Foto: Wikimedia Commons |
Tradução / Um exército derrotado e um exército prostrado são duas coisas diferentes. Um exército tão apenas derrotado em batalha pode muitas vezes fazer retiradas bem-sucedidas, restaurar-se e reconstituir seu vigor - como fez Roma após sua humilhação em Canas, destruindo, por fim, sua grande rival, Cartago. Mas quando exércitos inteiros se veem prostrados, quando perdem a vontade de lutar, toda a nação também pode se prostrar. Foi o que aconteceu com os grandes impérios na Primeira Guerra Mundial. E é também o destino que ronda o exército ucraniano.
Como uma nação em guerra chega a um ponto em que seus combatentes se recusam a lutar?
Parte daquilo que "quebra" um exército é o desgaste, que resulta tanto das baixas quanto do trauma que acompanha as perdas no campo de batalha. O trauma entre os ainda vivos o erode. Sua vitalidade, seu vigor de combate, se escoa tanto a partir dos feridos quanto dos ilesos, enquanto o ardor e a esperança – as energias das quais depende seu desempenho em combate - vão se esgotando. Assim, o desgaste vai prostrando, tanto física quanto psicologicamente.
Quanto desgaste um exército pode aguentar antes de entrar em colapso? Cerca de um milhão de homens serviram no exército confederado na Guerra Civil norte-americana: 350 mil morreram e outros 200 mil ficaram feridos. Esse foi um desgaste verdadeiramente alucinante: metade de todos os homens que lutaram em um exército que, ao final, capitulou à União ainda inquebrantável. Seu comandante preferiu se render a lutar uma guerra perdida; e os soldados, que o teriam seguido até o inferno, depuseram suas armas.
Novamente a título de comparação, de 1914 a 1918 seis dos sete exércitos de grandes potências se desintegraram, levando a motins, rendições e revoluções. Suas perdas em batalha foram impressionantes, embora nenhuma tenha se aproximado do apocalipse confederado (equivalente a 5,38 % da população do sul dos Estados Unidos). A Alemanha perdeu 3,1% de sua população; a França, 3,6%.
As baixas, no entanto, são apenas parte da equação do desgaste. Com o tempo, elas drenam o ardor e a esperança que haviam chegado ao seu auge quando a guerra fora declarada, antes do sangue começar a ser derramado. No entanto, mesmo um exército exausto e desanimado continuará lutando, enquanto seus soldados permanecerem comprometidos com a causa. Assim, na Primeira Guerra Mundial, exércitos que sofreram dezenas de milhares de baixas em um único dia – a Grã-Bretanha sofreu 60 mil no primeiro dia da batalha do Somme; a Itália perdeu 350 mil em 17 dias, em Caporetto – de alguma forma continuaram lutando.
No entanto, o compromisso vai se vergar e claudicará se e quando três outros fatores se manifestarem; fatores que podem ser vistos como um sopro de feedback negativo, que inflama as brasas da angústia já estabelecida pelo desgaste.
O primeiro sopro de feedback negativo é aquele que ocorre quando se vê uma guerra que começou cheia de grandes esperanças de repente parecer invencível. As primeiras vitórias são agora memórias antigas. Mais batalhas são perdidas do que ganhas, e os custos de cada batalha continuam subindo até o limite da resistência humana. E aí aumentam novamente. O segundo sopro se dá quando o apoio externo dos aliados começa a evaporar. E este é um fator negativo especialmente agudo quando o apoio aliado for o fundamento emocional da crença do exército na sua vitória final.
Terceiro e finalmente, é o momento em que aqueles que iniciaram a guerra, aqueles que prometeram uma estrada pavimentada pela vitória e que juraram que o mundo apoiaria o exército até que ela fosse conquistada – não importa “quanto tempo fosse necessário” – começam a ser vistos, antes de tudo, como mentirosos e farsantes. O exército e a nação inteira terão sido traídos por seus líderes.
Tudo isso caiu sobre a Ucrânia nas últimas seis semanas.
Durante quase um ano, não houve vitórias, sequer vitórias sangrentas e debilitantes como a da quarta batalha de Karkhov. Os líderes ocidentais ainda afirmam que seu apoio continuará, mas agora a Aliança Ocidental reconhece que não pôde fornecer aos ucranianos material bom o suficiente sequer para ganhos táticos modestos na sua ofensiva sacrificial em curso, e que sabia disso. E, cada vez mais, os comandantes ucranianos em nível de unidade estão acusando os líderes superiores de simplesmente usá-los como bucha de canhão para satisfazer os senhores da OTAN. Não apenas pelotões, mas unidades maiores inteiras estão se rendendo às forças russas. A moral das tropas está se esfarelando.
