1 de julho de 2025

O projeto comunitário da Venezuela

Ángel Prado, fundador da Comuna de El Maizal e Ministro das Comunas desde 2024, discute o projeto comunal da Venezuela como uma resposta às necessidades materiais urgentes e uma estratégia de longo prazo para a construção do socialismo. Com base em sua experiência como organizador de base, ele explora como as comunas são estruturadas, como se relacionam com o Estado e como incorporam uma visão de poder popular. Ele também reflete sobre a necessidade de unidade dentro do movimento chavista.

Ángel Prado

Monthly Review

Volume 77, Number 03 (July-August 2025)

Ángel Prado é um dos fundadores da Comuna de El Maizal, no centro-oeste da Venezuela, e um dos principais líderes da União Comunarda, organização que reúne cerca de oitenta comunas. Desde junho de 2024, Prado é Ministro das Comunas. Nesse cargo, ele concilia o trabalho incansável de promoção da organização comunal em todo o país com a participação ativa nos assuntos de Estado. Nesta entrevista, o ministro comunarda analisa inicialmente como as comunas venezuelanas são estruturadas e como se relacionam com o Estado. Prado também reflete sobre os desafios que as comunas enfrentam hoje, a importância da unidade no chavismo e os planos de incorporar as comunas a uma reforma da Constituição venezuelana. Ao longo do texto, Prado destaca a comuna tanto como uma solução prática para as necessidades imediatas da comunidade quanto como parte de um projeto estratégico de libertação nacional e construção socialista.

— Cira Pascual Marquina

Cira Pascual Marquina

Vamos começar com a pergunta mais básica: O que é uma comuna venezuelana?

Ángel Prado

Primeiramente, gostaria de expressar minha gratidão pelo interesse dos leitores em compreender a transformação política que está ocorrendo na Venezuela e também como a comuna — de acordo com o roteiro traçado pelo Comandante [Hugo] Chávez — serve como um caminho para a construção do socialismo.

Uma comuna é uma organização de base dentro de um território específico, onde o autogoverno é estabelecido com uma estrutura política que legisla, administra recursos e gerencia seus próprios meios de produção.

Em uma comuna, existem muitos níveis de organização popular. Há o parlamento comunal, o banco comunal e vários comitês, da economia aos esportes. Na base da comuna estão os conselhos comunais, que são as células organizacionais fundamentais.

O processo de assembleia está no coração da comuna — é a vida e a alma de nossas organizações. A assembleia é o órgão máximo decisório da comuna: qualquer pessoa no território da comuna pode participar, falar, exigir, questionar, votar e supervisionar os processos. A assembleia tem a palavra final sobre todos os assuntos relativos à comuna.

As comunas também dão grande importância ao simbolismo e à identidade, ao estabelecer normas de coexistência e desenvolver planos que solucionem os problemas da comunidade. A vida comunitária é moldada por esses processos, fomentando gradualmente o que chamamos de "espírito da comuna", um espírito coletivo baseado na identidade e no trabalho em conjunto.

Cira Pascual Marquina

Não é também verdade que, segundo Chávez, as comunas devem promover novas relações sociais de produção?

Ángel Prado

Sim, a comuna se concentra no território e na identidade, mas também na organização econômica. Ela mobiliza e reúne a força coletiva das pessoas para resolver problemas e melhorar as condições materiais de vida. Isso significa gerar processos econômicos autogeridos. Por meio do planejamento e da força de trabalho da comunidade, a comuna constrói o que chamamos de economia popular e comunitária. As pessoas precisam de serviços, alimentos e outros bens, e grande parte disso pode ser produzida internamente. Em tudo isso, o planejamento comunitário é fundamental.

Há também um debate em andamento nas comunas sobre propriedade e posse, que abrange desde a propriedade comunal coletiva até a propriedade pública, familiar e privada. Uma comuna almeja que a propriedade comunal e coletiva seja hegemônica em seu território, mas isso ainda é um trabalho em andamento. É por isso que há uma luta pelo controle dos meios de produção — terra, fábricas e todos os recursos essenciais para o desenvolvimento das forças produtivas nas comunas. Outra questão discutida é a distribuição e o reinvestimento do excedente. É necessário equilibrar o investimento social com o reinvestimento produtivo.

Cira Pascual Marquina

Em um país sitiado pelas sanções americanas, as comunas mais fortes trabalharam para atender às necessidades urgentes de suas comunidades. Em muitos casos, elas tiveram muito sucesso em neutralizar alguns dos efeitos do bloqueio.

