30 de março de 2024

O caminho para a fome em Gaza

Centenas de milhares de pessoas em Gaza estão à beira da fome - um desastre provocado pelo homem, com raízes na história de Israel de utilização de alimentos como arma.

Neve Gordon e Muna Haddad


Mahmud Isa/Anadolu/Getty Images

Aviões lançando pacotes de ajuda humanitária na Cidade de Gaza, 9 de março de 2024 

Tradução / Nos dias que se seguiram ao hediondo ataque do Hamas, em 7 de Outubro, a bases militares, kibutzim, cidades e ao festival de música Nova, vários altos funcionários israelitas anunciaram que pretendiam privar a população civil de Gaza das suas necessidades mais básicas. Na altura, mais de 80 por cento das mercadorias que entravam na Faixa de Gaza provinham de Israel, que manteve a área sob estrito bloqueio durante dezessete anos. Em 9 de outubro, após dois dias de extensos bombardeamentos aéreos, o ministro da energia e infra-estruturas do país, Israel Katz, anunciou que tinha ordenado o corte de água, eletricidade e combustível. “O que era”, disse ele, “não será mais”.

No mesmo dia, o ministro da Defesa, Yoav Gallant, exigiu um “cerco total” ao enclave: “não haverá comida, não haverá combustível”. (O seu raciocínio tornou-se desde então notório: “estamos lutando contra animais humanos”.) Em 17 de outubro, o ministro da segurança nacional, Itamar Ben-Gvir, insistiu que “enquanto o Hamas não libertar os reféns nas suas mãos…nem um grama de ajuda humanitária” entraria em Gaza - apenas “centenas de toneladas de explosivos da Força Aérea”. No dia seguinte, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu colocou a questão em termos igualmente severos: “Não permitiremos assistência humanitária sob a forma de alimentos e medicamentos do nosso território para a Faixa de Gaza”.

Essas são todas declarações de uma intenção de privar os palestinos de Gaza "de bens indispensáveis à sua sobrevivência, inclusive impedindo deliberadamente o fornecimento de ajuda" —a definição legal de "usar a fome de civis como método de guerra", um crime contra o direito internacional segundo o Estatuto de Roma.

Enquanto isso, a mídia e as redes sociais israelenses estavam saturadas de apelos para dizimar a população, no todo ou em parte: "apagar" Gaza, "arrasá-la", transformá-la "em Dresden". No dia em que as autoridades israelenses ordenaram que 1,1 milhão de pessoas do norte de Gaza evacuassem suas casas em 24 horas, o presidente Isaac Herzog disse que "não havia civis inocentes" ali.

Desde então, Israel bombardeou bairros inteiros, matando mais de 32 mil palestinos, dos quais mais de 13 mil são crianças (os números não incluem pessoas soterradas). Mais de 74 mil foram feridos. Setenta por cento da infraestrutura civil foi destruída ou danificada, deixando muitas áreas inabitáveis. Em novembro, mais de 75% da população de Gaza, cerca de 1,7 milhão de pessoas, havia fugido de suas casas.

O Exército atacou sistematicamente dezenas de instalações de saúde, deixando um em cada três hospitais de Gaza funcionando parcialmente e obrigando médicos a operar em condições extremamente inadequadas sob um fluxo constante de civis feridos, muitos deles crianças. Esse patamar de morte e destruição em um período tão curto não tem precedentes no século 21. A relatora especial da ONU Francesca Albanese concluiu que "há motivos razoáveis para acreditar" que Israel ultrapassou o limiar do genocídio.

Enquanto isso, boa parte das remessas de ajuda continuam bloqueadas. A assistência que chega a Gaza é, como agências da ONU alertaram, "uma mera gota no oceano do que é necessário". Até março, Israel permitiu, em média, 112 caminhões por dia, menos de um quarto do que entrava diariamente nos meses anteriores a 7 de outubro.

Em meados de janeiro, depois que surgiram relatos de que militares israelenses estavam obstruindo o envio de ajuda, Netanyahu insistiu que seu governo permitiria apenas a assistência mínima necessária para evitar uma crise humanitária.

Essas restrições diminuíram severamente a capacidade de distribuição de ajuda, bem como ameaçam a segurança de trabalhadores de organizações humanitárias. Desde outubro, pelo menos 171 funcionários da UNRWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina) foram mortos.