Esse é o desgaste da guerra de atrito se concretizando. Os impérios caídos em 1918 – Alemanha, Áustria-Hungria, Rússia e o Otomano – precisaram de quatro anos para chegar a esse ponto. Em um terço desse tempo, a Ucrânia perdeu 2,5% de sua população. Esse cálculo corresponde ao que os velhos historiadores soviéticos chamavam de “perdas insubstituíveis”, ou seja, o montante dos soldados que jamais retornará às fileiras.
Na realidade, as perdas ucranianas reais podem ser maiores. Calculá-las é uma avaliação complexa, baseada numa metodologia minuciosa, tanto quanto nas admissões indiscretas da OTAN, da Ucrânia e da mídia ocidental; tudo isso ponderado pelo incontestável fator principal de produção de baixas, consagrado a partir da Primeira Guerra Mundial: a proporção no uso da artilharia para ambos os lados.
Os resultados favorecem a Rússia sobre a Ucrânia na razão de 10 para 1. Adicione-se a isso a devoção inflexível do comando ucraniano aos ataques com muitas baixas, como também a igual devoção da Rússia à “conservação da força humana de combate”, e o quadro vai parecer totalmente sombrio para Kiev. Agora, novas evidências da escala da catástrofe ucraniana, a partir de muitos índices, começam a se acumular: o recenseando dos obituários ucranianos, publicados em jornais e redes sociais, ou mesmo de chips de celulares de linhas de assinantes que deixaram de funcionar.
Isso levanta a questão: as forças russas estão em melhor forma? Decididamente, sim. Depois de mais de 500 dias, o esforço de guerra russo agora se beneficia: (i) de um índice de baixas irrecuperáveis muito menor, em um fator de pelo menos 5 para 1; (ii) da confiança disseminada no exército, resultante da sua resiliência frente às perdas; (iii) da bem-sucedida prova de adaptação ao combate real, acompanhada da rápida evolução da sua arte operacional; (iv) de uma série de sucessos ao longo da linha frente, que lhe insufla um ímpeto estratégico (“strategic momentum”); (v) de um sentimento em todo o país de que a Rússia possui os combatentes, as ferramentas e a habilidade duramente conquistada no campo de batalha para concluir o trabalho; e (vi) da imagem evidente do último exército ucraniano construído pela OTAN queimando diante de seus olhos. O que soma para a Rússia é subtraído da Ucrânia.
Apesar da alta contagem de baixas na Ucrânia, alguns afirmam que a situação geral ainda seria salvável. No entanto, as consequências das baixas é o fator decisivo, porque as perdas na guerra devem ser comparadas com a saúde e a estabilidade de toda a sociedade. A Ucrânia tem uma taxa de fertilidade [entre 0,7 e 0,9 filhos por mulher] que está no nível mais baixo do mundo, e uma pirâmide demográfica afunilada nas faixas de idade mais férteis. Dito de modo mais direto, os homens perdidos nos últimos 500 dias não gerarão progênie.
É por isso que um cálculo das “perdas insubstituíveis” ucranianas é significativo. Não são apenas os mortos, mas também os aleijados masculinos que podem derrubar uma sociedade. Essa é a espiral na qual a França sucumbiu após a Primeira Guerra Mundial. Várias centenas de milhares de homens perderam um ou mais membros. Sabemos agora que a Ucrânia está replicando o horror francês. Cinquenta mil ucranianos perderam um ou mais membros, número próximo aos 67 mil da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Em 1914, havia 39 milhões de franceses. Em 1940, eram ainda 39 milhões.
A Ucrânia em 1994 tinha 52 milhões de habitantes. Então, o desastre se instalou. Primeiro, os jovens mais brilhantes foram buscar um futuro melhor na União Europeia e na Rússia. Depois, o terror político após 2014 acelerou a fuga. Agora, a guerra efetivamente colocou fora do seu espaço geográfico metade da população. A Ucrânia era uma nação de cerca de 33 milhões no início de 2022. Hoje, um quarto da já reduzida população do país fugiu para a União Europeia, e outro quarto está agora nos oblasts russos ou residindo como novos migrantes na própria Federação Russa. A Ucrânia, com 20 milhões, é um pouco maior do que a Holanda e um pouco menor que Taiwan.
No entanto, em termos de baixas para a população, as perdas militares ucranianas, após mais de 500 dias de guerra, estão se aproximando das sofridas pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial em mais de 1.500 dias. Esta é uma taxa de desgaste catastrófica, agravada por todos os três ciclos de feedback negativo que podem quebrar um exército e uma nação. Ao longo da primavera e do verão boreal, as forças ucranianas foram lançadas na batalha e moídas. No outono, o exército combatente estará esgotado, e esse será o trágico destino do "melhor da Ucrânia" em 2023. Em setembro, o que restará será torcido e dobrado até quebrar, pelos ventos impiedosos da guerra.
