Uma revolução na arqueologia está transformando nossa imagem das populações passadas e o escopo das liberdades humanas
David Wengrow
Ruínas no Parque Nacional Tikal, Guatemala. Foto de Mario Bollini/Flickr |
Tradução / Os historiadores contemporâneos nos dizem que, no início da Era Comum, aproximadamente três quartos da população mundial viviam em apenas quatro impérios (os romanos e os han; menos conhecidos, os partas e cuchanos). Vale refletir. Se for verdade, significa que a grande maioria das pessoas que já existiram nasceu, viveu e morreu sob o domínio imperial. Tais afirmações não são originais, mas para aqueles que compartilham da convicção de Arnold Toynbee, de que a história deve ser mais do que “apenas um fato maldita após o outra”, elas estão assumindo uma nova importância.
Para alguns estudiosos, os impérios são estruturas humanas óbvias e naturais, ou mesmo projetos políticos atraentes que, uma vez criados, são reproduzidos largamente ao longo da história. A sugestão é que, se os súditos de um império passado escapassem desta condição, teriam sido imprudentes; e a maioria preferiria a vida nos limites imperiais a qualquer coisa que estivesse além, na floresta ou nos pântanos, nas montanhas e encostas, ou nas vastas estepes. Essas ideias têm raízes profundas, o que pode ser uma das razões pelas quais são pouco contestadas.
O complexo do templo no Parque Nacional Tikal, Guatemala. Foto de Ryanacandee/Flickr |
No final do século XVIII, Edward Gibbon – inspirando-se em escritores antigos como Tácito – descreveu o Império Romano (antes de sua “declínio e queda”) como estendido pela “parte mais agradável da Terra e a porção mais civilizada da humanidade”, cercado por bárbaros cuja liberdade era pouco mais do que um efeito colateral de seus modos de vida primitivos. O bárbaro de Gibbon é um ocioso inveterado: livre, sim, mas apenas para viver em lares dispersos, vestindo peles como roupas, ou seguindo seus “monstruosos rebanhos de gado”. “Sua pobreza”, escreveu Gibbon sobre os antigos germânicos, “garantiu sua liberdade.”
É dessas fontes que tiramos não apenas nossa noção de império como auxiliar da civilização, mas também nossa imagem contemporânea da vida antes e além do império: de pequena escala, caótica e largamente improdutiva. Em suma, tudo o que ainda é implícito pela palavra “tribal”. Tribos são para os impérios (e seus defensores acadêmicos) como as crianças eram para os adultos da geração de Gibbon – criaturas às vezes encantadoras ou engraçadas, mas quase sempre uma força disruptiva, cujo destino é ser disciplinada, colocada em trabalho útil e governada, pelo menos até estarem prontas para se governarem de forma adulta. Caso contrário, devem ser confinadas, punidas e, se necessário, eliminadas das páginas da história.
Ideias desse tipo são tão antigas quanto o próprio império. Em sua correspondência diplomática, que pode ser seguida até um período de mais de 3.000 anos atrás, os governantes do Egito e da Síria reclamam incessantemente das atividades subversivas de grupos chamados Apiru. Os estudiosos do antigo Oriente Médio acreditavam fosse uma referência aos hebreus; mas agora pensa-se que seja um termo genérico, usado quase indiscriminadamente para qualquer grupo de desertores políticos, dissidentes, insurgentes ou refugiados que ameaçavam os interesses dos vassalos do Egito na vizinha Canaã (assim como alguns políticos modernos usam hoje a palavra “terrorista” para efeito retórico).
Na Babilônia, tais grupos – quando não rotulados como tribais ou étnicos – podiam ser descritos de várias maneiras como “pessoas dispersas”, “quebradores de cabeça” ou simplesmente “inimigos”. Nos primeiros séculos a.C., emissários do Império Han escreviam de maneira similar sobre os habitantes rebeldes dos pântanos das regiões costeiras tropicais ao sul. Hoje, os historiadores veem esses antigos habitantes de Guangdong e Fujian pelos olhos dos Han, como os “Bai-yue”, que supostamente raspavam a cabeça, cobriam o corpo com tatuagens e sacrificavam humanos vivos a seus deuses selvagens. Após séculos de resistência e guerrilha, aprendemos que os Yue capitularam. Sob as ordens do imperador Wu, a maioria foi deportada e colocada em trabalho forçado, suas terras entregues a colonos do norte, incluindo muitos soldados aposentados.
