18 de março de 2025

Ruptura é uma denúncia do inferno que é o ambiente de trabalho

Ruptura, a série distópica sobre o ambiente de trabalho da Apple, chegou à sua segunda temporada como um verdadeiro fenômeno da cultura pop. Vendo sua brutal sátira da estrutura corporativa, é fácil entender o porquê.

Eileen Jones

Jacobin

Tramell Tillman e Britt Lower na 2ª temporada de Ruptura. (Apple TV+)

Tradução / Ruptura é provavelmente a melhor série contemporânea. E só digo “provavelmente” porque não consigo assistir a todas as outras para efeito de comparação.

Já existe uma reação negativa na internet começando a se desenvolver entre os aspirantes a hipsters? Claro. Deve seguir como a noite segue o dia, como disse Shakespeare, a reação negativa que segue qualquer coisa boa que se populariza. Ignore. Há episódios mais fortes e mais fracos, como em todas as séries, mas, no geral, o nível de excelência é impressionante.

Em sua segunda temporada na Apple TV+, com o episódio final disponibilizado em 21 de março, Ruptura continua a impressionar. O procedimento eletivo de “ruptura” da série envolve uma operação no cérebro que separa a consciência do “trabalho” da vida pessoal do indivíduo, de modo que nenhuma das partes saiba mais sobre a outra. Em teoria, isso permite que as pessoas aproveitem suas vidas sem se dar conta de suas horas de trabalho, enquanto seus eus profissionais estão mentalmente lúcidos para se concentrar em suas tarefas. Na realidade, os trabalhadores são trabalhadores prisionais em ambientes excepcionalmente elegantes, psicologicamente torturados para se manterem na linha.

Criada por Dan Erickson, cujo próprio sofrimento em empregos corporativos inspirou a série, e produzida e dirigida principalmente por Ben Stiller, esta combinação de ficção científica, que mistura suspense paranoico e comédia sombria de escritório, é tão bem executada que a desolação de seu tema é compensada pelo vigor de seu estilo e construção. O filme noir de meados do século alcançou o mesmo efeito, apresentando consistentemente uma visão do inferno estadunidense moderno com tanta verve que se tornou um prazer perverso contemplar uma representação tão arrepiante e pertinente do abismo.

A popularidade da série explodiu repentinamente após o lançamento da 2ª temporada, com números recordes de audiência — de modo que agora é o programa mais visto na história do Apple TV+, superando até mesmo a cultuada comédia Ted Lasso.

Parece que as pessoas estão até começando a usar gírias baseadas em Ruptura, referindo-se prontamente aos seus eus “Interno” e “Externo”.

Tornou-se um fenômeno cultural tão grande que Ross Douthat, um colunista do New York Times, sentiu a necessidade de lidar com a popularidade da série e escreveu um artigo intitulado “Do que se trata ‘Ruptura’?”. Ele realmente pensa nisso ao longo dos parágrafos, ponderando, por exemplo, se a série se tornará essencialmente anticlimática e sem sentido após um longo acúmulo de pistas falsas, com base em um paralelo que ele percebe entre a inexplicável sala de criação de cabras na sinistra empresa de biotecnologia Lumon Industries e as aparições periódicas do urso polar em Lost.

Mas então, é natural que Douthat, sendo conservador, não reconhecesse que uma série perspicaz sobre uma distopia no ambiente de trabalho corporativo pudesse ser tão atraente para tantas pessoas. Preocupar-se com condições de trabalho infernais é geralmente uma atitude de esquerda. Mas mesmo depois de décadas de representações cinematográficas e televisivas de corporações malignas, chefes vilões e cenários de trabalho figurando como pesadelos de todos os tipos, fica claro que uma nova representação inteligente ainda será fascinante para a população em geral.

Há quem diga que a série é um fenômeno pós-pandemia, porque o lockdown afastou os trabalhadores de seus locais de trabalho. E, sem dúvida, essa experiência adicionou uma dose de horror extra às infinitas representações do mundo corporativo como fundamentalmente frio, assustador, explorador e desumanizador.

