Olivia Arigho-Stiles
Organizações sociais participam do comício político de apoio ao presidente da Bolívia, Luis Arce, em El Alto, Bolívia, no dia 17 de outubro de 2023. (Mateo Romay Salinas / Anadolu via Getty Images) |
Tradução / Juntamente com as movimentadas festas de rua do carnaval, as tradicionais cerimônias de ch’alla foram realizadas em toda a Bolívia no final de fevereiro. Durante esse período, queima-se incenso e bênçãos de folhas de coca e álcool são oferecidas à Pachamama em rituais que afirmam os laços de reciprocidade entre as pessoas e a Mãe Terra. Mas hoje, além do inoportuno chaki (ressaca) festivo, o aprofundamento da crise política e social aumenta a dor de cabeça dos movimentos de esquerda e progressistas na Bolívia.
Desde que o Movimento Ao Socialismo (MAS) regressou ao poder em 2020 liderado por Luis Arce, o ex-presidente Evo Morales organizava a sua base de apoio com a esperança de voltar a ser presidente. Mas em Dezembro do ano passado, o Tribunal Constitucional Plurinacional da Bolívia decidiu que os presidentes só podem permanecer no poder por, no máximo, dois mandatos e que a reeleição indefinida “não é um direito humano”. A decisão foi um golpe catastrófico nas ambições presidenciais de Evo.
Desde então, Morales acusa Arce, seu antigo ministro da Economia e aliado próximo, de orquestrar uma tentativa de ilegalizar o seu possível retorno à presidência, declarando no X (antigo Twitter) que um "golpe judicial" está em curso.
Luta eleitoral
Para forçar eleições no Poder Judiciário (que segundo a Constituição plurinacional deveriam ter sido realizadas em dezembro), no final de janeiro Evo Morales mobilizou suas bases no coração cocaleiro de Cochabamba, promovendo bloqueios nas estradas que ligam aquela cidade com o centro empresarial de Santa Cruz. Os bloqueios, que combinam a exigência de eleições judiciais com outras reivindicações locais, causaram escassez de alimentos e combustíveis e foram reprimidos pelas forças de segurança.
Huáscar Salazar, economista e membro do Centro de Estudos Populares da Bolívia, afirma que há pouca esperança de conciliação entre os dois lados. “O que vivemos neste momento é aquela queda de braço, em que Evo e Arce disputam a sigla do Movimento Ao Socialismo e, sobretudo, a candidatura à presidência do partido para 2025”.
E acrescenta: “O problema é que esta luta traz grandes consequências para as organizações de base, cada vez mais divididas em suas estruturas internas; mas também é um problema que esta disputa ocorra em meio a uma crise econômica cada vez mais palpável, da qual ninguém quer assumir o controle”. O aumento dramático dos bloqueios neste mês, bem como sua distribuição geográfica, pode ser visto num infográfico preparado por Mauricio Fonda, um ativista de dados abertos que vive na Bolívia.
Na Assembleia Legislativa Plurinacional, os parlamentares eleitos do MAS se dividem entre as linhas arcista e evista. As eleições para o Poder Judiciário que deveriam ter sido realizadas no ano passado foram paralisadas devido a divergências sobre os candidatos selecionados pela Assembleia Legislativa, dominada pelo MAS. Na Bolívia, os juízes do Supremo Tribunal, do Tribunal Constitucional, do Tribunal Agroambiental e do Conselho Judicial são eleitos por sufrágio direto a cada seis anos.
Neste cenário, quem ganha são os arcistas , porque a atual composição do Tribunal Constitucional Plurinacional tem favorecido seus interesses, como aconteceu com a recente decisão sobre a eleição de Morales. E o mandato de Arce como presidente lhe confere muito mais influência sobre as instituições do Estado, que utilizou em seu benefício.
A reeleição de Morales tem sido uma questão não resolvida desde 2017 e esteve no centro do golpe de 2019. A Constituição proíbe qualquer pessoa de ocupar a presidência por mais de dois mandatos consecutivos. Em 2016, Morales perdeu por pouco um referendo que teria derrubado o dispositivo constitucional e lhe permitiria concorrer novamente. Em seguida, levou a decisão ao Tribunal Constitucional Plurinacional, que lhe foi favorável e decidiu que a reeleição era um direito humano, anulando o referendo.
Para forçar eleições no Poder Judiciário (que segundo a Constituição plurinacional deveriam ter sido realizadas em dezembro), no final de janeiro Evo Morales mobilizou suas bases no coração cocaleiro de Cochabamba, promovendo bloqueios nas estradas que ligam aquela cidade com o centro empresarial de Santa Cruz. Os bloqueios, que combinam a exigência de eleições judiciais com outras reivindicações locais, causaram escassez de alimentos e combustíveis e foram reprimidos pelas forças de segurança.
