João Pedro Pitombo
Na Folha desde 2013, escreve sobre Política, Eleições, Meio Ambiente e Segurança Pública.
Folha de S.Paulo
[RESUMO] Da infância e da família de Luiz Gama, escravizado liberto que se tornou um dos ícones da luta abolicionista no Brasil, só se sabia o que ele mesmo relatou em cartas. Documentos descobertos por pesquisadoras no Arquivo Público do Estado da Bahia trazem agora à luz detalhes dos primeiros anos de vida de Gama, da origem de seu pai, um homem de família branca conceituada, e provas concretas da existência de sua mãe, a também escravizada Luiza Mahin, referência do feminismo negro brasileiro.
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O advogado e poeta abolicionista negro Luiz Gama, celebrado desde o século 19 como um dos símbolos da luta contra a escravidão no Brasil, nasceu em Salvador, foi uma criança livre, filho de um homem de origem branca e de uma negra de etnia iorubá.
A história, conhecida desde 1880 no relato do próprio Luiz Gama em carta para o também abolicionista Lúcio de Mendonça, agora tem respaldo documental: é referendada por um registro de batismo, um testamento e escrituras de imóveis guardados no Arquivo Público do Estado da Bahia.
Os documentos inéditos foram achados pela pesquisadora Lisa Earl Castillo, doutora em letras, e pela historiadora Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade Federal da Bahia. As duas assinam um artigo na revista Afro-Ásia, do CEAO (Centro de Estudos Afro-Orientais) da UFBA, que será publicado neste segundo semestre.
A história, conhecida desde 1880 no relato do próprio Luiz Gama em carta para o também abolicionista Lúcio de Mendonça, agora tem respaldo documental: é referendada por um registro de batismo, um testamento e escrituras de imóveis guardados no Arquivo Público do Estado da Bahia.
Os documentos inéditos foram achados pela pesquisadora Lisa Earl Castillo, doutora em letras, e pela historiadora Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade Federal da Bahia. As duas assinam um artigo na revista Afro-Ásia, do CEAO (Centro de Estudos Afro-Orientais) da UFBA, que será publicado neste segundo semestre.
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Luiz Gama foi figura-chave no movimento abolicionista brasileiro - Wikicommons |
O material desvela detalhes sobre a infância de Luiz Gama, período sobre o qual havia poucas informações. Também traz provas documentais da existência de Luiza Mahin, mulher citada por Gama como sua mãe, que se tornaria referência do feminismo negro no Brasil.
Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador, em 21 de junho de 1831 —e não em 1830, como se acreditava. Vendido como cativo pelo próprio pai aos 9 anos, foi enviado para o Rio de Janeiro, de onde seguiu para São Paulo. Alfabetizou-se na adolescência, conquistou sua liberdade e se tornou um rábula (pessoa que advoga sem ser formada em direito), ganhando notoriedade como defensor de negros escravizados. Nunca conseguiu reencontrar a mãe, de quem não tinha notícias desde a infância.
Sua história ganharia destaque ao longo do século 20, em uma saga de contornos heroicos de um homem negro que enfrentou poderosos e o sistema escravista vigente no Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888.
Gama se tornou um símbolo, com uma história vencedora em um período no qual africanos e descendentes deles eram associados à escravidão. Pouco se sabia, contudo, a respeito de sua infância, salvo os relatos que ele mesmo deixou.
"A pesquisa cobre esse silêncio que havia em torno da infância de Luiz Gama na Bahia, inclusive mostrando qual era o mundo em que ele se forjou", resume Wlamyra Albuquerque.
O primeiro documento encontrado, quase por acaso, por Lisa Earl Castillo no Arquivo Público da Bahia foi uma escritura de um imóvel em nome de Antônio Agostinho Carlos Pinto da Gama. A identificação exata do pai era um dos enigmas deixados pelo abolicionista.
Esta e outras escrituras em nome de Antônio Agostinho revelam que os imóveis foram herdados de uma parente que o pai de Gama tratava como tia, Maria Rosa de Jesus. As casas ficavam na rua do Bangla, a mesma em que Luiz Gama afirmava ter nascido e morado na infância.