Além de tudo isso, os cidadãos estadunidenses agora têm o bilionário CEO corporativo e completo babaca Elon Musk atuando como um co-presidente não eleito com Donald Trump, enviando seus subordinados do Departamento de Eficiência Governamental para invadir agências federais, minando o funcionamento de serviços sociais essenciais, além de afundar a economia por razões obscuras. Portanto, não temos problema em reconhecer o poder estranhamente descomunal dos chefes corporativos, cujos abusos repugnantes destroem rotineiramente a classe trabalhadora em Ruptura.

A segunda temporada da série explora mais a perversão psicológica dos chefes das Indústrias Lumon, bem como a filosofia misteriosa e maníaca por trás dos crimes mais hediondos cometidos contra seus funcionários. Isso é inevitável, dado o final da primeira temporada, que foi um ponto de ruptura quando a equipe de quatro funcionários que compõe o departamento de Refinamento de Macrodados (MDR) — o líder conciliador Mark S. (Adam Scott), o conservador Irving B. (John Turturro), entusiasta da Lumon, o sarcástico Dylan G. (Zach Cherry), que, no entanto, tende a puxar o saco dos chefes, e a recalcitrante recém-chegada Helly R. (Britt Lower) — se envolve em uma revolta trabalhista há muito esperada. Eles descobrem como superar temporariamente a perda de suas consciências para que os trabalhadores “Internos” vivenciem a vida de seus “Externos” no mundo além do prédio da Lumon.

A maior revelação sobre a vida de Helly R., a rebelde anti-Lumon mais fervorosa da ativa, é que ela é, na verdade, Helena Eagan. Ou seja, ela é filha do CEO da Lumon, Jame Eagan, e descendente direta do reverenciado fundador da empresa no século XIX, Kier Eagan, e atual e implacavelmente comprometida herdeira aparente da empresa. Ela só passou pelo processo de ruptura para liderar uma campanha publicitária para as Indústrias Lumon.

Mas primeiro, talvez seja necessária uma recapitulação. E um alerta de spoiler, caso você não tenha visto a 1ª temporada. (O que está esperando?)

A narrativa dominante da 1ª Temporada de Ruptura envolve os esforços voláteis da gerência e dos colegas de trabalho para integrar a nova funcionária Helly R. à vida corporativa opressiva das Indústrias Lumon. Helly R., uma ruiva destemida e sensata, simplesmente não aceita. Desde o momento em que acorda com amnésia total na longa mesa da sala de conferências, onde cada novo funcionário chega após passar pelo processo de demissão, Helly R. se envolve em uma feroz combinação de luta e fuga, tentando sair dali.

Ela bate em todas as portas de saída, foge pelos corredores, arremessa utensílios de escritório nos colegas que considera seus carcereiros. Quando nada disso funciona, ela tenta uma cooperação superficial, apresentando uma demissão formal pelos canais do escritório. Pedido de demissão negado. Ela tenta a discrição, tentando contrabandear bilhetes proibidos para sua Externa, insistindo para que nunca mais volte àquele lugar.

Finalmente, sua Externa lhe é mostrada em uma gravação, dizendo-lhe que a escolha já foi feita e que ela precisa parar de se considerar alguém com autonomia. “Você não é uma pessoa”, Helena diz friamente a Helly. A partir daí, Helly busca meios para destruir seu alter ego Helena por todos os meios necessários, incluindo a ameaça de cortar os próprios dedos com um estilete se ela não for libertada do “andar de ruptura” da Lumon — porque, afinal, eles também são os dedos de Helena.

O ápice de seus esforços é uma tentativa de se enforcar, uma tentativa de suicídio que também serve como uma forma de assassinar Helena. Helly a encena dentro do elevador onde funcionários demitidos passam pela transição que apaga da memória recente todo o tempo que passaram fora das Indústrias Lumon. Pelo que os Internos sabem, as portas do elevador fecham às 17h15 e reabrem quase imediatamente às 9h. Eles nunca estão fora do trabalho.

