André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP
As propostas do governo Lula de utilizar moedas locais em transações comerciais diretas com a China e de financiar (em reais) as exportações para a Argentina atiçaram o imaginário nacional sobre a desdolarização da economia mundial.
A raiva e a frustração com o dólar se acumulam há décadas e se acentuaram com as sanções impostas à Rússia após a invasão da Ucrânia. Mas será real esse processo de desdolarização? É verdade que a fatia do dólar nas reservas globais caiu de 73% em 2001 para 55%, em 2021, e 47%, em 2022. Doze anos de política monetária frouxa —e US$ 9 trilhões injetados pelo Fed na economia americana e no mundo— levaram os países a diversificar suas reservas, sobretudo quando estas atuam como um seguro contra instabilidade cambial.
É mais fácil negociar, assinar contratos, contrair e quitar dívidas e, sobretudo, estacionar a riqueza em ativos nessa moeda. A mais recente pesquisa trienal do BIS (Banco de Compensações Internacionais) corrobora essa qualidade: a participação do dólar americano nas operações entre moedas (FX turnover) aumentou de 85%, em 2010, para 88%, em 2022.
O papel verde chamado dólar é apenas a expressão simbólica de um complexo sistema de inter-relações econômicas, que fornece infraestrutura monetário-financeira de meios de pagamento, dívidas, seguros e proteções, bem como a confiança no ativo que preservará a riqueza.
No livro "Money and Empire", Perry Mehrling mostra como o "sistema dólar" se tornou organicamente a moeda de reserva internacional (usada como denominador comum de contratos, meio de troca e reserva de valor ao redor do mundo). Trata-se de um arranjo monetário híbrido (público-privado), em que bancos fora dos EUA criam dólares por meio de operações de crédito, as quais são referendadas pelo Fed.
Apoiada na visão de Charles Kindleberger, a "visão monetária" das finanças internacionais sublinha a posição ocupada por cada país na hierarquia global de moedas nacionais.
Destaca-se também a dinâmica elasticidade-disciplina do sistema. Após a crise de 2008, o sistema inicia fase de elasticidade, com crédito emitido de forma abundante mundo afora. Com a inflação deflagrada pela pandemia, a fase de disciplina começa a enxugar a liquidez prévia, causando as instabilidades recentes no sistema bancário dos EUA e o descontrole do endividamento de vários países que dependem do dólar.
Emitir a moeda de reserva global traz o "privilégio exorbitante" de definir o dicionário dos contratos comerciais e financeiros mundo afora. Acompanha esse poder a necessidade de gerir o sistema e lidar com sua contestação, sobretudo quando suas falhas geram desigualdades no acesso ao financiamento das economias (esse é o caso da Argentina, por exemplo).
Apesar da ruidosa campanha de marketing de criptofanáticos, a China apresenta a contestação mais factível ao poder do dólar. Mesmo assim, os obstáculos são imensos. A China efetua 15% do valor global das exportações, mas o yuan é usado em apenas 4,5% das transações totais (e metade desse volume apareceu após as sanções à Rússia).
Há um longo caminho até que empresas e pessoas voluntariamente acreditem no yuan e o usem como moeda em suas transações externas. Por exemplo, nada impede que a Vale aceite yuans ao vender minério a uma empresa chinesa. O desafio está em usar a moeda para contratar frete, seguros, títulos de dívida e contratos futuros para se proteger de variações de preço e das taxas de câmbio.
A China pode vir a ofertar uma infraestrutura financeira que concorra com o sistema atual. Enquanto isso não ocorre, o mundo pensa, calcula, confia e se protege em dólar
As propostas do governo Lula de utilizar moedas locais em transações comerciais diretas com a China e de financiar (em reais) as exportações para a Argentina atiçaram o imaginário nacional sobre a desdolarização da economia mundial.
A raiva e a frustração com o dólar se acumulam há décadas e se acentuaram com as sanções impostas à Rússia após a invasão da Ucrânia. Mas será real esse processo de desdolarização? É verdade que a fatia do dólar nas reservas globais caiu de 73% em 2001 para 55%, em 2021, e 47%, em 2022. Doze anos de política monetária frouxa —e US$ 9 trilhões injetados pelo Fed na economia americana e no mundo— levaram os países a diversificar suas reservas, sobretudo quando estas atuam como um seguro contra instabilidade cambial.
Notas de cem dólares em casa de câmbio em Myanmar - U Aung - 23.mai.2018/Xinhua |
Sob incerteza, o principal atrativo de um ativo financeiro é sua "liquidez", isto é, a facilidade com que se pode convertê-lo em dinheiro vivo ou em qualquer bem ou serviço da economia. Quanto mais extenso for o mercado do ativo, maior será essa facilidade. Como todo o mundo reconhece liquidez do dólar, tem-se a "externalidade em rede": você usa porque todo o mundo usa.
É mais fácil negociar, assinar contratos, contrair e quitar dívidas e, sobretudo, estacionar a riqueza em ativos nessa moeda. A mais recente pesquisa trienal do BIS (Banco de Compensações Internacionais) corrobora essa qualidade: a participação do dólar americano nas operações entre moedas (FX turnover) aumentou de 85%, em 2010, para 88%, em 2022.
O papel verde chamado dólar é apenas a expressão simbólica de um complexo sistema de inter-relações econômicas, que fornece infraestrutura monetário-financeira de meios de pagamento, dívidas, seguros e proteções, bem como a confiança no ativo que preservará a riqueza.
No livro "Money and Empire", Perry Mehrling mostra como o "sistema dólar" se tornou organicamente a moeda de reserva internacional (usada como denominador comum de contratos, meio de troca e reserva de valor ao redor do mundo). Trata-se de um arranjo monetário híbrido (público-privado), em que bancos fora dos EUA criam dólares por meio de operações de crédito, as quais são referendadas pelo Fed.
Apoiada na visão de Charles Kindleberger, a "visão monetária" das finanças internacionais sublinha a posição ocupada por cada país na hierarquia global de moedas nacionais.
Destaca-se também a dinâmica elasticidade-disciplina do sistema. Após a crise de 2008, o sistema inicia fase de elasticidade, com crédito emitido de forma abundante mundo afora. Com a inflação deflagrada pela pandemia, a fase de disciplina começa a enxugar a liquidez prévia, causando as instabilidades recentes no sistema bancário dos EUA e o descontrole do endividamento de vários países que dependem do dólar.
Emitir a moeda de reserva global traz o "privilégio exorbitante" de definir o dicionário dos contratos comerciais e financeiros mundo afora. Acompanha esse poder a necessidade de gerir o sistema e lidar com sua contestação, sobretudo quando suas falhas geram desigualdades no acesso ao financiamento das economias (esse é o caso da Argentina, por exemplo).
Apesar da ruidosa campanha de marketing de criptofanáticos, a China apresenta a contestação mais factível ao poder do dólar. Mesmo assim, os obstáculos são imensos. A China efetua 15% do valor global das exportações, mas o yuan é usado em apenas 4,5% das transações totais (e metade desse volume apareceu após as sanções à Rússia).
Há um longo caminho até que empresas e pessoas voluntariamente acreditem no yuan e o usem como moeda em suas transações externas. Por exemplo, nada impede que a Vale aceite yuans ao vender minério a uma empresa chinesa. O desafio está em usar a moeda para contratar frete, seguros, títulos de dívida e contratos futuros para se proteger de variações de preço e das taxas de câmbio.
A China pode vir a ofertar uma infraestrutura financeira que concorra com o sistema atual. Enquanto isso não ocorre, o mundo pensa, calcula, confia e se protege em dólar
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