Outro documento chave é o testamento de Maria Rosa de Jesus, redigido em 1837. Solteira e sem filhos, ela instituiu como herdeiro universal Antônio Agostinho, que era filho de seu primo. A herança confirma a carta autobiográfica de Luiz Gama, na qual ele diz que o patrimônio de seu pai viera de uma tia.
Entre os bens listados no testamento estão as escravizadas Ana e Luiza, identificadas como nagôs, grupo étnico da África Ocidental atualmente chamado de iorubá. A testamenteira faz uma menção especial sobre Luiza, afirmando que o filho dela, de nome Luiz Gonzaga Pinto da Gama, "é livre de toda a escravidão como se assim nascesse". Para as autoras, não há dúvida: o menino é Luiz Gama, e a mãe é Luiza Mahin.
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Testamento de Maria Rosa de Jesus, redigido em 1837, cita Luiz Gama como filho da escravizada Luiza - Reprodução / Lisa Earl Castillo |
Um dos achados cruciais deste documento é o fato de Luiza ser identificada como escravizada, o que contrapõe a versão de Luiz Gama de que sua mãe era uma africana livre.
O testamento também permitiu que as pesquisadoras identificassem o registro de batismo de Luiz Gama na freguesia Santana, em Salvador, no qual é descrito como "pardo forro com três meses e meio de idade, filho de Luiza, escrava de Maria Rosa de Jesus".
Antônio Agostinho não aparece como pai, mas sim como padrinho do menino, apesar de ele carregar o seu sobrenome, artimanha relativamente comum no período escravista. Já Luiz Gama é classificado como forro, o que indica que recebeu a alforria no batismo.
Documentos identificados e compartilhados pelo pesquisador independente Felipe Peixoto Brito esclareceram detalhes sobre o histórico da família paterna de Luiz Gama, incluindo uma lista de foreiros (pessoas que, por meio de contrato, adquirem o direito ao uso de um imóvel) de Itaparica obtida em arquivo em Portugal e um documento que explica o parentesco entre o pai de Gama e Maria Rosa de Jesus.
LUIZA MAHIN
Com base nos novos documentos, as autoras desenharam um retrato da infância de Luiz Gama na Bahia, passando pela origem familiar do pai Antônio, pela trajetória da mãe Luiza e pelo contexto no qual a família viveu, marcado pelas tensões sociais e políticas dos anos pós-Independência.
Na carta a Lúcio de Mendonça, Luiz Gama construiu uma aura mítica em torno da mãe. Afirma que ela era pagã, pois sempre se recusara ao batismo cristão, e teria sido presa por envolvimento em "planos de insurreições de escravos", o que gerou interpretações sobre sua atuação na Revolta dos Malês.
Este relato consolidou Luiza Mahin como símbolo de liderança da mulher negra no Brasil escravista, movimento que culminou com a sua inscrição em 2019 no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. A história inspirou a personagem Kehinde de "Um Defeito de Cor", da escritora Ana Maria Gonçalves, eleito o melhor livro da literatura brasileira do século 21 em uma votação promovida pela Folha com 101 especialistas convidados. No começo do mês, Gonçalves assumiu uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Pesquisas pregressas esfriaram a tese de uma possível atuação de Luiza Mahin na Revolta dos Malês. O historiador e professor da UFBA João José Reis afirma no livro "Rebelião Escrava no Brasil" que nenhuma Luiza consta nos documentos que listam os presos no levante de 1835.
Foram identificadas mulheres com participação direta ou indireta na Revolta dos Malês, caso de Edum, Emerenciana e Felicidade da Paixão, esta última vizinha de Luiza Mahin. A maioria não teve atuação na luta em si, e nenhuma estava em posição de comando.
É possível que Luiza tenha sido presa nos meses seguintes ao levante de 1835, quando a polícia estava em alerta e detinha africanos sob qualquer pretexto. Outras hipóteses indicam que ela teria fugido ou foi vendida clandestinamente por Antônio Agostinho para cobrir dívidas.
"Não existe nenhum indício de que ela tenha lutado na Revolta dos Malês ou na Sabinada. Tudo leva a crer que tenha sido vendida ou incluída em alguma transação feita pelo pai de Luiz Gama. E isso não diminui a importância histórica dela. Pelo contrário, isso a humaniza", pontua Wlamyra Albuquerque.
