Livro reúne a produção poética, cartas e diários do escritor britânico
Marcelo Tápia
Doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP, é poeta e tradutor, autor de "Refusões – Poesia 2017-1982" e "Nékuia – Um Diálogo com os Mortos"
[RESUMO] Lord Byron viveu apenas 36 anos, tempo suficiente para firmar-se não apenas como grande poeta, mas também como uma das personalidades singulares da literatura mundial. Portentosa antologia organizada e traduzida por André Vallias tenta dar conta dos múltiplos aspectos do escritor britânico, somando também documentos e estudos críticos —inclusive sua recepção no Brasil, dos poetas românticos aos concretos—, compondo um "mosaico flamejante" que nos permite novas leituras sobre a obra de Byron.
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Amado e odiado, cultuado e esquecido, "uma das personalidades mais paradoxais da literatura mundial", George Gordon Byron (1788-1824), conhecido como Lord Byron, é dono de extensa e diversificada obra que tem encontrado oportunidades de redescoberta e reavaliação crítica a partir dos anos 1990, cenário em que se situa a recém-lançada antologia "Byron – Poemas, Cartas, Diários &c.", organizada e traduzida pelo poeta e designer André Vallias, autor da frase citada acima.
Mosaico flamejante: uma possível metáfora, essa, para o conjunto ora publicado. A palavra "mosaico" surge no texto de Carlos Adriano para a orelha do livro, qualificação pertinente para a multifacetada obra do poeta inglês tal como espelhada neste alentado volume, que permite avistar a exuberância do todo da produção e da "breve e rocambolesca existência" que já rendeu mais de 200 biografias, como constata o organizador.
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O poeta Lord Byron em gravura de 1804 |
O singular meteoro do universo da poesia —no dizer de Otto Maria Carpeaux, "Byron apareceu como um meteoro; e desapareceu como um meteoro"— ressurge fulgurante num noturno céu tropical na forma de livro com capa na qual se insinua também a luz solar (pela cor laranja combinada ao azul), criada por Vallias, que assume a tarefa do trabalho como um todo, de sua concepção ao projeto gráfico, fortalecendo sua coerência.
As "contradições" de Byron, às quais aludimos de início, coroam a também múltipla introdução ao volume, cuja última parte cumpre a função de sucinto comentário crítico sobre a obra antologiada e seu autor.
Trata-se de um inventário sugestivo das "antinomias que se entrelaçam nos 36 anos de sua vertiginosa trajetória", tais como: famoso & infame; hétero & homo; indomável & submisso; sedutor & repulsivo; desmesurado & conciso; caótico & ordenado; heroico & jocoso; bélico & antimilitarista; arrojado & tradicionalista; sentimental & sarcástico... (Para Vallias, Byron seria um "acrobata do &" —pode-se ver o signo do "et" latino como possível símbolo de ligadura, a apontar a indissociabilidade dos opostos que agrega.)
Ponto alto da introdução, a abordagem crítica do tradutor faz pensar que ela poderia ser de maior extensão e profundidade, tendo-se em conta a dimensão abrangente e detalhada das demais seções do texto introdutório; mas não se pode querer tudo de um empreendimento que, por sua natureza, impõe opções de delimitação dos seus constituintes.
Segundo André Vallias, este seu trabalho, desenvolvido por cerca de dois anos, radicaliza o procedimento que adotara em suas antologias anteriores (uma dedicada a Heine, outra a Brecht), intercalando "segmentos de prosa no conjunto dos poemas para propiciar a contextualização".
Tal como representada, a obra de Byron permite, decerto, a visão dos textos relacionada a seus contextos; o que se vem a saber por meio de suas cartas e seus diários, juntamente com as anotações sobre a recepção de sua obra em diversos países, inclusive o Brasil, e a sua biografia, presentes na introdução, causam a impressão de uma vida-obra que, se o autor não pode mostrar em sua plenitude, dedica-se a roteirizá-la para o palco que contemplamos, demarcado por suas escolhas.
Tais escolhas se afinam com o conceito de "re-visão" de escritores tal como empreendida pelos criadores da poesia concreta entre nós, empenhados no redimensionamento de obras que não teriam encontrado oportunidade de leitura crítica e valorização à altura de sua relevância —particularmente sob o aspecto da inventividade— no contexto da história literária.
Augusto e Haroldo de Campos, à luz da visão de Ezra Pound, promoveram, por meio de ensaios críticos e traduções, um renovado modo de ver a contribuição de poetas da tradição universal e brasileira, caso de Sousândrade (1833-1902), praticamente desconsiderado antes de sua "re-visão" pelos irmãos Campos.
