Amanhã, o Senegal vota numa eleição que o presidente Macky Sall, apoiado pela França, adiou repetidamente. O fato das eleições estarem ocorrendo é uma vitória para os jovens e pobres senegaleses, cujos protestos resistiram ao retrocesso democrático das elites.
Gregory Valdespino
Senegal votou em uma eleição na qual o presidente apoiado pela França, Macky Sall, repetidamente sabotou e adiou o processo democrático. O fato da eleição ter ocorrido é uma vitória para os jovens e trabalhadores, cujos protestos resistiram ao retrocesso das elites. Já o fato de Bassirou Diomaye Faye ter ganho é outra vitória - e mais uma amarga derrota para o colonialismo francês no continente.
Na quinta-feira retrasada, aplausos ecoaram pela capital do Senegal, Dakar. Em algumas quadras de onde eu estava, no luxuoso distrito de Plateau da cidade, Ousmane Sonko e Bassirou Diomaye Faye deixaram a prisão onde estiveram detidos por meses. Desde 2017, Sonko lidera um poderoso movimento de oposição que tem criticado o atual presidente Macky Sall e o status quo que ele representa. Como Sonko não pode concorrer, Faye representou seu partido nas eleições presidenciais. A comemoração que varreu esta metrópole revela muito sobre os limites e as possibilidades da democracia não apenas no Senegal, ou mesmo na África Ocidental, mas em todo o mundo.
Nos últimos anos, as pessoas se acostumaram a ouvir sobre o retrocesso da democracia. Os vizinhos do Senegal e das ex-colônias francesas Burkina Faso, Mali e Níger têm sido exemplos dessa tendência. Dentro dessa chamada “faixa da junta“, muitos cidadãos se uniram a golpes militares que derrubaram líderes democraticamente eleitos, amplamente vistos como fantoches franceses ou elites egoístas. Além desses países, os eleitores parecem ter perdido a fé nas democracias pós-coloniais, desde a Nigéria até o Paquistão. Isso sem falar no Estado precário da democracia na Europa e na América do Norte. Juntas, essas histórias dão a entender que os eleitores no mundo todo desistiram do processo democrático. Em vez disso, os cidadãos depositaram sua fé em generais e ditadores. O povo, ao que parece, abandonou a democracia.
O Senegal desafia essa narrativa. Nas últimas semanas, ficou nítido que são os governantes do país, e não seus eleitores, que perderam a fé no processo democrático. O povo senegalês resistiu, assim como tem feito há décadas. Ao fazer isso, deram novo fôlego ao sistema político do país de uma forma que deveria inspirar qualquer pessoa que deseja defender e revitalizar a democracia.
Evitando o voto
O Senegal tem se envolvido em uma crise política há semanas. Em 3 de fevereiro, o ex-presidente Sall suspendeu a eleição originalmente marcada para 25 de fevereiro. O partido de Sall então empurrou violentamente um projeto de lei através da Assembleia Nacional que marcou uma nova eleição para 15 de dezembro, o que lhe permitiria permanecer no poder muito além do fim oficial de seu mandato, no início do próximo mês. Sall e seus seguidores deram este passo sem precedentes à medida que ficava cada vez mais perceptível que o partido de Sonko e Faye tinha uma séria chance de ganhar. Muitos correligionários de Sall temem ir para à cadeia sob acusações de corrupção ou abusos dos direitos humanos. Para se protegerem, Sall e seus seguidores mergulharam seu país no desconhecido.
O que Sonko e Faye representam? Plataformas políticas vagas e promessas grandiosas de mudança revolucionária tornam-se difícil de aplicar. No entanto, em seu cerne, Sonko, Faye e seu partido, os Patriotas Africanos do Senegal pelo Trabalho, Ética e Fraternidade (PASTEF), combinam políticas econômicas populistas, retórica anticolonial e ataques à elite política do Senegal. Líderes do PASTEF exigem soberania monetária, uma renegociação de contratos com entidades estrangeiras e o fim da intervenção política francesa. Milhões de eleitores mais jovens, especialmente em áreas urbanas pobres como os subúrbios, encontraram nova esperança nessas posições. Quando Sall desfez a eleição planejada, esses sonhos pareciam mais ameaçados do que nunca.