Michael Vlahos é membro sênior do Institute for Peace & Diplomacy.
Como uma nação em guerra chega a um ponto em que seus combatentes se recusam a lutar?
Parte daquilo que "quebra" um exército é o desgaste, que resulta tanto das baixas quanto do trauma que acompanha as perdas no campo de batalha. O trauma entre os ainda vivos o erode. Sua vitalidade, seu vigor de combate, se escoa tanto a partir dos feridos quanto dos ilesos, enquanto o ardor e a esperança – as energias das quais depende seu desempenho em combate - vão se esgotando. Assim, o desgaste vai prostrando, tanto física quanto psicologicamente.
Quanto desgaste um exército pode aguentar antes de entrar em colapso? Cerca de um milhão de homens serviram no exército confederado na Guerra Civil norte-americana: 350 mil morreram e outros 200 mil ficaram feridos. Esse foi um desgaste verdadeiramente alucinante: metade de todos os homens que lutaram em um exército que, ao final, capitulou à União ainda inquebrantável. Seu comandante preferiu se render a lutar uma guerra perdida; e os soldados, que o teriam seguido até o inferno, depuseram suas armas.
Novamente a título de comparação, de 1914 a 1918 seis dos sete exércitos de grandes potências se desintegraram, levando a motins, rendições e revoluções. Suas perdas em batalha foram impressionantes, embora nenhuma tenha se aproximado do apocalipse confederado (equivalente a 5,38 % da população do sul dos Estados Unidos). A Alemanha perdeu 3,1% de sua população; a França, 3,6%.
As baixas, no entanto, são apenas parte da equação do desgaste. Com o tempo, elas drenam o ardor e a esperança que haviam chegado ao seu auge quando a guerra fora declarada, antes do sangue começar a ser derramado. No entanto, mesmo um exército exausto e desanimado continuará lutando, enquanto seus soldados permanecerem comprometidos com a causa. Assim, na Primeira Guerra Mundial, exércitos que sofreram dezenas de milhares de baixas em um único dia – a Grã-Bretanha sofreu 60 mil no primeiro dia da batalha do Somme; a Itália perdeu 350 mil em 17 dias, em Caporetto – de alguma forma continuaram lutando.
No entanto, o compromisso vai se vergar e claudicará se e quando três outros fatores se manifestarem; fatores que podem ser vistos como um sopro de feedback negativo, que inflama as brasas da angústia já estabelecida pelo desgaste.
O primeiro sopro de feedback negativo é aquele que ocorre quando se vê uma guerra que começou cheia de grandes esperanças de repente parecer invencível. As primeiras vitórias são agora memórias antigas. Mais batalhas são perdidas do que ganhas, e os custos de cada batalha continuam subindo até o limite da resistência humana. E aí aumentam novamente. O segundo sopro se dá quando o apoio externo dos aliados começa a evaporar. E este é um fator negativo especialmente agudo quando o apoio aliado for o fundamento emocional da crença do exército na sua vitória final.
Terceiro e finalmente, é o momento em que aqueles que iniciaram a guerra, aqueles que prometeram uma estrada pavimentada pela vitória e que juraram que o mundo apoiaria o exército até que ela fosse conquistada – não importa “quanto tempo fosse necessário” – começam a ser vistos, antes de tudo, como mentirosos e farsantes. O exército e a nação inteira terão sido traídos por seus líderes.
Tudo isso caiu sobre a Ucrânia nas últimas seis semanas.
Durante quase um ano, não houve vitórias, sequer vitórias sangrentas e debilitantes como a da quarta batalha de Karkhov. Os líderes ocidentais ainda afirmam que seu apoio continuará, mas agora a Aliança Ocidental reconhece que não pôde fornecer aos ucranianos material bom o suficiente sequer para ganhos táticos modestos na sua ofensiva sacrificial em curso, e que sabia disso. E, cada vez mais, os comandantes ucranianos em nível de unidade estão acusando os líderes superiores de simplesmente usá-los como bucha de canhão para satisfazer os senhores da OTAN. Não apenas pelotões, mas unidades maiores inteiras estão se rendendo às forças russas. A moral das tropas está se esfarelando.
Esse é o desgaste da guerra de atrito se concretizando. Os impérios caídos em 1918 – Alemanha, Áustria-Hungria, Rússia e o Otomano – precisaram de quatro anos para chegar a esse ponto. Em um terço desse tempo, a Ucrânia perdeu 2,5% de sua população. Esse cálculo corresponde ao que os velhos historiadores soviéticos chamavam de “perdas insubstituíveis”, ou seja, o montante dos soldados que jamais retornará às fileiras.