Aliás, da parte do poema "O Guesa", de Sousândrade, por eles denominada "O Inferno de Wall Street", proviria o interesse de Augusto por Byron, citado em versos da obra; tal interesse culminou em sua tradução de excertos de alguns cantos de "Childe Harold’s Pilgramage" e da mais famosa obra do poeta, "Don Juan", reunidos no livro "Byron e Keats – Entreversos" (2009).
Para Augusto, Byron seria "carnal e concreto, crítico de seu tempo, moderníssimo em suas 'digressões' colagísticas que atropelam a narração, vertendo poesia em prosa e prosa em poesia".
Vallias se orienta diretamente, em seu empenho tradutório, pelo conceito de "tradução-arte" de Augusto de Campos e, em particular, pelo que este realizou com a obra byroniana: "suas traduções e seus ensaios sobre Byron me serviram de modelo —inalcançável— e guia".
Tal afinidade resulta em diálogo, sob diversos aspectos, com as recriações de Augusto: por exemplo, a opção de traduzir as estrofes 8 a 16 do Canto I do "Don Juan", tendo Augusto publicado a tradução das sete iniciais; e, do Canto VII, as estrofes 8 a 18, sendo que Augusto traduziu da terceira à sétima.
Tratando-se de considerar a afinidade de propósitos ao se traduzir, a opção coincide com a visão do poeta concreto, manifesta na apresentação a seu "Byron e Keats": "não refazer o que já foi feito bem ou melhor é para mim uma regra inteligente, embora não inflexível, de ‘economia processual’". Do "Childe Harold", há uma estrofe que ambos traduziram: a 114 do Canto III.
Mas voltemos a dizer algo mais de Byron e, também, da recepção e influência de sua obra.
"Byron, nascido belo como a noite, também nasceu manco como um verso de sátira", diz, em artigo, o também tradutor Lucas Zaparolli de Agustini, associando o poeta a "Hefesto, o deus, por assim dizer, protetor da poesia iâmbica antiga", que "era manco também", "protetor" da poesia "de invectiva, de crítica mordaz" (Agustini, diga-se, realizou a tradução completa de "Don Juan", incluída em sua tese de doutorado apresentada na USP em 2020).
De fato, o que se vê, na retomada crítica da obra do inglês, é o prevalecimento de seu veio satírico; para Otto Maria Carpeaux, "salve-se a poesia satírica de Byron; condenou-se sem apelação sua poesia pseudorromântica".
Segundo o crítico, o "classicista contaminado pelo romantismo" e o "rebelde contra as convenções morais da sua terra" criaria "um novo tipo de poeta, até um novo tipo de homem, admirado e imitadíssimo"; mas, "com o tempo, inverteu-se tudo isso".
Como conclui a pesquisadora Solange Ribeiro de Oliveira, em artigo de 2011, "sua obra é hoje mais apreciada pelo realismo satírico dos três grandes poemas classicizantes de sua maturidade [...] do que pelas criações marcadas pela efusão emotiva que, de imediato, associamos com o byronismo".
Cabe relembrarmos que o byronismo se destaca na memória da poesia brasileira romântica: como sintetiza Alfredo Bosi, os "estudantes boêmios" de então "se entregam ao ‘spleen’ de Byron", "vivendo na província uma existência doentia e artificial [...]: Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Fagundes Varela...".
A "renascença" de Byron vem, assim, ligada à releitura de sua poesia mais "atrevida e espirituosa", como diria Augusto de Campos. O interesse por ela não escapou ao também poeta concreto Décio Pignatari, que traduziu um conjunto de estrofes de "Don Juan", publicado em seu livro "31 poetas 214 poemas" (1996).
A presente antologia, porém, não se restringe à poética mais mordaz ou subversiva de Byron, incluindo poemas produzidos em toda a sua vida, dividida em períodos, como logo se vê no sumário do livro: Infante (1798-1809), Viagem (1809-1811), Fama (1811-1816), Exílio (1816-1819), Revolta (1820-1823) e Grécia (1823-1824).