Huáscar Salazar, economista e membro do Centro de Estudos Populares da Bolívia, afirma que há pouca esperança de conciliação entre os dois lados. “O que vivemos neste momento é aquela queda de braço, em que Evo e Arce disputam a sigla do Movimento Ao Socialismo e, sobretudo, a candidatura à presidência do partido para 2025”.
E acrescenta: “O problema é que esta luta traz grandes consequências para as organizações de base, cada vez mais divididas em suas estruturas internas; mas também é um problema que esta disputa ocorra em meio a uma crise econômica cada vez mais palpável, da qual ninguém quer assumir o controle”. O aumento dramático dos bloqueios neste mês, bem como sua distribuição geográfica, pode ser visto num infográfico preparado por Mauricio Fonda, um ativista de dados abertos que vive na Bolívia.
Na Assembleia Legislativa Plurinacional, os parlamentares eleitos do MAS se dividem entre as linhas arcista e evista. As eleições para o Poder Judiciário que deveriam ter sido realizadas no ano passado foram paralisadas devido a divergências sobre os candidatos selecionados pela Assembleia Legislativa, dominada pelo MAS. Na Bolívia, os juízes do Supremo Tribunal, do Tribunal Constitucional, do Tribunal Agroambiental e do Conselho Judicial são eleitos por sufrágio direto a cada seis anos.
Neste cenário, quem ganha são os arcistas , porque a atual composição do Tribunal Constitucional Plurinacional tem favorecido seus interesses, como aconteceu com a recente decisão sobre a eleição de Morales. E o mandato de Arce como presidente lhe confere muito mais influência sobre as instituições do Estado, que utilizou em seu benefício.
A reeleição de Morales tem sido uma questão não resolvida desde 2017 e esteve no centro do golpe de 2019. A Constituição proíbe qualquer pessoa de ocupar a presidência por mais de dois mandatos consecutivos. Em 2016, Morales perdeu por pouco um referendo que teria derrubado o dispositivo constitucional e lhe permitiria concorrer novamente. Em seguida, levou a decisão ao Tribunal Constitucional Plurinacional, que lhe foi favorável e decidiu que a reeleição era um direito humano, anulando o referendo.
Muitos bolivianos consideraram isto uma farsa legal e antidemocrática, o que foi um importante fator na mobilização das classes médias urbanas e dos movimentos sociais de oposição contra Evo em Outubro de 2019, quando um golpe de estado permitiu que a evangélica de extrema-direita Jeanine Áñez assumisse a presidência de fato.
Com o apoio de Morales, Arce foi eleito presidente em outubro de 2020, depois das eleições terem sido finalmente realizadas, um ano após o golpe. O atual conflito entre arcistas e evistas é uma disputa pelo controle do próprio MAS, que nas últimas duas décadas consolidou um projeto governamental duradouro.
Antagonismos sociais e o MAS
Os recentes bloqueios são um indicador de que Evo Morales ainda consegue mobilizar uma base ampla e motivada. Os bloqueios têm uma história longa e eficaz na Bolívia e são um elemento da maioria dos conflitos sociais. Em 1999, durante a Guerra da Água em Cochabamba, uma coligação de agricultores, operários fabris e ativistas comunitários se uniu para bloquear estradas em resposta a uma nova lei neoliberal que teria privatizado a água.
Da mesma forma, após o violento golpe de Estado de Luis García Meza em 1980, os camponeses bloquearam as estradas para impedir o avanço dos militares pelo campo, atraindo uma forte repressão. Mais recentemente, em 2019, movimentos de mineiros e camponeses bloquearam estradas fora das cidades para forçar Áñez a convocar eleições depois de quase um ano de um governo golpista caracterizado por fraude, corrupção e massacres.
Os bloqueios surgem de uma facção do MAS. É importante notar que o MAS não é um partido político ortodoxo, mas sim uma coligação mutável de forças sociais diferentes e por vezes antagônicas na base. A refundação da Bolívia como um estado “plurinacional” em 2009 foi vista como um reflexo dos seus elementos sociais plurais, um remédio para o que o intelectual marxista boliviano René Zavaleta Mercado chamou de “sociedad abigarrada” (“sociedade variada”), composta por diferentes modos de produção, temporalidades históricas e formas de governo dentro dos limites de um Estado-nação (colonial).
Mas, na última década, as divisões no MAS desempenharam um papel destrutivo nos movimentos de mineiros cooperativistas, produtores de coca, camponeses e trabalhadores urbanos, que são fragmentados e muitas vezes possuem lideranças paralelas.
Uma crise econômica iminente
Um desses movimentos é a poderosa confederação sindical camponesa, a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), cujas lealdades estão divididas. Os apoiadores de Morales, como o atual líder Ponciano Santos, prometeram retomar os bloqueios se a sua exigência de eleições judiciais não for atendida. Santos foi eleito no ano passado em pleno congresso nacional da CSUTCB que terminou em brigas e cadeiradas entre evistas e arcistas, e muitos elementos da confederação não reconhecem a sua autoridade.