Na realidade, as perdas ucranianas reais podem ser maiores. Calculá-las é uma avaliação complexa, baseada numa metodologia minuciosa, tanto quanto nas admissões indiscretas da OTAN, da Ucrânia e da mídia ocidental; tudo isso ponderado pelo incontestável fator principal de produção de baixas, consagrado a partir da Primeira Guerra Mundial: a proporção no uso da artilharia para ambos os lados.
Os resultados favorecem a Rússia sobre a Ucrânia na razão de 10 para 1. Adicione-se a isso a devoção inflexível do comando ucraniano aos ataques com muitas baixas, como também a igual devoção da Rússia à “conservação da força humana de combate”, e o quadro vai parecer totalmente sombrio para Kiev. Agora, novas evidências da escala da catástrofe ucraniana, a partir de muitos índices, começam a se acumular: o recenseando dos obituários ucranianos, publicados em jornais e redes sociais, ou mesmo de chips de celulares de linhas de assinantes que deixaram de funcionar.
Isso levanta a questão: as forças russas estão em melhor forma? Decididamente, sim. Depois de mais de 500 dias, o esforço de guerra russo agora se beneficia: (i) de um índice de baixas irrecuperáveis muito menor, em um fator de pelo menos 5 para 1; (ii) da confiança disseminada no exército, resultante da sua resiliência frente às perdas; (iii) da bem-sucedida prova de adaptação ao combate real, acompanhada da rápida evolução da sua arte operacional; (iv) de uma série de sucessos ao longo da linha frente, que lhe insufla um ímpeto estratégico (“strategic momentum”); (v) de um sentimento em todo o país de que a Rússia possui os combatentes, as ferramentas e a habilidade duramente conquistada no campo de batalha para concluir o trabalho; e (vi) da imagem evidente do último exército ucraniano construído pela OTAN queimando diante de seus olhos. O que soma para a Rússia é subtraído da Ucrânia.
Apesar da alta contagem de baixas na Ucrânia, alguns afirmam que a situação geral ainda seria salvável. No entanto, as consequências das baixas é o fator decisivo, porque as perdas na guerra devem ser comparadas com a saúde e a estabilidade de toda a sociedade. A Ucrânia tem uma taxa de fertilidade [entre 0,7 e 0,9 filhos por mulher] que está no nível mais baixo do mundo, e uma pirâmide demográfica afunilada nas faixas de idade mais férteis. Dito de modo mais direto, os homens perdidos nos últimos 500 dias não gerarão progênie.
É por isso que um cálculo das “perdas insubstituíveis” ucranianas é significativo. Não são apenas os mortos, mas também os aleijados masculinos que podem derrubar uma sociedade. Essa é a espiral na qual a França sucumbiu após a Primeira Guerra Mundial. Várias centenas de milhares de homens perderam um ou mais membros. Sabemos agora que a Ucrânia está replicando o horror francês. Cinquenta mil ucranianos perderam um ou mais membros, número próximo aos 67 mil da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Em 1914, havia 39 milhões de franceses. Em 1940, eram ainda 39 milhões.
A Ucrânia em 1994 tinha 52 milhões de habitantes. Então, o desastre se instalou. Primeiro, os jovens mais brilhantes foram buscar um futuro melhor na União Europeia e na Rússia. Depois, o terror político após 2014 acelerou a fuga. Agora, a guerra efetivamente colocou fora do seu espaço geográfico metade da população. A Ucrânia era uma nação de cerca de 33 milhões no início de 2022. Hoje, um quarto da já reduzida população do país fugiu para a União Europeia, e outro quarto está agora nos oblasts russos ou residindo como novos migrantes na própria Federação Russa. A Ucrânia, com 20 milhões, é um pouco maior do que a Holanda e um pouco menor que Taiwan.
No entanto, em termos de baixas para a população, as perdas militares ucranianas, após mais de 500 dias de guerra, estão se aproximando das sofridas pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial em mais de 1.500 dias. Esta é uma taxa de desgaste catastrófica, agravada por todos os três ciclos de feedback negativo que podem quebrar um exército e uma nação. Ao longo da primavera e do verão boreal, as forças ucranianas foram lançadas na batalha e moídas. No outono, o exército combatente estará esgotado, e esse será o trágico destino do "melhor da Ucrânia" em 2023. Em setembro, o que restará será torcido e dobrado até quebrar, pelos ventos impiedosos da guerra.
Michael Vlahos é membro sênior do Institute for Peace & Diplomacy.
Nenhum comentário:
Postar um comentário