O conjunto traz estrofes da criação que propiciaria a fama súbita do poeta, em 1812, cujo título ora se traduz por "Peregrinação do Infante Harold – Uma Romança". Vejamos uma das "Spencerian stanzas" (compostas por oito versos pentâmetros iâmbicos, seguidos de um hexâmetro) do Canto II, a XXXIX, recriada por Vallias em oito dodecassílabos seguidos de um verso de 14 sílabas, mantendo-se o esquema rímico: "O Infante Harold navegou, passou defronte / Do árido ponto de onde Penélope via / As ondas; mais adiante o inesquecível monte, / O refúgio do amante, a tumba em que jazia / A lésbia. Safo escura! a tua poesia / Houvera de salvar um peito já imortal? Eternizou a vida, por que morreria? / Se a vida eternizada espera a lira, que ao / Filho da Terra serve de único Céu usual."
O acréscimo de sílabas pode ser visto como opção coerente com a tradução ao português de textos em idioma mais sintético, como é o inglês; contudo, tal expediente de adição, do qual o tradutor lança mão diversas vezes, não é sua regra: decidindo "caso a caso", traduz, por exemplo, tetrâmetros trocaicos em heptassílabos também trocaicos, caso dos "Versos ao Sr. Hodgson" ("Bend the canvas o’er the mast / From aloft the signal’s streaming" – "O velame sobe ao largo / O sinal também se agita").
Questões como a correspondência métrico-rítmica e outras tantas, próprias da tarefa de tradução poética, podem ser vislumbradas e discutidas por meio desta antologia —que também permite, diga-se, perceber as forças de consonância e dissonância na própria história literária.
Observemos mais dois breves exemplos da tradução de Vallias: primeiro, alguns versos (dodecassílabos) do início e do fim do poema cujo título traduziu por "Breu", "Darkness": "Eu tive um sonho que não foi de todo um sonho / A luz do sol estava extinta, enquanto estrelas / Erravam pelo espaço, escuras e sem rumo; [...] Na estagnação do ar, os ventos sufocavam, / E as nuvens pereciam: Breu não precisava / De ajuda alguma deles – Ele era o Universo".
A imagem é um retrato em preto e branco de um homem jovem, vestido com um terno escuro e uma gravata. Ele está posando em pé, com uma mão apoiada em uma superfície, e olhando diretamente para a câmera. O fundo é de uma tonalidade clara e desfocada, destacando a figura do homem.A imagem é um retrato em preto e branco de um homem jovem, vestido com um terno escuro e uma gravata. Ele está posando em pé, com uma mão apoiada em uma superfície, e olhando diretamente para a câmera. O fundo é de uma tonalidade clara e desfocada, destacando a figura do homem.
Esse poema —associado ao período em que o céu da Europa se escureceu devido à assombrosa erupção do Monte Tambora, na Indonésia— foi, recorde-se, traduzido por Castro Alves e incluído em seu "Espumas Flutuantes".
Toda nova tradução de um poema lembrado em marcante tradução anterior enfrentará o apego ao já conhecido e apreciado; confesso que a mim ecoam ainda, melódicos e soturnos, os versos finais do poeta romântico: "No estagnado céu murchara o vento; / esvaíram-se as nuvens. E nas trevas / era só trevas o universo inteiro". Por sinal, Vallias nos conta que sua antologia "começou a germinar" após a leitura de um artigo de Bráulio Tavares, no blog do autor, acerca desse poema e da tradução de Castro Alves.
Por fim, citemos para sua apreciação, leitor(a), algo do "Don Juan", escrito em pentâmetros iâmbicos, desta vez traduzidos na medida correspondente em português, o decassílabo: "Eu, que com Musas mais pedestres ando, / Não luto com vocês num alazão / Alado: lhes desejo sorte, e quando / Prestígio cobiçado e o gênio tão / em falta vierem, lembrem-se que dando / o justo mérito, um poeta não / Perde, e a lamúria de hoje não conduz / À glória que em futuro céu reluz".
Não devo encerrar este artigo sem reafirmar a força que adquirem as informações advindas da pesquisa do organizador e dos documentos do próprio escritor, relativos a um contexto distante do nosso, que podem nos causar profunda sensação e espanto, caso da imagem de Byron já doente e enfraquecido quando morava na Grécia —onde atuou com forte liderança na luta contra o domínio do Império Otomano—, recebendo sucessivamente em suas têmporas muitas sanguessugas, o que por certo apressou a morte do poeta enquanto jovem pelo esvaimento de seu sangue febril, agora com novas chances de revivescência.
Byron – Poemas, Cartas, Diários &c.
Preço R$ 149,90 (640 págs.) Autoria Lord Byron Editora Perspectiva Tradução, organização e introdução André Vallias
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