Em várias ocasiões, forças israelenses dispararam contra caminhões da ONU que transportavam provisões em rotas que os próprios militares haviam classificado como seguras. Em outras, tropas israelenses mataram palestinos esperando para receber assistência: no que ficou conhecido como o massacre da farinha, mais de cem pessoas foram mortas. No fim de fevereiro, a UNRWA anunciou ter sido forçada a interromper o socorro ao norte.

Israel não se satisfez em impedir a entrada de alimentos em Gaza. Desde o início da guerra, o país também destruiu mais de um terço das terras agrícolas da faixa, mais de um quinto de suas estufas e um terço de sua infraestrutura de irrigação.

A Forensic Architecture, órgão de pesquisa sediado na Universidade de Londres, afirma que "a destruição de terras agrícolas e da infraestrutura em Gaza é um ato deliberado de ecocídio". Grandes extensões de terra foram arrasadas por soldados para expandir a "zona tampão" no lado de Gaza da fronteira, reduzindo a área do enclave em 16%.

As forças navais israelenses também avariaram ou destruíram cerca de 70% dos barcos de pesca de Gaza. Movidos pela fome, alguns pescadores ainda zarpam em pequenas embarcações; alguns, como relata a associação de pescadores de Gaza, foram atacados e mortos.

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O efeito dessas ações é nítido. Desde dezembro, agências humanitárias alertam que os palestinos de Gaza estão sob o risco de inanição, a forma mais catastrófica de insegurança alimentar. Em um relatório apoiado pela ONU, um comitê de especialistas fez uma previsão sombria em março. "A fome", reportaram, "agora é projetada e iminente" para 70% da população do norte de Gaza —cerca de 210 mil pessoas— e "se espera que se manifeste" até maio.

Ali Jadallah/Anadolu/Getty Images

Crianças aguardando a distribuição de ajuda alimentar na cidade de Deir al-Balah, no centro de Gaza, 29 de fevereiro de 2024

De acordo com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), a desnutrição está se espalhando rapidamente entre as crianças e atingindo níveis sem precedentes. Em 15 de março, no norte de Gaza, uma em cada três crianças com menos de 2 anos estava sofrendo de desnutrição aguda; pelo menos 27 crianças haviam morrido de fome. Segundo a organização, em fevereiro, "a prevalência de desnutrição aguda entre crianças com menos de 5 anos no norte havia aumentado de 13% para até 25%".

Em março, exames realizados pela Unicef na área central de Gaza revelaram que 28% das crianças com menos de 2 anos sofriam de desnutrição aguda; desse grupo, mais de 10% sofriam de desnutrição grave.

Em Rafah, uma suposta zona segura na fronteira sul onde funcionários conseguiram fornecer um nível de ajuda levemente superior, testes mostraram que o número de crianças com menos de 2 anos com desnutrição aguda dobrou de 5% em janeiro para cerca de 10% no final de fevereiro (apesar de seu status, Rafah foi bombardeada várias vezes). Entre o mesmo grupo, a desnutrição grave quadruplicou no último mês, chegando a mais de 4%.

A desnutrição entre mulheres grávidas e lactantes também cresceu rapidamente. Em fevereiro, 95% enfrentavam grave escassez alimentar. Como as mães que sofrem de desnutrição não conseguem produzir leite suficiente para amamentar, mais bebês dependem de leite artificial para sobreviver, mas a fórmula para bebês demanda água limpa, que não está disponível para a maioria delas.

Todo esse sofrimento tem causas humanas e é resultado direto do bloqueio impiedoso de Israel. Como a maioria dos episódios de fome, esse também é o produto de uma história mais longa. Desde 1967, quando ocupou a Faixa de Gaza pela primeira vez, Israel controla a cesta básica palestina, manipulando a ingestão nutricional de seus habitantes e usando a alimentação como arma para controlar a população.

Há décadas, Israel vem danificando sistematicamente a capacidade de Gaza de produzir seus próprios alimentos, diminuindo seu acesso à água potável e à comida de qualidade. Compreender essas políticas de longo prazo é fundamental para entender a fome que se desenrola hoje em Gaza.