O fato é que Luiza não fazia mais parte do núcleo doméstico em 1839, quando Antônio Agostinho ficou doente e escreveu cartas de liberdade condicional para duas cativas: uma era Ana, herança da tia, e a outra se chamava Adelaide.
FAMÍLIA PATERNA
Os documentos também permitiram reconstituir a origem paterna de Luiz Gama, que descreveu em carta o pai como um fidalgo, que pertencia a "uma das principais famílias da Bahia de origem portuguesa".
Em seu testamento, Maria Rosa descreveu Luiz Gama como cabra, termo usado na época para classificar filhos de pretos com mestiços, indicando a possibilidade de que Antônio Agostinho não era branco.
O avô de Luiz Gama, que nasceu em Itaparica, mas de pai santo-amarense, tinha patrimônio relativamente parco. Quando um tio morreu e deixou uma herança, coube a Maria Rosa pagar os impostos da transação.
"Luiz Gama disse que o pai era fidalgo. Era uma família branca, que não era pobre, mas também não era rica", explica a pesquisadora Lisa Earl Castillo.
A família tinha raízes na cidade de Santo Amaro, na Bahia, havia várias gerações. O pai de Maria Rosa era desembargador, o que sugere poder aquisitivo e certo prestígio social.
Já Antônio Agostinho é apontado na carta de Gama como um homem que jogava baralho, "amava as súcias e os divertimentos" e vivia imerso em dívidas. Novos documentos reforçam essa tese.
Em 1836, os pais de Agostinho haviam vendido um imóvel para cobrir uma dívida do filho. No ano seguinte, assim que tomou posse da herança de Maria Rosa de Jesus, prima de seu pai, Agostinho pegou dinheiro emprestado usando imóveis como garantia.
Luiz Gama também afirmou que o pai "foi revolucionário em 1837", em referência à revolta da Sabinada. No entanto, documentos apontam que, nesse período, Agostinho estava mais preocupado em negociar os bens que herdara.
Após ter perdido quase todo o patrimônio, Agostinho foi morar em Itaparica, levando Luiz Gama. Em novembro de 1840, concluiu a transação do último terreno herdado e vendeu o próprio filho, que embarcou para o Rio de Janeiro como se escravizado fosse.
Como não havia registro de posse legal de Gama, provavelmente Agostinho levou o filho mais uma vez à pia de batismo, desta vez em Itaparica, e obteve o documento com a ajuda de um padre. O golpe explicaria a inexistência de registro deste segundo batismo no livro de batizados da freguesia.
"Além de ser pai, Antônio Agostinho era também padrinho e tutor, responsável pela educação do menino até a maioridade. Reduzir o filho à escravidão foi, portanto, uma traição tríplice", apontam as autoras no artigo.
MITO E MEMÓRIA
Para as pesquisadoras, além de esclarecerem as origens do célebre abolicionista, os dados descobertos reforçam o peso político de sua carta, que contém o enredo que ele quis deixar para a posteridade ao classificar a mãe como uma africana livre.
"Ele gera essa mulher, ele está criando essa narrativa. E a gente não quer dizer que a criação dessa narrativa é falsa. Tem a questão de serem lembranças de uma criança e tem a condição humana dele, que pode ter construído essa imagem para sobreviver emocionalmente", afirma Albuquerque.
A preocupação de Gama com o legado da família era crucial para aquele momento político pré-abolição. E mostra como são complexos o trauma da escravidão e as estratégias dos movimentos sociais no enfrentamento ao racismo.
A figura de Luiza Mahin, por exemplo, ganhou relevo desde a redemocratização, em meio à luta para assegurar o espaço das mulheres negras como protagonistas da memória nacional. Para isso, contudo, foram atribuídas a ela histórias sem respaldo documental e até mesmo representações fotográficas inexistentes.
Para as autoras, a urgência da reparação da memória ocultada pelo racismo institucional anda em descompasso com o avanço da pesquisa histórica, onde é preciso um acúmulo de dados para apresentar um personagem que se sustente empiricamente.
"A documentação apresentada constitui mais um passo na construção de um diálogo ponderado entre memória, mito e a pesquisa documental sobre as experiências do negro e suas lutas insurgentes no Brasil. E a pesquisa histórica tem papel central nessa dinâmica", apontam Castillo e Albuquerque.
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