Protestos, ativistas e jornalistas em todo o Senegal imediatamente condenaram o adiamento da eleição, como nada menos que um “golpe constitucional“. Confrontos entre manifestantes e polícia explodiram por todo o país, levando a pelo menos três mortes. Enquanto isso, partidos de oposição e grupos da sociedade civil exigiram que o Conselho Constitucional, o mais alto tribunal do país, interviesse. E interveio. O tribunal derrubou os dois esforços separados do governo de Sall para realizar eleições após o término de seu mandato. Por conta dessas medidas, a eleição foi marcada para o último domingo (24/03/24). Pelo menos por enquanto, Sall não conseguiu destruir a democracia de seu país.
Farto!
Passei os últimos dez anos pesquisando e escrevendo sobre Dakar. Aprendi a amar a bela mistura da energia frenética e da calma segura desta cidade. No entanto, após Sall adiar as eleições, meu telefone se encheu de mensagens de amigos em Dakar — e imagens assustadoras circulando online. Fui ao Senegal na semana passada com com muita ansiedade sobre o que encontraria. Para minha satisfação, retornei aos cenários e sons familiares de uma temporada de campanha senegalesa. Ônibus adornados com rostos de candidatos tocavam músicas de campanha estridentes. Discussões políticas nas calçadas e nas televisões preenchiam o ar. Essas sensações há muito tempo são comuns neste país que muitas pessoas chamam a política de esporte nacional. Mas esses fatos realmente significam que a democracia está funcionando aqui?
Macky Sall revelou uma decadência sistêmica dentro da classe dominante do país. Como argumentou o historiador Mamadou Diouf, Sall degradou violentamente as instituições democráticas do país. Ele fechou a prestigiada Universidade Cheikh Anta Diop em Dakar, reprimiu jornalistas e deu sinal verde para ataques violentos contra manifestantes. Ele descartou a possibilidade de concorrer a um terceiro mandato inconstitucional apenas depois de protestos massivos e mortais no verão passado. Nem tudo está bem no Senegal.
Essas crises não surgiram do nada. Observadores frequentemente apresentam o Senegal como uma das democracias mais estáveis da África. Infelizmente, essa afirmação otimista esconde uma história muito mais complexa. Em um livro recente sobre democracia nas ex-colônias africanas da França, o economista Ndongo Samba Sylla e a jornalista Fanny Pigeaud consideram o Senegal, assim como outras ex-colônias francesas na África, uma “democracia imperial”. Todos os líderes do Senegal desde sua independência em 1960, mantiveram laços estreitos com o antigo governante do país. Como muitos de seus homólogos em toda a África francófona, a classe política do Senegal há muito tempo defende um sistema que serve em grande parte aos interesses econômicos e políticos franceses, bem como aos de um pequeno grupo de elites locais. Os possíveis ganhos dos emergentes mercados de petróleo do país apenas pioraram essa dinâmica corrupta. Mesmo quando as eleições são realizadas, os vencedores raramente ajudam as pessoas que os elegeram.
Mas ao lado deste passado neocolonial, também existe outra história, construída por pessoas senegalesas que tentam transformar o sistema político de seu país. Os jovens, em particular, passaram décadas argumentando que democracia significaria mais do que apenas votar. Na década de 1980, os jovens residentes de Dakar responderam à austeridade do governo formando seus próprios programas comunitários de saneamento. No início dos anos 2010, jovens rappers e jornalistas formaram um poderoso movimento “Y’en a Marre”. Significando “Farto” em português, esse grupo mobilizou centenas de milhares de jovens, antes e depois das eleições de 2012. Assim, como seus colegas em toda a África, esses ativistas mostraram que a democracia não se resume apenas às eleições.
Precisamos de eleições, mas também de uma democracia real
Certamente, as pessoas no Senegal têm dúvidas sobre a mudança eleitoral. Muitos estão fartos de lutar ano após ano, apenas para ver os custos aumentarem e os empregos diminuírem. Como milhões de pessoas ao redor do mundo, muitos eleitores no Senegal sentem que as eleições sozinhas não podem realmente transformar suas vidas.