Ángel Prado

Em uma comuna, é essencial identificar os valores e princípios que moldam a vida comunitária. As pessoas veem a comuna como o nível de governo mais próximo em sua comunidade. É a instituição mais imediata à qual recorrem para resolver seus problemas.

Vimos isso claramente durante a pandemia. Comunidades organizadas trabalharam ao lado de profissionais de saúde locais, motoboys voluntários e outros membros da comunidade que, em espírito de solidariedade, assumiram a tarefa de obter medicamentos, realizaram campanhas de vacinação e garantiram que as pessoas não ficassem sem atendimento. Os porta-vozes comunitários eleitos tiveram um papel importante nisso, demonstrando liderança e preocupação genuína com as pessoas em suas comunas. A comuna forneceu uma estrutura e, em meio à crise, as pessoas sabiam que podiam recorrer aos líderes comunitários em busca de apoio.

Apesar do bloqueio, da pandemia e da crise econômica, não há um único bairro na Venezuela sem algum nível de organização popular. Em muitos lugares, existem comunas autogovernadas que se envolvem no planejamento e na execução de iniciativas de ajuda mútua. As comunas também mantêm dados detalhados sobre suas comunidades, ajudando-as a compreender e atender melhor às necessidades do pueblo.

Cira Pascual Marquina

Hoje, o movimento comunal e o governo bolivariano parecem ter uma relação sinérgica, enquanto há apenas cinco anos havia momentos de acentuada tensão e contradição. O que permitiu essa convergência?

Ángel Prado

Após a saída física do Comandante Chávez, as contradições cresceram não apenas dentro do chavismo, mas também em relação à burguesia nacional e ao imperialismo norte-americano, que ameaça constantemente os países que afirmam sua soberania.

Vimos recentemente o que aconteceu na Síria. Serviu de alerta para o povo venezuelano, que é em grande parte anti-imperialista. Nosso momento histórico exige unidade. O chavismo é diverso, assim como o peronismo na Argentina, com várias correntes ideológicas. No entanto, na Venezuela, qualquer político que se autodenomine chavista, mas não esteja enraizado na comunidade e não tenha reconhecimento da base, não contribui em nada para a frente nacional contra o imperialismo — e o povo sabe disso.

É claro o que acontece quando governos progressistas e anti-imperialistas são derrubados — massacres, repressão e devastação. É por isso que a unidade é essencial. Sempre haverá debates internos. No entanto, no movimento de massas, lutamos para fortalecer as comunas, para garantir que se tornem mais organizadas, mais robustas e uma verdadeira expressão da autogovernança popular.

Hoje, existe uma forte sinergia entre os líderes governamentais e o movimento comunal. Há uma clara disposição do governo em reconhecer e apoiar as comunas. É claro que sempre teremos reformistas e oportunistas que não acreditam na comuna e se escondem nas fileiras do chavismo para sabotar essa unidade. No entanto, nossa luta anti-imperialista nos mantém unidos, permitindo-nos dar o exemplo para outros países e povos que resistem ao imperialismo em todo o mundo.

Cira Pascual Marquina

Durante o período mais difícil do bloqueio e da crise, as comunas se fortaleceram. Mesmo assim, muitas pessoas buscaram soluções individuais em vez de coletivas para seus problemas. Isso continua até hoje. Qual é a maneira correta de interagir com aqueles que não conseguem se conectar com o projeto comunitário?

Ángel Prado

Há baixas em qualquer guerra. Na Venezuela, estamos enfrentando uma guerra econômica que já dura quase uma década. É uma guerra brutal, projetada para desmoralizar e desmantelar a sociedade venezuelana e forçar as pessoas a buscar táticas individuais de sobrevivência. De fato, alguns se retiraram da ação coletiva, concentrando-se apenas em suas necessidades imediatas e nas de suas famílias, afastando-se temporariamente da participação popular.

Mas aqueles que se mantiveram firmes — aqueles que permaneceram na luta — são muitos. Apesar das dificuldades, em cada bairro e em cada comunidade rural, uma vanguarda revolucionária permaneceu ativa. Eles se mantiveram firmes, resistindo, liderando e mantendo acesa a chama da organização popular.

É por isso que hoje a revolução venezuelana avança novamente. Os anos mais difíceis — de 2016 a 2021 — já passaram. O país desenvolveu novas capacidades econômicas, às vezes acompanhadas por decisões políticas difíceis que alguns de nós questionamos, mas que acabaram impedindo a guerra civil e a intervenção dos EUA.

Essa resistência nos fortaleceu. Apesar das feridas, permanecemos moral e politicamente resilientes. Milhões de líderes de base, em sua maioria mulheres, demonstraram que defender a comunidade é a forma mais elevada de liderança.