No ano passado, durante o congresso do MAS, Arce e seu vice-presidente, David Choquehuanca, foram expulsos do partido.
E ao lado dos problemas políticos de Arce está a sombria perspectiva econômica da Bolívia. Desde o ano passado houve uma grave escassez de dólares e o peso boliviano se desvalorizou. Como aponta o economista Stasiek Czaplicki Cabezas , a desvalorização representa uma queda de 20% no valor da poupança em moeda local, o que representa um futuro de insegurança financeira para muitos bolivianos, especialmente das classes médias. Tudo isto aumenta a pressão contra Arce, o economista formado na Universidade de Warwick que foi forçado a defender suas credenciais econômicas.
Com o apoio de Morales, Arce foi eleito presidente em outubro de 2020, depois das eleições terem sido finalmente realizadas, um ano após o golpe. O atual conflito entre arcistas e evistas é uma disputa pelo controle do próprio MAS, que nas últimas duas décadas consolidou um projeto governamental duradouro.
Antagonismos sociais e o MAS
Os recentes bloqueios são um indicador de que Evo Morales ainda consegue mobilizar uma base ampla e motivada. Os bloqueios têm uma história longa e eficaz na Bolívia e são um elemento da maioria dos conflitos sociais. Em 1999, durante a Guerra da Água em Cochabamba, uma coligação de agricultores, operários fabris e ativistas comunitários se uniu para bloquear estradas em resposta a uma nova lei neoliberal que teria privatizado a água.
Da mesma forma, após o violento golpe de Estado de Luis García Meza em 1980, os camponeses bloquearam as estradas para impedir o avanço dos militares pelo campo, atraindo uma forte repressão. Mais recentemente, em 2019, movimentos de mineiros e camponeses bloquearam estradas fora das cidades para forçar Áñez a convocar eleições depois de quase um ano de um governo golpista caracterizado por fraude, corrupção e massacres.
Os bloqueios surgem de uma facção do MAS. É importante notar que o MAS não é um partido político ortodoxo, mas sim uma coligação mutável de forças sociais diferentes e por vezes antagônicas na base. A refundação da Bolívia como um estado “plurinacional” em 2009 foi vista como um reflexo dos seus elementos sociais plurais, um remédio para o que o intelectual marxista boliviano René Zavaleta Mercado chamou de “sociedad abigarrada” (“sociedade variada”), composta por diferentes modos de produção, temporalidades históricas e formas de governo dentro dos limites de um Estado-nação (colonial).
Mas, na última década, as divisões no MAS desempenharam um papel destrutivo nos movimentos de mineiros cooperativistas, produtores de coca, camponeses e trabalhadores urbanos, que são fragmentados e muitas vezes possuem lideranças paralelas.
Uma crise econômica iminente
Um desses movimentos é a poderosa confederação sindical camponesa, a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB), cujas lealdades estão divididas. Os apoiadores de Morales, como o atual líder Ponciano Santos, prometeram retomar os bloqueios se a sua exigência de eleições judiciais não for atendida. Santos foi eleito no ano passado em pleno congresso nacional da CSUTCB que terminou em brigas e cadeiradas entre evistas e arcistas, e muitos elementos da confederação não reconhecem a sua autoridade.
No ano passado, durante o congresso do MAS, Arce e seu vice-presidente, David Choquehuanca, foram expulsos do partido.
E ao lado dos problemas políticos de Arce está a sombria perspectiva econômica da Bolívia. Desde o ano passado houve uma grave escassez de dólares e o peso boliviano se desvalorizou. Como aponta o economista Stasiek Czaplicki Cabezas , a desvalorização representa uma queda de 20% no valor da poupança em moeda local, o que representa um futuro de insegurança financeira para muitos bolivianos, especialmente das classes médias. Tudo isto aumenta a pressão contra Arce, o economista formado na Universidade de Warwick que foi forçado a defender suas credenciais econômicas.
Os candidatos presidenciais para as eleições de 2025 devem ser decididos este ano, o que levou ambas as tendências a intensificar a pressão para dirigir de forma abrangente o MAS. Mas o conflito prolongado espalha sua toxicidade pelos movimentos sociais da Bolívia, dividindo as bases. Entretanto, as disputas sobre as eleições judiciais corroem a confiança pública nos órgãos democráticos do Estado, minando a legitimidade de qualquer lado que saia vitorioso. Em 2024, a política boliviana está mais polarizada do que nunca.
Colaborador
Olivia Arigho Stiles é professora de estudos latino-americanos na Universidade de Essex, no Reino Unido, e pesquisadora dos movimentos indígenas-camponeses bolivianos.
Colaborador
Olivia Arigho Stiles é professora de estudos latino-americanos na Universidade de Essex, no Reino Unido, e pesquisadora dos movimentos indígenas-camponeses bolivianos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário