer a guerra em Salvador, as tropas portuguesas deveriam dominar dois lugares estratégicos da província: a ilha de Itaparica e o rio Paraguaçu.
Maria Felipa foi fundamental para impedir os planos das tropas portuguesas. Mulher negra, livre, marisqueira, capoeirista, moradora de Itaparica e conhecedora do rio Paraguaçu, principal via de comunicação entre Salvador e o Recôncavo Baiano, ela rapidamente se engajou nas lutas como voluntária.
Começou remando durante a madrugada no Paraguaçu para levar mantimentos e informações sobre a guerra obtidas nas rodas de capoeira para a resistência baiana que estava em Cachoeira. Voltava com munições para impedir que os portugueses tivessem acesso ao rio e cercassem o comando das tropas baianas.
Sem acesso ao rio, os portugueses decidiram invadir Itaparica para fechar o acesso à Baía de Todos os Santos e conquistar Salvador. Dominar a ilha era fundamental para que os portugueses obtivessem alimentos, pois as tropas baianas tinham feito uma barreira em Pirajá, única via de acesso ao Recôncavo por terra.
Diante do perigo, Maria Felipa não teve dúvida: organizou um Exército de mulheres insulanas, conhecidas como "vedetas", para vigiar a movimentação das embarcações portuguesas nas praias.
Quando os portugueses desembarcaram na ilha, elas formaram um cerco e lutaram com facas e folhas de cansanção, uma folha urticante que causa queimaduras na pele.
Surrados pelas vedetas, os portugueses correram de volta para suas embarcações com a intenção de ganhar tempo para um contra-ataque. Para garantir que eles não voltassem a pisar na ilha, o grupo liderado por Maria Felipa entrou no mar e ateou fogo nas embarcações, destruindo duas delas e obrigando os portugueses a recuar.
Com seu conhecimento de estratégia militar, ela fez mais: garantiu a vitória das tropas baianas. Quando ela e as vedetas bloquearam o acesso ao rio Paraguaçu e protegeram Itaparica, os portugueses foram derrotados e ficaram sitiados em Salvador sem alimentos até serem expulsos em 2 de julho de 1823.
A vitória baiana representou um momento de inflexão das lutas pela independência do Brasil a partir do qual a ruptura definitiva com Portugal era questão de tempo.
Nesse momento, ocorreu a adesão do setor dominante da província ao projeto de uma monarquia constitucional centralizadora de dom Pedro 1º, fortalecendo a abertura da Constituinte, em 3 de maio de 1823. Havia a promessa de que a centralização não comprometeria a autonomia política local e a preservação dos interesses há muito conquistados, como a manutenção do escravismo.
O início dos trabalhos constituintes, no entanto, não significou o fim das lutas sangrentas, que aconteceram nas chamadas províncias do norte e do nordeste até 1825.
As lutas pela independência contaram com a adesão dos setores populares dessas províncias —indígenas, homens e mulheres escravizados e livres. Eles viram nesses conflitos a possibilidade de construção de um Estado com viés republicano e conquistas de liberdade, participação política e melhores condições de vida.
Sentindo-se traídos pela monarquia, esses grupos continuaram lutando por direitos como na Revolta dos Periquitos, na Bahia, e na Confederação do Equador, ambas violentamente reprimidas pelas tropas de dom Pedro 1º, em 1824.
Abundam nos arquivos brasileiros relatos sobre o perigo da luta política por direitos das populações negras escravizadas e livres, cobrando ações para contê-las e fazê-las retornar ao trabalho.
Por isso, não bastou punir as lideranças dos movimentos que questionavam o projeto monarquista. Foi preciso apagar da história o rastro da experiência da luta de um contingente enorme por cidadania.
Por isso, não bastou punir as lideranças dos movimentos que questionavam o projeto monarquista. Foi preciso apagar da história o rastro da experiência da luta de um contingente enorme por cidadania.
Isso explica em parte a ausência de relatos nas obras históricas durante o século 19 e boa parte do século 20 sobre a arguta estratégia de Maria Felipa, mulher negra e livre, e seu papel na derrota das tropas portuguesas na Bahia, bem como o papel central da província para a consolidação da independência do Brasil, após 1823.
Outra explicação para o apagamento é que, segundo os contemporâneos, ela continuou desafiando moral e politicamente os padrões da época ao liderar a luta por direitos da população insulana até a sua morte, em 1873.
Em 1921, o literato e deputado federal Xavier Marques publicou o romance "O Sargento Pedro". Nele, em meio às lutas pela Independência em Itaparica, uma "mulher agigantada, com a camisa descahida, as costas lavadas de suor, os cabelos revoltos, [que] agitava-se à frente da turba, com [um] homem preso pela gola da vestia, e sempre a gritar: – Canta! Senão te mato... Canta... 'Havemos de comer/Marotos com pão'".
Sua coragem e liderança começaram a ser valorizadas duas décadas depois, em 1942, nas obras de Ubaldo Osório Pimentel (1883-1974), nascido e criado em Itaparica, pai de uma menina de nome Maria Felipa e avô materno de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014).
Em "A Ilha de Itaparica" e "A Ilha de Itaparica, História e Tradição", o autor descreve Maria Felipa como uma "creoula estabanada, alta e corpulenta que usava torço e saia rodada [...] gozava de uma grande popularidade entre os praieiros que admiravam o desassombro e a [sua] coragem".
João Ubaldo Ribeiro inverteu as características que criminalizaram Maria Felipa no início do século 20 para avançar no caminho aberto nas obras do seu avô e retratá-la, em 1986, como Maria da Fé, a protagonista do livro "Viva o Povo Brasileiro", pulsante, cheia de energia para as lutas travadas desde a infância.