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A Faixa de Gaza é uma região plana, estreita e árida. Quando Israel a ocupou, havia pelo menos 385 mil palestinos, dos quais cerca de 70% eram refugiados que tinham fugido ou sido expulsos de suas casas durante a Nakba em 1948. Como um de nós, Neve Gordon, escreveu em 2008, Israel imediatamente "passou a controlar todos os principais serviços públicos, como água e eletricidade, e assumiu os sistemas de saúde, de justiça e de educação".

O país também introduziu uma variedade de mecanismos de vigilância para administrar a população recém-ocupada. As autoridades israelenses contaram televisores, geladeiras, fogões a gás, gado, pomares e tratores; inspecionaram e, muitas vezes, censuraram livros escolares, romances e jornais; realizaram levantamentos detalhados de fábricas de móveis, sabão, tecidos, derivados de oliva e doces; usaram imagens aéreas e de satélite para monitorar a construção de casas, prédios públicos e empresas privadas; e coletaram dados demográficos de toda a região.

Israel examinou as taxas de mortalidade infantil e de crescimento populacional, os níveis de pobreza, a renda per capita e o tamanho e a composição da força de trabalho, bem como prestou grande atenção à escala e ao tipo de indústria no território, à extensão de terra arável, aos tipos de culturas plantadas e à quantidade de aves e gado. Para consolidar seu controle, o país também monitorou a taxa de consumo privado e o valor nutricional da cesta de alimentos palestina.

Os relatórios oficiais resultantes ilustram a velocidade e o grau de vigilância a que Israel sujeitou a sociedade palestina. Surpreendentemente, mostram que no final da década de 1960 e na década de 1970 o governo militar tentou aumentar a ingestão nutricional per capita dos residentes de Gaza. Em um estudo, o Ministério da Agricultura de Israel vangloriou-se de que uma série de intervenções, incluindo programas de formação profissional para agricultores, tinha aumentado o consumo per capita do palestino médio em Gaza de 2.430 calorias por dia em 1966 para 2.719 calorias em 1973. Um relatório diferente observa que em 1968 Israel ajudou os palestinos na Faixa de Gaza a plantar cerca de 618.000 árvores e forneceu aos agricultores variedades melhoradas de sementes para vegetais e culturas agrícolas. Contudo, ao contrário do relatório do Ministério da Agricultura, o principal catalisador para a melhoria do nível de vida da população não foram os subsídios benevolentes de uma força de ocupação, mas sim as remessas que fluíram para a economia de Gaza a partir do início da década de 1970, depois de Israel ter incorporado mais de 30 por cento dos trabalhadores do enclave para os sectores da construção e da agricultura, no interesse de extrair mão-de-obra barata.


Keystone-France/Gamma-Rapho/Getty Images

Agricultores palestinos empregados pela UNESCO, Gaza, 9 de janeiro de 1965

Os Arquivos do Estado de Israel deixam claro que estas iniciativas foram concebidas para normalizar a ocupação e apaziguar a população. Em 1973, muitos dos refugiados em Gaza ainda viviam em campos em condições precárias. Naquele ano, Moshe Dayan, então ministro da Defesa de Israel, propôs transferi-los para “novas cidades, em apartamentos com água nas torneiras, educação e serviços para as crianças”. A lógica era menos humanitária do que estratégica. “Enquanto os refugiados permanecerem nos seus campos”, explicou ele, “os seus filhos dirão que vêm de Jaffa ou Haifa; se saírem dos campos, a esperança é que sintam um apego à sua nova terra.”

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Nos anos que se seguiram à eclosão da primeira Intifada, em dezembro de 1987, limitar o valor nutricional e instaurar a insegurança alimentar entre os palestinos de Gaza se tornaram fundamentais para a estratégia de contrainsurgência de Israel.

As mudanças concretas foram graduais. Em 1989, o país impôs um controle mais rigoroso sobre o fluxo de trabalhadores de Gaza, emitindo cartões magnéticos com informações codificadas sobre o "histórico de segurança" do trabalhador, impostos e contas de água e luz.

Durante a primeira Guerra do Golfo, Israel impôs o que a ONU e organizações de direitos humanos chamam de fechamento hermético da faixa, limitando ainda mais o movimento de pessoas e mercadorias. Em 1994, entre a assinatura do primeiro e do segundo acordos de Oslo, o governo começou a construir uma cerca de 32 quilômetros e uma via para patrulhar as fronteiras de Gaza.

