Marianna Teixeira Farias
Bacharel em história pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e mestranda em história social
Folha de S.Paulo
[RESUMO] Em 1822, Maria Quitéria de Jesus, uma mulher parda com traços indígenas, desobedeceu as ordens do pai e as convenções da sociedade e se alistou como soldado Medeiros para lutar na Guerra da Independência na província da Bahia. Mesmo descoberta, seguiu no batalhão e foi pessoalmente condecorada por dom Pedro 1° pelos seus feitos. Sua história hoje inspira a luta de mulheres por um país menos desigual.
Em 2 de julho de 1822, o governador das armas da província da Bahia, o general português Madeira de Mello, publicou no periódico Idade d´Ouro do Brazil:
"A facção que há muito se introduziu [...] tem trabalhado constantemente até hoje para revolucionar a província; e já fez desgraçada explosão na [cidade de] Cachoeira e outros lugares. Tem emigrado para a cidade alguns proprietários e negociantes, [que] julgam seus bens perdidos, [especialmente] aqueles que têm escravos de lavoura e gado".
Diante do acirramento crescente dos conflitos na Bahia, o então príncipe regente, Pedro Alcântara, escreveu um manifesto endereçado aos "brasileiros", em 1º de agosto de 1822.
Nele, o futuro imperador convocou "valentes mineiros, intrépidos pernambucanos defensores da liberdade brasílica [para irem] em socorro dos vossos vizinhos irmãos: não he a causa de uma província; he a causa do Brasil que se defende na primogênita de Cabral. [...] Habitantes do Ceará, Maranhão, do riquíssimo Pará, vós todos das bellas e amenas províncias do Norte, vinde exarar e assignar o Acto da nossa Emancipação".
Essas mensagens não deixam dúvida: conquistar a província da Bahia definiria os rumos do processo de Independência do Brasil, agravado em 19 fevereiro de 1822.
Na época, Salvador foi palco de lutas sangrentas. O general português Madeira de Mello, nomeado pelas cortes de Lisboa, invadiu o forte de São Pedro para prender e destituir o baiano Manuel Pedro de Freitas Guimarães, que havia sido nomeado governador das armas depois de ter sido brigadeiro e comandante interino da província desde 1821.
Outros fatores estavam em causa nessa disputa. Nas primeiras décadas do século 19, a Bahia ainda era a maior exportadora de cana-de-açúcar, algodão e tabaco, garantindo à cidade lugar de destaque ao lado do Rio de Janeiro no tráfico de africanas e africanos escravizados.
Assim, assegurar a permanência do escravismo foi determinante para a adesão do setor dominante da província da Bahia ao projeto político de dom Pedro 1º, que deixaria de correr risco com a abertura da Constituinte, em 3 de maio de 1823.
Até lá, a resistência que estava na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, organizou batalhões com voluntários para as lutas contra as tropas portuguesas na Bahia. Homens negros e pardos, escravizados e livres, formaram o Batalhão dos Periquitos. O nome remete à farda que usavam, que continha um dolmã azul-escuro com gola e punho esverdeados (veja a pintura abaixo).
Nesse batalhão, uma mulher se alistou como soldado Medeiros e comandou ao menos três batalhas que foram decisivas para a vitória das tropas baianas. Seu nome era Maria Quitéria de Jesus.
[RESUMO] Em 1822, Maria Quitéria de Jesus, uma mulher parda com traços indígenas, desobedeceu as ordens do pai e as convenções da sociedade e se alistou como soldado Medeiros para lutar na Guerra da Independência na província da Bahia. Mesmo descoberta, seguiu no batalhão e foi pessoalmente condecorada por dom Pedro 1° pelos seus feitos. Sua história hoje inspira a luta de mulheres por um país menos desigual.
Em 2 de julho de 1822, o governador das armas da província da Bahia, o general português Madeira de Mello, publicou no periódico Idade d´Ouro do Brazil:
"A facção que há muito se introduziu [...] tem trabalhado constantemente até hoje para revolucionar a província; e já fez desgraçada explosão na [cidade de] Cachoeira e outros lugares. Tem emigrado para a cidade alguns proprietários e negociantes, [que] julgam seus bens perdidos, [especialmente] aqueles que têm escravos de lavoura e gado".
Diante do acirramento crescente dos conflitos na Bahia, o então príncipe regente, Pedro Alcântara, escreveu um manifesto endereçado aos "brasileiros", em 1º de agosto de 1822.
Nele, o futuro imperador convocou "valentes mineiros, intrépidos pernambucanos defensores da liberdade brasílica [para irem] em socorro dos vossos vizinhos irmãos: não he a causa de uma província; he a causa do Brasil que se defende na primogênita de Cabral. [...] Habitantes do Ceará, Maranhão, do riquíssimo Pará, vós todos das bellas e amenas províncias do Norte, vinde exarar e assignar o Acto da nossa Emancipação".