Eny Kleyde Vasconcelos de Farias, em "Maria Felipa de Oliveira, Heroína da Independência da Bahia" (2010), retomou as trilhas abertas por Edith Mendes Gama e Abreu, que, em 1973, havia escrito sobre Maria Felipa em "Aspectos do 2 de Julho", destacando sua extraordinária coragem na batalha do rio Paraguaçu.
A inclusão da imagem de Maria Felipa em 2008 no cortejo do Dois de Julho, junto a outros heróis da Independência, aumentou a visibilidade da sua trajetória. Foi considerada matriarca da Independência de Itaparica, título que a colocou no panteão das heroínas brasileiras.
Em 2005, a professora Filomena Oge a desenhou, com base na tradição oral, nos documentos utilizados nas obras de Ubaldo Osório e nos traços de pessoas que se afirmam como descendentes. Para a professora, Maria Felipa provavelmente era filha de sudaneses, descritos como "altos, bem formados [...] robustos física e intelectualmente".
O resgate da história dela nas lutas pela independência do Brasil na Bahia e a construção dessa memória pela população nos levam a mobilizar discussões em torno de uma questão: qual independência estamos comemorando neste bicentenário?
A independência como uma repressão bem-sucedida de dom Pedro 1º e das elites locais, que se alinharam ao projeto de uma monarquia centralizadora ao preço da manutenção do escravismo como política do Estado que surgia e da brutal violência contra homens e mulheres que continuaram nas ruas, lutando por direitos?
Ou a independência como uma revolução abortada nas várias guerras com participação de um contingente enorme de indígenas, homens e mulheres, como Maria Felipa, que abandonaram a própria vida pela expectativa de um país com mais oportunidades?
Recordar a luta de mulheres como Maria Felipa significa convocar a força que as fez protagonistas de suas vidas para nos livrar da tirania em momentos cruciais da nossa história. Não será diferente em 2022, sabemos.
Outra explicação para o apagamento é que, segundo os contemporâneos, ela continuou desafiando moral e politicamente os padrões da época ao liderar a luta por direitos da população insulana até a sua morte, em 1873.
Em 1921, o literato e deputado federal Xavier Marques publicou o romance "O Sargento Pedro". Nele, em meio às lutas pela Independência em Itaparica, uma "mulher agigantada, com a camisa descahida, as costas lavadas de suor, os cabelos revoltos, [que] agitava-se à frente da turba, com [um] homem preso pela gola da vestia, e sempre a gritar: – Canta! Senão te mato... Canta... 'Havemos de comer/Marotos com pão'".
Sua coragem e liderança começaram a ser valorizadas duas décadas depois, em 1942, nas obras de Ubaldo Osório Pimentel (1883-1974), nascido e criado em Itaparica, pai de uma menina de nome Maria Felipa e avô materno de João Ubaldo Ribeiro (1941-2014).
Em "A Ilha de Itaparica" e "A Ilha de Itaparica, História e Tradição", o autor descreve Maria Felipa como uma "creoula estabanada, alta e corpulenta que usava torço e saia rodada [...] gozava de uma grande popularidade entre os praieiros que admiravam o desassombro e a [sua] coragem".
João Ubaldo Ribeiro inverteu as características que criminalizaram Maria Felipa no início do século 20 para avançar no caminho aberto nas obras do seu avô e retratá-la, em 1986, como Maria da Fé, a protagonista do livro "Viva o Povo Brasileiro", pulsante, cheia de energia para as lutas travadas desde a infância.
Eny Kleyde Vasconcelos de Farias, em "Maria Felipa de Oliveira, Heroína da Independência da Bahia" (2010), retomou as trilhas abertas por Edith Mendes Gama e Abreu, que, em 1973, havia escrito sobre Maria Felipa em "Aspectos do 2 de Julho", destacando sua extraordinária coragem na batalha do rio Paraguaçu.
A inclusão da imagem de Maria Felipa em 2008 no cortejo do Dois de Julho, junto a outros heróis da Independência, aumentou a visibilidade da sua trajetória. Foi considerada matriarca da Independência de Itaparica, título que a colocou no panteão das heroínas brasileiras.
Em 2005, a professora Filomena Oge a desenhou, com base na tradição oral, nos documentos utilizados nas obras de Ubaldo Osório e nos traços de pessoas que se afirmam como descendentes. Para a professora, Maria Felipa provavelmente era filha de sudaneses, descritos como "altos, bem formados [...] robustos física e intelectualmente".
O resgate da história dela nas lutas pela independência do Brasil na Bahia e a construção dessa memória pela população nos levam a mobilizar discussões em torno de uma questão: qual independência estamos comemorando neste bicentenário?
A independência como uma repressão bem-sucedida de dom Pedro 1º e das elites locais, que se alinharam ao projeto de uma monarquia centralizadora ao preço da manutenção do escravismo como política do Estado que surgia e da brutal violência contra homens e mulheres que continuaram nas ruas, lutando por direitos?
Ou a independência como uma revolução abortada nas várias guerras com participação de um contingente enorme de indígenas, homens e mulheres, como Maria Felipa, que abandonaram a própria vida pela expectativa de um país com mais oportunidades?
Recordar a luta de mulheres como Maria Felipa significa convocar a força que as fez protagonistas de suas vidas para nos livrar da tirania em momentos cruciais da nossa história. Não será diferente em 2022, sabemos.
Este texto integra a série Perfis da Independência, que destaca nomes relevantes -muito conhecidos ou não- do período da emancipação do Brasil em relação a Portugal.
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