Desde então, apenas cinco passagens conectam as duas regiões, duas das quais operam apenas de Israel para Gaza. Uma sexta, em Rafah, liga Gaza ao Egito. Durante toda a década de 1990, foram impostas restrições ao número de trabalhadores que podiam entrar em Israel e à quantidade e ao tipo de mercadorias que podiam entrar em Gaza. Na mesma época, a linha verde, a fronteira internacionalmente reconhecida entre Israel e os territórios palestinos ocupados, deixou de ser "normalmente aberta" para se tornar "normalmente fechada".

Sergio del Grande/Mondadori/Getty Images

Mulheres palestinas num mercado num campo de refugiados de Gaza, janeiro de 1984

Depois da segunda Intifada, em 2000, o Exército israelense destruiu fazendas, arrasou mais de 10% das terras agrícolas de Gaza e arrancou mais de 226 mil árvores. Por volta dessa época, também consolidou o controle aéreo e marítimo sobre Gaza, bombardeando um aeroporto construído em 1998 e, em 2002, destruindo um porto marítimo. Israel também restringiu as áreas em que os palestinos podiam pescar a uma faixa muito estreita ao longo da costa. Essas práticas, combinadas com restrições cada vez mais severas ao movimento de pessoas e mercadorias, levaram a uma insegurança alimentar substancial. Em 2002, um artigo no British Medical Journal relatou que o número de crianças que sofriam de desnutrição em Gaza havia dobrado em dois anos.

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Enquanto isso, Ariel Sharon reconheceu que não era mais viável enviar centenas de soldados israelenses para proteger os 8.000 colonos judeus no enclave. O primeiro-ministro achava que, ao implementar um "plano de retirada" unilateral, Israel poderia se apresentar como se tivesse desocupado Gaza. Isso, por sua vez, permitiria que o país fortalecesse seus assentamentos na Cisjordânia.

Em 2005, o governo israelense desmantelou os assentamentos ilegais em Gaza e redistribuiu suas tropas para a fronteira. Ao mesmo tempo, intensificou o controle do enclave a distância, construindo bases militares nos arredores, instalando metralhadoras controladas remotamente em torres de vigilância, aumentando o uso de drones e estabelecendo uma zona tampão que consome terras agrícolas e exige que os agricultores se limitem a plantações baixas, presumivelmente para não bloquear a visão dos soldados.

Por volta dessa época, Israel começou a elaborar listas de produtos cuja importação seria vetada em Gaza, impondo restrições severas. Em 2006, um assessor do primeiro-ministro de Israel explicou a política do governo: "A ideia é submeter os palestinos a uma dieta, mas não fazê-los morrer de fome". Apesar de as restrições aumentarem a pobreza e gerarem insegurança alimentar, o governo israelense se isentou de toda a responsabilidade.

Na verdade, o país continuou a exercer suas prerrogativas controlando as fronteiras. Após o Hamas tomar Gaza, em setembro de 2007, Israel impôs formalmente um bloqueio, confinando 1,5 milhão de habitantes. Como parte de suas diretrizes para a implementação do bloqueio, o Gabinete de Segurança de Israel instruiu os militares e outras agências a "reduzir o fornecimento de combustível e eletricidade". Somente bens essenciais para a sobrevivência seriam autorizados.

Israel mal escondeu seus esforços para provocar desnutrição em Gaza. Em texto de dezembro passado, Sara Roy, da Universidade Harvard, cita um telegrama enviado da embaixada dos EUA em Tel Aviv ao secretário de Estado em 2008: "Como parte de seu plano geral de embargo contra Gaza", observa, "as autoridades israelenses confirmaram aos [funcionários da embaixada] em várias ocasiões que pretendem manter a economia de Gaza à beira do colapso, sem levá-la ao limite".

Só tipos básicos de mercadorias foram liberados, principalmente equipamentos médicos, medicamentos e produtos higiênicos e alimentícios essenciais. Os alimentos proibidos incluíam até mesmo algumas frutas —todas caracterizadas por Israel como "itens de luxo".

Em 2008, uma companhia agrícola de Gaza entrou com uma ação na Suprema Corte israelense contestando essa última restrição. O procurador respondeu que o governo havia calculado que os residentes de Gaza precisavam exatamente de 300 bezerros por semana para satisfazer suas necessidades humanitárias. Seguindo sua longa tradição em questões de direitos humanos dos palestinos, o tribunal se recusou a intervir.

Logo depois, a organização de direitos humanos Gisha —para a qual uma de nós, Muna Haddad, trabalhou como advogada— começou o que se tornou uma batalha jurídica de três anos e meio para desclassificar os registros que mostravam que Israel havia elaborado uma série de fórmulas matemáticas para determinar a quantidade e os tipos de alimentos que permitiria a Gaza.

Em 2012, o grupo conseguiu a liberação de um documento do Ministério da Defesa, baseado em um modelo produzido pelo Ministério da Saúde, que inclui tabelas e gráficos que dividem o consumo diário de alimentos por sexo e idade e calculam a ingestão calórica mínima que garantiria uma "nutrição suficiente para a subsistência sem o desenvolvimento de desnutrição".

Gisha

"Slide 7: Energia (calorias) e porção diária de alimentos (em gramas) na Faixa de Gaza de acordo com a escala do Ministério da Saúde - dividida por idade e gênero", uma tabela de uma apresentação sobre o consumo de alimentos na Faixa de Gaza feita pelo Ministério da Defesa de Israel, 1º de janeiro de 2008

O documento partia do princípio que os palestinos em Gaza importariam apenas quantidades limitadas de itens alimentícios básicos como farinha, arroz, óleo, frutas, legumes, carne, peixe, leite em pó e fórmula para bebês, que Israel calculou que poderiam ser entregues em 77 caminhões por dia. Acrescentando remédios, equipamentos médicos e produtos agrícolas e de higiene, o número de caminhões liberados diariamente, em cinco dias por semana, chegava a 106 —mais o equivalente a 70 caminhões semanais de trigo, alcançando 118 remessas diárias.

Esses cálculos pressupunham que os alimentos seriam distribuídos igualmente entre a população, suposição sem precedentes em qualquer cenário histórico ou geográfico. Israel também pressupôs que apenas 10% das necessidades alimentares da população seriam atendidas por frutas e verduras produzidas em Gaza —uma admissão implícita de quão exaustivamente Israel passou a controlar os meios de sobrevivência dos palestinos.

Esses cálculos foram baseados em "tempos normais". Porém, em todos os grandes ciclos de violência —houve cinco desde 2008—, Israel reduziu drasticamente o "mínimo", levando a picos de desnutrição.

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Mais de duas semanas depois do início da guerra de 2008-2009, a Human Rights Watch relatou que "as padarias não haviam recebido farinha de trigo desde o início da operação terrestre, e apenas 9 das 47 padarias de Gaza estavam funcionando". Em agosto daquele ano, o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários documentou que cerca de 75% da população de Gaza estava em situação de insegurança alimentar. Essa guerra, agravada pelo bloqueio israelense, precipitou "uma mudança gradual" na dieta dos moradores de Gaza, de alimentos ricos em proteínas para alimentos de baixo custo e ricos em carboidratos, "o que pode levar a deficiências de micronutrientes, principalmente entre crianças e mulheres grávidas".

Em 2010, o Mavi Marmara —o navio principal de uma flotilha conduzida por ativistas pró-Palestina que transportava 10 mil toneladas de suprimentos— tentou desafiar o bloqueio e entregar ajuda humanitária a Gaza. Forças israelenses atacaram o navio e mataram dez pessoas a bordo, desencadeando indignação generalizada.

Semanas depois, na esperança de melhorar a imagem do país, o Gabinete de Segurança lançou um plano para afrouxar as restrições de entrada de produtos civis em Gaza. Itens como chocolate e brinquedos infantis foram permitidos, mas foi mantida a proibição de milhares de itens de "uso duplo", que poderiam ser usados tanto para fins civis quanto militares.

A lista de itens de "uso duplo" é ampla e vaga e abarca fertilizantes, embalagens plásticas para plantas e bombas de irrigação, bem como materiais necessários para garantir a qualidade da infraestrutura de água e esgoto, que precisa ser reparada a cada nova rodada de ataques.