O protagonista principal da série é Mark S., ou Mark Scout no mundo Externo. Ele está tão arrasado pela perda de sua esposa Gemma (Dichen Lachman) em um acidente de carro fatal que considera a vida dividida como uma bênção — pelo menos uma parte dele consegue escapar de sua agonia, enquanto a outra continua sofrendo. Vemos seu Externo soluçando em seu carro no estacionamento de Lumon, antes de se transformar no elevador em um Interno totalmente cooperativo que sorri inexpressivamente e normaliza o estilo de gestão bizarro de seu supervisor imediato, o gerente onipresente Sr. Milchick (Tramell Tillman) do departamento de MDR, e sua fria chefe, a gerente de setor Harmony Cobel (Patricia Arquette). Eles, por sua vez, respondem ao “Conselho”, uma entidade sem rosto que se comunica — mal — por um autofalante do escritório.

Mark S. fica brevemente perturbado com a perda de seu amigo de trabalho Petey (Yul Vazquez), quando e de repente informado, sem explicação, que Petey “não está mais nas Indústrias Lumon”, uma frase assustadora que soa como uma sentença de morte — e na verdade significa a morte de um Interno. Mas, ao mesmo tempo, Mark é promovido ao antigo cargo de Petey como chefe do grupo de quatro pessoas da MDR. Apaziguado, ele rapidamente começa pela tarefa a ele atribuída, tentando integrar Helly R. à sua pequena equipe. A equipe também inclui o rigidamente correto Irving B., que venera todas as coisas da Lumon, especialmente o fundador Kier Eagan. Mas Irving é mais velho que os outros e tem tendência a adormecer no trabalho, uma transgressão involuntária que é punida com uma temida ida à “Sala de Descanso”, onde uma forma de tortura psicológica é praticada para extrair confissões e desculpas abjetas de funcionários infratores.

E o quarto é Dylan G., que é sarcástico em relação à vida corporativa com os colegas de trabalho e um puxa-saco completo com os chefes, sempre trabalhando arduamente na misteriosa tarefa de limpeza de dados do departamento para acumular mais recompensas Lumon, como armadilhas de dedos chinesas na cor azul característica do departamento de MDR. Ele se esforça para chegar ao café da manhã com waffles, considerado um privilégio de alto valor apenas para os funcionários mais merecedores.

O desaparecimento de Petey e as brigas com Helly desencadearam ondas que levaram toda a equipe a se envolver em comportamentos agressivos que os castigariam na 2ª temporada. Por exemplo, o conservador Irving se vê envolvido em um romance proibido no escritório com Burt G. (Christopher Walken), do departamento de Ótica e Design (O&D), o que acabou se tornando um desdobramento do enredo favorito dos fãs na série.

Tudo isso nos leva à 2ª temporada, que começa cinco meses depois, quando Mark S. acorda após a revolta dos trabalhadores ser reprimida e descobre mudanças perturbadoras na Lumon. A gerente do setor, Harmony Cobel, “não está mais nas Indústrias Lumon”, tendo sido substituída pelo Sr. Milchick. Ele adotou uma nova abordagem “mais suave” no estilo de gestão, que envolve elogiar os “rebeldes da Lumon” por pressionarem por reformas corporativas tão necessárias. Há até um filme de animação tosco sobre o heroísmo deles e todas as mudanças nas Indústrias Lumon, que envolvem abertura e transparência, além de atender às solicitações dos trabalhadores.

O que é ótimo, exceto por um detalhe: ninguém lhe conta onde está sua equipe. Irving B., Dylan G. e Helly R. estão desaparecidos, e há uma nova equipe de MDR sentada em suas mesas na baia de quatro módulos no meio do enorme escritório sem janelas. É um dos grandes momentos cômicos, porém sombriamente realistas, da série, quando Mark S. entra em seu escritório e encontra três novos colegas de trabalho completamente irreconhecíveis sentados onde seus amigos costumavam estar. Há até um com o seu nome, Mark W. (Bob Balaban), que pergunta se Mark S. estaria disposto a usar um nome diferente “para evitar confusão”.

Atores como Bob Balaban e Alia Shawkat aparecendo em papéis essencialmente especiais indica o “fator cool” que Ruptura alcançou. Os elencos principal e convidado são surpreendentemente bons e talentosos.

