André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP
Folha de S. Paulo
A pandemia transformou muitas dimensões da vida social e agravou desigualdades mundo afora. A fome acompanhou o aumento no valor da riqueza acumulada pelo crescente número de bilionários.
A falta de saneamento adequado para proteger as famílias pobres da disseminação da Covid-19 revelou deficiências profundas nas infraestruturas física e social. O mundo do trabalho, o mercado imobiliário e as relações sociais foram irreversivelmente afetados.
No Brasil, em que o 1% mais rico detém metade da riqueza do país, a pandemia se chocou com a agenda neoliberal, turbinada sob Temer e Bolsonaro, responsável pela estagnação econômica e a precarização das condições de trabalho.
Homem gesticula próximo a painel eletrônico da Bolsa brasileira, B3 - Amanda Perobelli/Reuters |
A interrupção do ciclo de desenvolvimento (2006-2014) e o desmonte das políticas públicas bloqueou a ascensão da classe mais pobre, tornando-a presa fácil do populismo de extrema-direita que Bolsonaro incarnou. Emergiu deste processo uma figura sociológica desafiadora: o pobre de direita.
Por ser um objeto de estudo que transcende a economia, é bem-vindo o contundente livro "Esfarrapados", de César Calejon. O autor decifra a gramática da desigualdade brasileira explorando o conceito de "elitismo histórico-cultural": um regime em que categorias de distinção —material, racial, de gênero etc.— estruturam hierarquias sociais rígidas. Neste arranjo, pessoas de baixa renda adotam como seus os interesses e aspirações dos mais ricos. Identificados com a elite, os esfarrapados introjetam a retórica da meritocracia e do Estado mínimo.
Paralelamente a este processo, os anos 2010 viram a digitalização de serviços bancários e de investimento acirrar a concorrência entre bancos, fintechs e corretoras. A queda no custo das operações incluiu milhões de brasileiros no mercado financeiro.
Segundo relatório de junho de 2023 da B3 (antiga Bovespa), em 2017, eram 500 mil investidores pessoa física; em 2023, há 5,3 milhões de CPFs. O crescimento de CPFs na B3 entre 2020 e 2023 foi mais rápido nas regiões Norte (188%) e Nordeste (135%). No recorte etário, os jovens (de 0 a 24) representavam 10% em 2018; hoje, são 22% dos CPFs da B3.
Nas categorias de renda variável, o saldo mediano caiu de R$ 20 mil por investidor (em 2017) para R$ 1,1 mil (em 2023). O fenômeno se repete em Fundos Imobiliários (de R$ 29 mil para R$ 3 mil), em ETFs (de R$ 18 mil para R$ 1,6 mil) e no Tesouro Direto (de R$ 15 mil para R$ 3 mil). Dos 86 mil novos CPFs na B3 em junho de 2023 cerca de metade (55%) fez aplicações até R$ 200; 27% deles, até R$ 40.
A análise dos dados sugere, portanto, que os "esfarrapados" foram para a bolsa de valores. O mercado de assessoria financeira cresceu e se descentralizou, expondo os pobres digitalizados à proliferação de gurus das finanças —que rotulei de econocoaches— vendendo cursos sobre a "viver de renda" por meio de estratégias ousadas na Bolsa de Valores e em criptoativos.
E aqui mora um risco enorme: tratar a bolsa como um jogo de loteria. Neste sentido, o livro "Trader ou investidor", de Bruno Giovannetti e Fernando Chague, é um antídoto à sedução dos econocoaches.
Os autores mostram de forma leve e cativante como orientar as finanças para a aposentadoria (investidor), em vez da adrenalina com enriquecimento fácil que motiva o trader —que compra e vende ações rapidamente buscando retornos rápidos. Renomados pesquisadores em finanças, eles revelam como os agentes de mercado lucram com a oferta de produtos financeiros que mascaram o risco e exageram os retornos (como os COEs) —e mostram os vieses comportamentais (comprar ações de empresas em crise, por exemplo) que geram perdas sistemáticas aos traders.
O acesso à bolsa de valores é uma boa notícia, desde que não se torne uma loteria viciada contra os pobres.
Por ser um objeto de estudo que transcende a economia, é bem-vindo o contundente livro "Esfarrapados", de César Calejon. O autor decifra a gramática da desigualdade brasileira explorando o conceito de "elitismo histórico-cultural": um regime em que categorias de distinção —material, racial, de gênero etc.— estruturam hierarquias sociais rígidas. Neste arranjo, pessoas de baixa renda adotam como seus os interesses e aspirações dos mais ricos. Identificados com a elite, os esfarrapados introjetam a retórica da meritocracia e do Estado mínimo.
Paralelamente a este processo, os anos 2010 viram a digitalização de serviços bancários e de investimento acirrar a concorrência entre bancos, fintechs e corretoras. A queda no custo das operações incluiu milhões de brasileiros no mercado financeiro.
Segundo relatório de junho de 2023 da B3 (antiga Bovespa), em 2017, eram 500 mil investidores pessoa física; em 2023, há 5,3 milhões de CPFs. O crescimento de CPFs na B3 entre 2020 e 2023 foi mais rápido nas regiões Norte (188%) e Nordeste (135%). No recorte etário, os jovens (de 0 a 24) representavam 10% em 2018; hoje, são 22% dos CPFs da B3.
Nas categorias de renda variável, o saldo mediano caiu de R$ 20 mil por investidor (em 2017) para R$ 1,1 mil (em 2023). O fenômeno se repete em Fundos Imobiliários (de R$ 29 mil para R$ 3 mil), em ETFs (de R$ 18 mil para R$ 1,6 mil) e no Tesouro Direto (de R$ 15 mil para R$ 3 mil). Dos 86 mil novos CPFs na B3 em junho de 2023 cerca de metade (55%) fez aplicações até R$ 200; 27% deles, até R$ 40.
A análise dos dados sugere, portanto, que os "esfarrapados" foram para a bolsa de valores. O mercado de assessoria financeira cresceu e se descentralizou, expondo os pobres digitalizados à proliferação de gurus das finanças —que rotulei de econocoaches— vendendo cursos sobre a "viver de renda" por meio de estratégias ousadas na Bolsa de Valores e em criptoativos.
E aqui mora um risco enorme: tratar a bolsa como um jogo de loteria. Neste sentido, o livro "Trader ou investidor", de Bruno Giovannetti e Fernando Chague, é um antídoto à sedução dos econocoaches.
Os autores mostram de forma leve e cativante como orientar as finanças para a aposentadoria (investidor), em vez da adrenalina com enriquecimento fácil que motiva o trader —que compra e vende ações rapidamente buscando retornos rápidos. Renomados pesquisadores em finanças, eles revelam como os agentes de mercado lucram com a oferta de produtos financeiros que mascaram o risco e exageram os retornos (como os COEs) —e mostram os vieses comportamentais (comprar ações de empresas em crise, por exemplo) que geram perdas sistemáticas aos traders.
O acesso à bolsa de valores é uma boa notícia, desde que não se torne uma loteria viciada contra os pobres.
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