No entanto, esse pessimismo não impediu as pessoas de defenderem a democracia do país nas últimas semanas. Os amigos, colegas e estranhos com quem conversei em Dakar estavam divididos sobre Sonko, Faye, seu movimento, e até mesmo sobre a possibilidade de mudança estrutural. Eles reconhecem que nenhuma eleição pode resolver os problemas do país. Apesar dessas divisões e dúvidas, ninguém com quem conversei rejeitou o processo democrático totalmente. Em minhas conversas, uma frase interessante surgiu repetidamente: “Não mexam na minha democracia”. Por mais falhas que as eleições possam ser, elas ainda têm um lugar sagrado no Senegal.
A votação foi marcada para último domingo. Alguns dos meus amigos estavam confiantes. Outros acreditam que nada é garantido no Senegal de Macky Sall. Mesmo com a votação dando vitória a Faye, isso não será o fim desta história. As eleições sozinhas não fazem a democracia. No entanto, sem elas, a democracia não tem chance alguma.
Por mais barulhenta que a cidade de Dakar tenha ficado nas últimas semanas, espero que continue assim e ainda mais barulhenta. Se esse barulho refletirá esperanças, fúria ou desespero é a questão. Milhões de senegaleses querem uma democracia. Será que a classe dominante do país os deixará ter uma? As consequências importam não apenas para os eleitores nos subúrbios pobres de Dakar ou para os políticos ricos do país. O que acontece no Senegal importa para qualquer pessoa que esteja tentando reinventar, ou pelo menos defender, a própria democracia.
Colaborador
Gregory Valdespino é pós-doutorando na Universidade de Princeton e especialista em história da África Ocidental e da França.
Mas ao lado deste passado neocolonial, também existe outra história, construída por pessoas senegalesas que tentam transformar o sistema político de seu país. Os jovens, em particular, passaram décadas argumentando que democracia significaria mais do que apenas votar. Na década de 1980, os jovens residentes de Dakar responderam à austeridade do governo formando seus próprios programas comunitários de saneamento. No início dos anos 2010, jovens rappers e jornalistas formaram um poderoso movimento “Y’en a Marre”. Significando “Farto” em português, esse grupo mobilizou centenas de milhares de jovens, antes e depois das eleições de 2012. Assim, como seus colegas em toda a África, esses ativistas mostraram que a democracia não se resume apenas às eleições.
Precisamos de eleições, mas também de uma democracia real
Certamente, as pessoas no Senegal têm dúvidas sobre a mudança eleitoral. Muitos estão fartos de lutar ano após ano, apenas para ver os custos aumentarem e os empregos diminuírem. Como milhões de pessoas ao redor do mundo, muitos eleitores no Senegal sentem que as eleições sozinhas não podem realmente transformar suas vidas.
No entanto, esse pessimismo não impediu as pessoas de defenderem a democracia do país nas últimas semanas. Os amigos, colegas e estranhos com quem conversei em Dakar estavam divididos sobre Sonko, Faye, seu movimento, e até mesmo sobre a possibilidade de mudança estrutural. Eles reconhecem que nenhuma eleição pode resolver os problemas do país. Apesar dessas divisões e dúvidas, ninguém com quem conversei rejeitou o processo democrático totalmente. Em minhas conversas, uma frase interessante surgiu repetidamente: “Não mexam na minha democracia”. Por mais falhas que as eleições possam ser, elas ainda têm um lugar sagrado no Senegal.
A votação foi marcada para último domingo. Alguns dos meus amigos estavam confiantes. Outros acreditam que nada é garantido no Senegal de Macky Sall. Mesmo com a votação dando vitória a Faye, isso não será o fim desta história. As eleições sozinhas não fazem a democracia. No entanto, sem elas, a democracia não tem chance alguma.
Por mais barulhenta que a cidade de Dakar tenha ficado nas últimas semanas, espero que continue assim e ainda mais barulhenta. Se esse barulho refletirá esperanças, fúria ou desespero é a questão. Milhões de senegaleses querem uma democracia. Será que a classe dominante do país os deixará ter uma? As consequências importam não apenas para os eleitores nos subúrbios pobres de Dakar ou para os políticos ricos do país. O que acontece no Senegal importa para qualquer pessoa que esteja tentando reinventar, ou pelo menos defender, a própria democracia.
Colaborador
Gregory Valdespino é pós-doutorando na Universidade de Princeton e especialista em história da África Ocidental e da França.
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