Essas mensagens não deixam dúvida: conquistar a província da Bahia definiria os rumos do processo de Independência do Brasil, agravado em 19 fevereiro de 1822.
Na época, Salvador foi palco de lutas sangrentas. O general português Madeira de Mello, nomeado pelas cortes de Lisboa, invadiu o forte de São Pedro para prender e destituir o baiano Manuel Pedro de Freitas Guimarães, que havia sido nomeado governador das armas depois de ter sido brigadeiro e comandante interino da província desde 1821.
Outros fatores estavam em causa nessa disputa. Nas primeiras décadas do século 19, a Bahia ainda era a maior exportadora de cana-de-açúcar, algodão e tabaco, garantindo à cidade lugar de destaque ao lado do Rio de Janeiro no tráfico de africanas e africanos escravizados.
Assim, assegurar a permanência do escravismo foi determinante para a adesão do setor dominante da província da Bahia ao projeto político de dom Pedro 1º, que deixaria de correr risco com a abertura da Constituinte, em 3 de maio de 1823.
Até lá, a resistência que estava na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, organizou batalhões com voluntários para as lutas contra as tropas portuguesas na Bahia. Homens negros e pardos, escravizados e livres, formaram o Batalhão dos Periquitos. O nome remete à farda que usavam, que continha um dolmã azul-escuro com gola e punho esverdeados (veja a pintura abaixo).
Nesse batalhão, uma mulher se alistou como soldado Medeiros e comandou ao menos três batalhas que foram decisivas para a vitória das tropas baianas. Seu nome era Maria Quitéria de Jesus.
Nascida em 1792 no sítio do Licorizeiro (numa região chamada de São José das Itapororocas, no Recôncavo Baiano), ela aprendeu desde cedo a cavalgar e a atirar com armas de fogo, razão pela qual se recusava a bordar, tecer, fiar e cuidar da casa, atividades costumeiramente destinadas às mulheres da época.
Por infortúnio do destino, viu sua mãe morrer quando ainda era muito jovem. Por conta disso, ela e a família se mudaram para outra fazenda, chamada Serra de Agulha. Por lá, seu pai, Gonçalo, se casou mais uma vez.
A nova esposa, Maria Rosa, fez com que a vida não fosse fácil para Quitéria já que a repreendia em tudo que gostava de fazer. Mesmo assim, à medida que os anos se passaram, a primogênita continuou sem medo de ser quem era. Gastava horas aprimorando as suas habilidades com as armas, a cavalaria e a caça.
Em 1822, ano em que as lutas estavam se instalando no Recôncavo Baiano, Maria Quitéria já era adulta e, muito provavelmente, enamorada do lavrador Gabriel Pereira de Brito, que morava pelas redondezas. Foi quando surgiu uma visita inesperada. Um dos emissários que convocavam voluntários para fazer parte dos batalhões de guerra chegou à fazenda de seu pai.
Ao ouvi-lo falar sobre as lutas pela Independência, ela se levantou e afirmou que gostaria de ir. Seu pai a repreendeu, afirmando que um campo de batalha não era lugar para mulher.
Ainda assim, não se deteve. No dia seguinte, fugiu escondida para a casa de sua irmã Tereza, a quem contou seu plano. Iria se disfarçar de homem para lutar na guerra, visto que o alistamento não era permitido para mulheres. Cortou os cabelos e pegou emprestado a farda e o nome de seu cunhado, Medeiros.
A partir daquele momento, Maria Quitéria viajou para Cachoeira como soldado Medeiros e por lá se alistou. Da artilharia à infantaria, ninguém suspeitou do seu disfarce.
Após algumas semanas, seu pai, que estava a sua procura, conseguiu reconhecê-la entre os soldados e solicitou ao comandante do batalhão a sua retirada.
Para a surpresa do pai e da própria Maria Quitéria, o chefe militar falou sobre o talento dela como atiradora e sua notável habilidade com os cavalos, e pediu que ela escolhesse entre voltar para a fazenda ou seguir no batalhão por amor à pátria. Para o desgosto de seu pai, Maria Quitéria escolheu lutar como uma mulher.
Sua primeira missão se deu em 29 de outubro de 1822: coube a ela organizar a defesa da ilha de Maré. Logo depois, na Batalha de Pirajá, contribuiu para impedir que as tropas portuguesas chegassem ao Recôncavo Baiano por terra —a região era fundamental para garantir a alimentação das tropas. Em fevereiro de 1823, atacou uma trincheira das tropas portuguesas, prendendo e conduzindo os soldados ao acampamento brasileiro.