As comunas que surgiram ou ressurgiram nos anos mais difíceis tornaram-se ainda mais robustas, controlando as economias de base, promovendo a educação política e organizando a juventude.

Cira Pascual Marquina

Um bom exemplo de estreita cooperação entre o governo e as comunas são as consultas populares que começaram em maio de 2024. Você poderia explicar como elas funcionam? Como o processo de consulta transfere poder para as comunas?

Ángel Prado

Os processos de consulta popular tornaram-se um canal importante entre o governo e as comunas neste momento. O primeiro passo consiste em assembleias realizadas em todas as comunas e circuitos comunais [essencialmente comunas que ainda não foram consolidadas] em todo o país. Nessas assembleias, as pessoas se reúnem para debater e priorizar os problemas mais urgentes. Em seguida, ocorre um processo de votação nacional, no qual os membros de cada comuna selecionam um único projeto entre aqueles que as assembleias identificaram como necessários.

Após o processo de votação, os fundos são alocados a cada comuna ou circuito comunal, que então se responsabiliza por levar o projeto até a conclusão. Por enquanto, o financiamento é limitado [US$ 10.000 por consulta], mas o presidente indicou que os governos municipais e regionais também devem financiar projetos comunais.

Dessa forma, cada projeto resulta de um processo de planejamento interno à comunidade. As pessoas adotaram essa nova prática. Ela reconquistou muitos que haviam se afastado da participação comunitária e restaurou a fé nos conselhos e comunas comunitários. Agora, todos podem ver como as comunas podem, de fato, resolver problemas coletivos.

O resultado é que a confiança nas estruturas comunitárias está sendo restaurada. Há quase um ano, consultas populares são realizadas a cada três meses, e a participação cresce a cada novo ciclo. As pessoas passaram a confiar nesse método.

As consultas se conectam com as aspirações dos trabalhadores. Esse processo empodera as comunidades e fortalece sua identificação com a comuna. Nossa tarefa agora é consolidar ainda mais as comunas para que a visão do Comandante Chávez – de que o povo realmente se autogoverne e assuma a liderança nas grandes transformações que virão – se torne realidade. O povo organizado deve se tornar protagonista na recuperação da infraestrutura de saúde e educação, na melhoria dos espaços públicos e, acima de tudo, assumir o planejamento, a gestão, a execução e a supervisão dos projetos.

Em suma, as consultas são tanto um processo de empoderamento quanto uma experiência de aprendizado. As comunidades estão trabalhando arduamente para evitar contratempos, garantindo ao mesmo tempo que os recursos recebidos sejam administrados com eficiência. A luta contra a burocracia e a corrupção é constante, mas quando o próprio povo controla esses fundos e trabalha coletivamente para protegê-los, esse é o melhor antídoto.

Com as consultas populares, estamos garantindo a participação real na democracia venezuelana: provando que um povo organizado pode alcançar mais do que qualquer instituição estatal sozinha.

Cira Pascual Marquina

Uma reforma constitucional está planejada para este ano, e muitos têm argumentado que a comuna deveria ter um papel de destaque na Carta Nacional atualizada. A possibilidade de incluir a comuna na Constituição Bolivariana levanta muitas questões sobre a relação da comuna com o Estado. Como o senhor entende essa relação?

Ángel Prado

Ao elaborar a Constituição Bolivariana de 1999, o povo venezuelano deu um passo importante em direção à democracia participativa. Essa Constituição estabeleceu marcos legais para que as pessoas se organizassem de diversas maneiras: em fábricas, universidades e sindicatos, bem como territorialmente. Isso por si só já foi uma grande conquista. No entanto, não conseguimos a aprovação de uma reforma constitucional de 2007 que reconheceria explicitamente as organizações comunitárias e de base na Constituição.

Em um discurso de 2012, popularmente conhecido como "Golpe de Timón" ["Golpe no Leme"], o Comandante Chávez desafiou seus ministros. "Onde está a comuna?", perguntou-lhes. Hoje, o povo venezuelano pode responder: “A comuna está aqui, no território. Ela está organizada, funcionando e lutando.”

No entanto, ainda queremos que a comuna seja explicitamente reconhecida na Constituição; esse continua sendo um dos nossos maiores desafios no momento. É por isso que estamos trabalhando arduamente, tanto nas comunas quanto no Ministério [das Comunas], para ganhar ainda mais legitimidade e confiança, a fim de construir um amplo consenso em apoio à inclusão da comuna no texto constitucional.