Esta cena estranha com novos funcionários ocupando as mesas dos antigos demonstra o caráter absolutamente fungível dos funcionários corporativos, que sempre podem ser substituídos por novas engrenagens sem interromper os negócios incansáveis ​​da entidade empresarial — embora, no caso das Indústrias Lumon, não esteja claro qual seja esse negócio. O departamento de MDR fica sentado diante de computadores de mesa olhando para telas cheias de números até reconhecer números que parecem “assustadores”. Eles selecionam e descartam esses números. É isso. Esse é todo o trabalho deles.

O que não tem muito a ver com ficção científica, essa descrição de cargo. Meu afilhado trabalhou na Tesla Inc. por um tempo, a montadora de Elon Musk que agora está fracassando no mundo todo, e tenho orgulho de dizer que liderou um esforço inovador para sindicalizar a filial da Tesla em Buffalo, antes que ele e todos os outros sindicalistas fossem demitidos. Mas até que isso acontecesse, seu trabalho era clicar incessantemente e identificar o que estava contido em várias imagens na tela, como aqueles testes online de “Eu não sou um robô” que pedem para você escolher todas as imagens que têm postes de luz ou algo assim. Era, ironicamente, uma maneira de treinar o sistema de IA da empresa no reconhecimento de objetos.

Mark S., no entanto, se recusa a aceitar a perda de sua antiga equipe. E, por razões misteriosas, os desejos de Mark estão sendo atendidos enquanto ele trabalha no “refinamento” dos dados categorizados sob o nome “Cold Harbor”. A gerência da Lumon conspira para mantê-lo feliz até a data prevista para a conclusão, que se aproxima, por razões que ainda desconhecemos, a ponto de fazer a concessão de lhe dar algo mais que ele deseja — que é Helly R.

Isso é organizado durante um dos melhores episódios da 2ª temporada, chamado “Woe’s Hollow”. Esse é o local remoto e coberto de neve onde a equipe reunida de Mark se encontra repentinamente presa, supostamente porque o Sr. Milchick está atendendo ao pedido deles de poder sair ocasionalmente, um típico ato punitivo de agressão passiva corporativa. É ao mesmo tempo ridículo e assustador, que é a combinação em que a série se especializa, e perspicaz se você quiser evocar nossa realidade atual. Membros da equipe MDR vestidos com chapéus de pele de estilo russo, completando suas elaboradas roupas de inverno, recuperam a consciência e começam a gritar desesperadamente uns com os outros através de vastas extensões de tundra gelada, tentando descobrir onde estão e o que devem fazer para sobreviver sem comida, abrigo ou fontes de calor aparentes.

Sempre elegante, o Sr. Milchick finalmente chega, maravilhosamente vestido com uma roupa branca com detalhes em pele, para ajudá-los a encontrar suas cápsulas aquecidas e suprimentos de comida e dar-lhes dicas sobre sua missão educacional, refazendo os passos do fundador da Lumonn, Kier Eagan, em uma viagem crucial que ele fez com seu irmão gêmeo. O Sr. Milchick também lhes dá avisos sinistros, como o ditado tipicamente pseudo-religioso da Lumon: “Não se desvie do caminho de Kier / para não perturbar a ira da natureza”.

Essa poesia terrível é um bom exemplo dos vários ditados relacionados a Kier Eagan, extraídos de sua filosofia do século XIX e que se entrelaçam com o funcionamento das Indústrias Lumon. É uma das melhores partes da série, a forma como a história da corporação é retratada. É claro que agora as pessoas ficam um pouco sentimentais com aquela velha abordagem filantrópica dos magnatas corruptos, por razões compreensíveis. Pelo menos as pessoas tinham bibliotecas, escolas, galerias de arte e alguns prédios públicos muito bonitos.

É apenas uma das muitas maneiras pelas quais Ruptura reconhece o inferno grotesco, religioso e ideologicamente motivado que criamos no ambiente de trabalho estadunidense — encontrando o fio condutor que vai dos oligarcas da era dos barões ladrões até os dias atuais. Nos deleitemos com essa rara sátira mordaz enquanto ainda podemos!

Colaborador

Eileen Jones é crítica de cinema da Jacobin e autora no Filmsuck, nos Estados Unidos. Ela também apresenta um podcast chamado Filmsuck.

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