Após as batalhas vitoriosas comandadas por Maria Quitéria, o general Pierre Labatut lhe conferiu as honras de 1º cadete e autorizou que ela incorporasse ao uniforme do Batalhão dos Periquitos um saiote escocês e uma espada, ambos sobrepostos ao dólmã azul-escuro e às calças brancas.
Presença destacada entre os soldados das tropas baianas, a documentação demonstra que ela se apaixonou durante as lutas pela Independência do Brasil na Bahia, casando-se em março de 1821 com o furriel João José Luís, que morreu pouco tempo depois.
Na última batalha que comandou, Maria Quitéria e cerca de 40 mulheres entraram no rio Paraguaçu, nadaram até ficarem com água à altura dos seios e lutaram contra os portugueses para que as barcas inimigas não chegassem à Baía de Todos os Santos.
As notícias sobre seus feitos e a maneira como ela se alistou no Batalhão dos Periquitos foram além da província. Terminada a guerra na Bahia, uma multidão aguardava a passagem do Exército pacificador, e Maria Quitéria desfilou ao lado do comandante da tropa, sob um arco de louro e flores do campo ornamentado por freiras do Convento da Soledade.
Depois das festas, ela foi designada para ir ao encontro de dom Pedro 1º, chegando ao Rio de Janeiro em 17 de agosto de 1823 a bordo do navio Leal Português. Três dias depois, o imperador a recebeu junto ao corpo diplomático, além de ministros, deputados e a viajante e escritora inglesa Maria Graham.
Na cerimônia, ele a condecorou com a insígnia de cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro e a concedeu o soldo perpétuo de alferes de linha.
Despertando a curiosidade dos presentes na cerimônia, Maria Quitéria foi retratada nas páginas do diário de Maria Graham, que ficou encantada com sua desenvoltura e altivez em um ambiente predominantemente masculino: uma mulher parda e com traços indígenas, que usava as mãos para comer farinha com ovos ao almoço e peixe ao jantar.
Também uma mulher que fumava um charuto após as refeições enquanto conversava sobre os mais variados assuntos em uma sala reservada para homens.
O reconhecimento de seus feitos nas lutas pela independência política do Brasil na Bahia, no entanto, não diminuiu a preocupação por ter transgredido moral, estética e politicamente as ordens de seu pai e daquela sociedade que criminalizava e difamava as mulheres que se engajavam por uma causa na esfera pública.
Antes de retornar para a sua terra natal, Maria Quitéria pediu a dom Pedro 1º para escrever uma carta de próprio punho para o pai dela, Gonçalo, com o objetivo de convencê-lo a perdoá-la por meio do reconhecimento público de seu patriotismo. Mas nada foi capaz de abrandar a ira de Gonçalo, o que explica as escolhas da filha até o final de sua vida.
Ao voltar para a antiga casa da Serra de Agulha, foi recebida com festa por vizinhos, porém com hostilidade pelo pai. Ficou morando com a família até se casar em segunda núpcias com o primeiro pretendente, o lavrador Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma filha chamada Luísa.
Quando seu pai morreu, Maria Quitéria descobriu que ele nunca a perdoou, pois os bens a que tinha direito foram deixados para a madrasta. Lutou para reavê-los, sem sucesso, e ficou viúva novamente. Cega e vivendo apenas da pensão vitalícia de alferes, resolveu ir para Salvador com a filha, onde faleceu em 21 de agosto de 1853, aos 56 anos, em decorrência de uma inflamação do fígado.
Maria Quitéria de Jesus morreu no anonimato, mas sua fama em razão de suas transgressões, incluindo as condecorações de dom Pedro 1º, logrou um desafio para a escrita de sua história e memória: como retratar uma mulher parda e do sertão baiano que subverteu todas as opressões para ocupar a linha de frente de uma guerra depois de tomar emprestada as roupas e a identidade de um homem?
Nas iconografias, temos algumas pistas. A primeira delas, intitulada "A Female Soldier of South America", é uma aquarela que foi produzida pelo artista inglês Augustus Earle, provavelmente em 1824.
Nela, é possível ver Maria Quitéria trajando o uniforme militar que usou nas batalhas sem a insígnia da Ordem Imperial do Cruzeiro. Foi retratada com a pele branca, as maçãs do rosto rosadas, cabelos lisos e castanhos, com os traços tipicamente europeus.
A representação contrasta com o testemunho feito por Maria Graham, que destacou "os mais acentuados traços dos índios, especialmente os olhos e a testa". Além disso, a ausência de seios remete à figura de um soldado comum das tropas a favor de dom Pedro 1º.
