31 de agosto de 2023

A falsa rivalidade entre BNDES e mercado de capitais

A premissa de complementaridade no financiamento é mais construtiva e funcional

André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP



A reorganização geopolítica em curso e as crises sobrepostas (climática, militar, sanitária e alimentar) impulsionam a reestruturação das cadeias produtivas globais. O Brasil pode aproveitar essas transformações para ampliar a resiliência da economia, bem como sua segurança energética, alimentar e de recursos naturais.

O BNDES é peça-chave nesse processo, seja pela sua capacidade de identificar projetos meritórios e novos mercados, seja pela sua função de financiador paciente mediante elevado risco ou incerteza radical (quando o risco é incalculável).

Guardadas as diferenças de governança, bancos de desenvolvimento mundo afora estão engajados nesse esforço. Contudo, aqui no Brasil, superstições interditam um debate construtivo sobre o tema.

A defesa da miniaturização do BNDES afirma (sem provas) que, uma vez eliminados os subsídios implícitos e explícitos ao banco, o mercado de capitais tê-lo-ia (a mesóclise é ilustrativa) suplantado na função financiadora do investimento. Indício dessa relação seria o crescimento da captação de recursos via mercado de capitais doméstico de 2% para 5,5% do PIB, entre 2016 e 2022.

Em contraponto, estudo recente reuniu pesquisadores de diversas instituições e concluiu que houve uma substituição parcial do BNDES pelo mercado de capitais. Intitulado "O BNDES e o mercado de capitais: esclarecimentos para o debate público no Brasil", o trabalho questiona a superestimação dos efeitos positivos dessa mudança. A confiança (imprudente) na eficiência alocativa do mercado de capitais brasileiro pode ter ocultado do debate efeitos negativos, que podem fragilizar a nossa economia.

Apesar da alegação de que o BNDES se voltou para as pequenas empresas (na verdade, só caiu a fatia das grandes empresas nos desembolsos), os dados mostram que a substituição incompleta e imperfeita privilegiou as grandes empresas. Entre 2012 e 2022, deixaram de obter empréstimos no BNDES 222 mil micro, pequenas e médias empresas (MPME), enquanto os 724 novos emissores de títulos no mercado de capitais eram majoritariamente grandes empresas. Com efeito, as MPMEs podem ter enfrentado grave restrição de crédito, com efeitos danosos sobre investimentos, emprego e renda no país.

Em termos qualitativos, o crédito do BNDES –que financia, majoritariamente, investimentos produtivos– foi substituído pela alocação de recursos em capital de giro e refinanciamento de passivo das empresas. Essa mudança na composição do financiamento pode ter ocasionado a queda da taxa de investimento, agravando a nossa vulnerabilidade a crises. Afinal, o crédito do BNDES tem natureza anticíclica, em contraste com o caráter pró-cíclico de mercado de capitais, o qual se contrai em períodos recessivos.

Apesar de não substituir perfeitamente a atuação do BNDES, a expansão recente do mercado de capitais se apoiou em incentivos fiscais (crédito direcionado, CRI, CRA e debêntures incentivadas), cuja avaliação sistemática jamais foi feita. Sobre essa questão, chama a atenção o silêncio sepulcral de quem bradou estridente e incansavelmente contra os subsídios concedidos ao BNDES.

Tomemos as debêntures incentivadas como exemplo. O benefício fiscal buscava atrair capitais privados para financiar o investimento em setores estratégicos, mas acabou concentrado em grandes fundos de investimento (com foco exclusivo em retornos financeiros) e em projetos que teriam financiamento, mesmo sem incentivos. O setor de energia abocanhou 65% do valor das emissões entre 2012 e 2022, seguidos pelo setor de transporte (25%) e de saneamento (5,5%, embora o marco regulatório do setor seja de 2019). Terá havido má alocação de recursos pelo mercado de capitais?

Descartemos a tese míope da rivalidade entre o BNDES e o mercado de capitais. A premissa de complementaridade é mais construtiva e funcional ao financiamento de longo prazo da economia.

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