O debate vai além da questão do reconhecimento. Não se trata apenas de incluir a comuna na Constituição. Também estamos pensando em como a comuna deve se relacionar com o Estado venezuelano. Hoje, o governo reconhece a comuna como uma organização de base, mas precisamos que ela exista em pé de igualdade com outras instituições e estruturas de governança.

Mantemos nosso lema, “¡Comuna o Nada!” [“Comuna ou Nada!”], que agora não é apenas palavras, mas uma realidade no território. Hoje, as comunas são as estruturas organizacionais mais tangíveis e imediatas, tanto nas áreas urbanas quanto rurais. Tudo isso é muito importante, mas queremos constitucionalizar essa expressão vital do poder popular. Mesmo aqueles que podem não concordar plenamente com o governo ou a revolução reconhecem a legitimidade da comuna. Eles o fazem porque veem como a comunidade organizada está resolvendo seus próprios problemas.

A maioria dos venezuelanos vive em comunidades da classe trabalhadora e precisa do apoio do Estado para atender às suas necessidades. Assim como os municípios e os governos estaduais têm o direito constitucional de receber financiamento, exigimos que as comunas tenham o mesmo direito — um direito que não depende da vontade política de um determinado prefeito, governador ou ministro, mas sim que seja garantido pela Constituição. Deve ser um dever constitucional do Estado venezuelano garantir o acesso a esses fundos.

Nossos debates sobre a Constituição estão apenas começando, mas chegaremos a uma decisão este ano. Há amplo consenso de que um dos nossos principais objetivos deve ser garantir que o termo "comuna" seja incorporado e reconhecido na Constituição. No entanto, é igualmente importante definir a relação das comunas com o Estado e garantir o seu acesso ao financiamento.

Cira Pascual Marquina

Você tem alguma reflexão final sobre Chávez, a comuna e o socialismo?

Ángel Prado

Nas últimas três décadas, a Venezuela tem se empenhado em uma luta total contra as forças do imperialismo que saquearam nosso país por séculos. Como disse o Comandante Chávez: "É hora de defender as causas da dignidade e da verdadeira libertação, de erguer as bandeiras da independência e da autodeterminação".

Diante do ataque imperialista, não podemos ser conservadores em relação ao nosso modelo político. Não podemos copiar seu modelo de falsa democracia. Neste momento, na região do Sahel, vários países se rebelaram contra as corporações transnacionais e as estruturas neocoloniais, expulsando bases militares e abrindo caminho para a soberania. Sua luta nos inspira, lembrando o exemplo de Chávez, que também lutou pela soberania nacional.

Devemos continuar a batalha iniciada por Chávez, uma luta que se intensificou e se polarizou. A escolha diante de nós é clara: ou avançamos na construção do socialismo, construindo uma democracia participativa e protagonista, defendendo nossos recursos naturais; ou corremos o risco de nos tornarmos mais um Estado reformista com um governo supostamente progressista que não transforma as estruturas estatais existentes. Se não avançarmos com nosso próprio modelo político — aquele proposto pela Revolução Bolivariana e por Chávez — o imperialismo nos destruirá. Se não desmantelarmos as estruturas que nos impuseram, destruirão tudo o que construímos.

Estamos vendo isso acontecer na Argentina, onde governos progressistas tiraram o país da ruína econômica, mas não conseguiram transformar as bases da política. Mantiveram a antiga Constituição, preservaram as estruturas tradicionais de governança e nunca transferiram o poder ao povo por meio de organizações de base. Como resultado, foram derrubados. Infelizmente, hoje, o FMI e as corporações imperialistas estão saqueando o que já foi uma das nações mais ricas da América Latina, enquanto a pobreza aumenta a um ritmo alarmante.

A Venezuela está comprometida em transformar o Estado, construir uma nova sociedade, construir uma democracia verdadeira e preservar a independência nacional. Também estamos comprometidos em construir o socialismo... e as pessoas estão impulsionando isso adiante!

Ángel Prado é membro da Comuna de El Maizal e Ministro das Comunas de Nicolás Maduro desde 2024. Prado também é fundador da União Comunarda, uma organização que reúne comunas em toda a Venezuela. Entre 2022 e 2024, foi prefeito do município de Simón Planas, onde está localizada a Comuna de El Maizal. Cira Pascual Marquina é educadora popular na Pluriversidad, iniciativa educacional da Comuna de El Maizal no bairro operário 23 de Enero, em Caracas. Ela também é fundadora e membro da Rede de Democracia Comunal.

Esta entrevista foi realizada em Caracas em 11 de março de 2025.

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