Outra obra do mesmo autor, mas gravada pelo inglês Edward Finden, foi intitulada "Dona Maria de Jesus", feita sob encomenda para compor o diário de Maria Graham, em 1824. Nela, Maria Quitéria é retratada de corpo inteiro em um cenário tropical, com palmeiras, o mar ao longe e com personagens lutando.
Seu corpo está de frente, com o joelho virado para o lado e as pernas levemente relaxadas. Ela segura um rifle como quem segura uma bengala ou o transforma em adereço da vestimenta. O domínio da arma como uma característica tipicamente masculina fica em segundo plano enquanto o aspecto feminino é ressaltado com a marcação dos seios, o rosto ruborizado e um leve sorriso de quem está alheia à batalha que ocorre em seu entorno.
Já em 1922, por ocasião do centenário da Independência do Brasil, Affonso Taunay, diretor do Museu do Ipiranga, encomendou uma série de pinturas para compor a memória do evento. O italiano Domenico Failutti ficou responsável pelos retratos de três mulheres: a abadessa Sóror Joana Angélica, a imperatriz Leopoldina e Maria Quitéria de Jesus.
Fazendo uma releitura da gravura encomendada em 1824 pela inglesa Maria Graham, o pintor propôs algumas mudanças: retirou os personagens lutando, acentuou as cores do cenário tropical e retratou Maria Quitéria com a cor da pele mais escura e os traços do seu rosto mais delicados e femininos, inclusive com a boca pintada.
A opção por retratar Maria Quitéria como uma combatente de traços nativos tem como objetivo transformá-la na síntese da participação popular nas lutas pela Independência do Brasil, ainda que o ideal de mulher na Primeira República fosse mais afeito à imagem da imperatriz Leopoldina, mãe dedicada e esposa resiliente, fundamentalmente uma mulher da esfera privada.
A inclusão da imagem de Maria Quitéria no rol de retratos que compõem a memória sobre a Independência do Brasil do Museu Paulista está ligada a uma perspectiva histórica cara ao centenário, na qual os estados da federação passaram a reivindicar seus papéis no processo de construção do Estado Nacional.
Desse momento em diante, a trajetória política de Maria Quitéria foi cada vez mais incorporada na luta de diversos coletivos e movimentos sociais.
De 1977 a 1979, a advogada Therezinha Zerbini, fundadora do Movimento Feminino Pela Anistia, editou o boletim Maria Quitéria, voltado para a participação política e social das mulheres que reivindicavam a lei da anistia aos presos e exilados políticos durante a ditadura militar no Brasil.
Segundo a editora, a escolha de Maria Quitéria serviu para o movimento se legitimar e provocar a caserna por meio da trajetória de uma mulher iletrada que, ainda assim, "sabia por quais valores valia a pena lutar".
No mesmo ano, em 1979, a Câmara Municipal de Feira de Santana criou a comenda Maria Quitéria para homenagear personalidades políticas da cidade. Desde 1996, ela é também patronesse do quadro complementar de oficiais do Exército brasileiro, sendo por determinação ministerial obrigatória a reprodução do quadro de Domenico Failutti em todos os quartéis, estabelecimentos e repartições militares do país.
Além disso, há um distrito e algumas ruas que levam o seu nome, como o distrito Maria Quitéria, antes chamado de São José das Itapororocas, onde a heroína viveu.
Em 2016, a Câmara Municipal de Salvador criou uma medalha militar e uma comenda em sua homenagem, destacando a importância regional da combatente e da própria Bahia na história nacional. Por fim, em 2018, ela foi declarada Heroína da Pátria Brasileira pela Lei Federal nº 13.697 e incluída no "Livro de Aço das Heroínas e Heróis da Pátria".
A história da baiana Maria Quitéria de Jesus resgata o que há de melhor nesse país, em 2022. Ela nos convida a pensar a Independência do Brasil como um processo além do 7 de setembro e do eixo Rio-São Paulo.
Também nos oferece a possibilidade de conhecer a luta das mulheres que foram para a guerra por um mundo diferente daquele que as oprimia. Por fim, ela nos mostra que é possível derrotar a tirania de ontem e de hoje.
TEXTO INTEGRA SÉRIE PERFIS DA INDEPENDÊNCIA
Este texto da historiadora Marianna Teixeira Farias integra a série Perfis da Independência, que destaca nomes relevantes —muito conhecidos ou não— do período da emancipação do Brasil em relação a Portugal.
O texto sobre a imperatriz Leopoldina deu início à série em fevereiro de 2022, seguido dos artigos sobre o jornalista Hipólito da Costa, o navegador escocês Thomas Cochrane, Bárbara Pereira de Alencar, revolucionária e primeira presa política do Brasil, José Bonifácio, patriarca da Independência, e Urânia Vanério, autora de panfleto pró-Independência aos 10 anos, entre outros nomes.
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