Em outubro de 2021, o Conselho de Direitos Humanos da ONU foi alertado que os moradores da faixa praticamente não tinham acesso à água limpa:

97% da água de Gaza está contaminada; uma situação agravada substancialmente por uma crise aguda de eletricidade que sufoca a operação de poços e estações de tratamento de esgoto, levando cerca de 80% do esgoto não tratado de Gaza a ser despejado no mar, enquanto 20% se infiltra na água subterrânea.

Os civis palestinos, prossegue o documento, estão "enjaulados em uma favela tóxica desde o nascimento até a morte [...], forçados a testemunhar o lento envenenamento de seus filhos e entes queridos pela água que bebem e, provavelmente, pelo solo em que plantam".

Em outras palavras, bem antes da guerra atual, Israel havia deixado a maioria dos habitantes de Gaza despossuídos e subnutridos. Recém-nascidos tinham sete vezes mais chance de morrer que se tivessem nascido a uma hora de carro de distância, em Berseba ou Tel Aviv. Em 2021, o PIB per capita de Gaza atingiu cerca de US$ 1.050, em comparação com US$ 52,1 mil em Israel.

Não é de surpreender, portanto, que, em 2022, a UNRWA tenha fornecido alimentos para mais de 1,1 milhão de refugiados em Gaza, 14 vezes mais que em 2000. Em dezembro de 2021, a agência informou que 81% dos refugiados do enclave viviam abaixo da linha nacional de pobreza, 85% das famílias compravam restos de comida em mercados e 59% dependiam de auxílio ou tinham que pedir comida a parentes. Mais de três quartos das famílias estavam reduzindo o número de refeições diárias e a quantidade de alimentos em cada refeição.

Desde o início da guerra atual, Israel poderia ter se interessado em levar ajuda aos palestinos, nem que fosse para ocultar a violência que seus militares estão cometendo. Em vez disso, com a aceleração da crise alimentar em Gaza, o governo lançou uma campanha orquestrada para liquidar a UNRWA.

Já em janeiro, como o jornalista Amjad Iraqi recentemente relatou, um subcomitê do Legislativo israelense debatia como lidar com a agência. Ele cita a recomendação de uma pesquisadora: "Será impossível vencer a guerra se não destruirmos a UNRWA, e essa destruição deve começar imediatamente".

Acusando 12 funcionários da agência de envolvimento direto nos ataques de 7 de outubro, Israel solicitou que governos estrangeiros cortassem o financiamento à UNRWA imediatamente. Com 13 mil funcionários em Gaza, a organização é o segundo maior empregador do enclave, depois do governo do Hamas. Além de prestar serviços a mais de 1,78 milhão de refugiados registrados, ela "injeta US$ 600 milhões anualmente na economia de US$ 2 bilhões da faixa ", segundo o Grupo Internacional de Crises.

Desde outubro, grande parte da população de Gaza vive em escolas, unidades de saúde e outros prédios da UNRWA, dependendo da agência não apenas para se sustentar, mas também para ter comida e abrigo para se manter viva. A União Europeia afirmou recentemente que não havia recebido provas concretas de Israel para sustentar as acusações contra funcionários da UNRWA, mas o atual orçamento dos EUA, mesmo assim, suspendeu recursos para a organização.

Em 24 de março, Philippe Lazzarini, comissário-geral da UNRWA, relatou que as autoridades israelenses informaram a agência que "não aprovarão mais nenhum comboio de alimentos da UNRWA para o norte". Em entrevista à Al Jazeera, Sam Rose, diretor de planejamento da organização, enfatizou que a decisão teria implicações dramáticas: "Simplesmente mais pessoas morrerão".

Como se isso não bastasse, nos últimos meses, manifestantes israelenses liderados por colonos da Cisjordânia, visivelmente não satisfeitos com a devastação já causada pelo país, resolveram bloquear a entrega de ajuda na passagem de Kerem Shalom. A cada novo acontecimento, só podemos nos perguntar o que mais Israel pretende fazer para aniquilar a população de Gaza e tornar a recuperação da região impossível.

Neve Gordon
Professor de direito internacional e direitos humanos na Universidade Queen Mary de Londres. Autor, entre outros livros, de "Israel's Occupation" e "Human Shields: a History of People in the Line of Fire" (em coautoria com Nicola Perugini)

Muna Haddad
Advogada com atuação em direitos humanos e doutoranda na Universidade Queen Mary de Londres

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