Os impérios sempre criaram imagens vívidas e perturbadoramente violentas da vida tribal em suas fronteiras, colocando sob luz paternalista a violência implícita em seus próprios projetos políticos. Dessa forma, nos convencemos de que violência e dominação são o substrato necessário da “civilização”, ou que a Europa após a queda de Roma alcançou algo único – até mesmo antinatural, em escala global – ao romper decisivamente com ciclos antigos de império e forjar um caminho singular para a liberdade e prosperidade. Uma vez enraizadas em nossas imaginações, essas formas de pensar são muito difíceis de reverter. Mesmo estudiosos experientes de disciplinas empiricamente fundamentadas podem sustentar tais argumentos com base nas fontes mais frágeis.
De acordo com Walter Scheidel, professor de clássicos e história na Universidade de Stanford, na Califórnia, os números populacionais citados no início deste ensaio “transmitem sensação da vantagem competitiva de um tipo particular de Estado: estruturas imperiais mantidas coesas por elites extrativas poderosas.” Em “termos quantitativos”, ele nos diz em “The Great Leveller” (2017), que o modelo “provou-se extremamente bem-sucedido”. Recuando ainda mais no tempo, para a própria “origem do Estado”, Scheidel conjectura que “3.500 anos atrás, quando as entidades políticas de nível estatal cobriam talvez não mais do que 1% da superfície terrestre da Terra (excluindo a Antártica), elas já reuniam até metade da nossa espécie.”
Certamente é verdade que, em qualquer período da história humana, sempre haverá aqueles que se sentem mais confortáveis sob ordens. Como Étienne de La Boétie já havia apontado no século XVI, a fonte da “servidão voluntária” é talvez a questão política mais importante de todas. Mas de onde vêm as estatísticas para sustentar tais afirmações? São confiáveis? Ao descer para as notas de rodapé, você descobre que todos os autores citam a mesma fonte: um Atlas de História Populacional Mundial, publicado em 1978. Scheidel fornece uma citação adicional, para o livro “How Many People Can the Earth Support?” (1995), de Joel Cohen, mas trata-se apenas de um gráfico mostrando estimativas de tamanhos populacionais humanos passados, em que todas as figuras para a era pré-moderna derivam novamente do Atlas de História Populacional Mundial ou de publicações subsequentes baseadas nele.
À luz de tudo isso, qualquer pessoa que consulte hoje o Atlas de História Populacional Mundial pela primeira vez terá uma surpresa. É um tomo despretensioso, e muito antigo, por sinal. Compreende gráficos populacionais de fácil leitura, para diferentes regiões do mundo, acompanhados de ensaios concisos, que às vezes se aproximam do lacônico. Há também um Apêndice sobre “Confiabilidade” que começa assim: “As hipóteses do demógrafo histórico não são, no estado atual da arte, testáveis e, consequentemente, a ideia de sua confiabilidade no sentido estatístico está fora de questão.”
Voltarei a esse ponto importante mais tarde.
Primeiro, vale a pena refletir sobre o que significa falar da “vantagem competitiva” de Estados governados por elites extrativas. No mínimo, isso introduz questões sobre a força e viabilidade a longo prazo de certos tipos de sociedade e as fraquezas endêmicas de outras. Apenas os “vencedores”, presume-se, conseguem forjar caminhos viáveis para o futuro. Esses, no entanto, são assuntos de opinião, não de estatísticas. Eles ignoram questões como “Quantos se beneficiaram de viver em estruturas imperiais?” ou “O que é um caminho viável para o futuro?” Que “vantagens”, podemos perguntar, teve uma garota capturada por piratas cilícios e vendida nos mercados de escravos de Delos na era romana, em comparação com uma que vivia livremente nas Colinas Nuba, do sul do Cordofão? Diz-se que os escravos trocavam de mãos a um ritmo de 10 mil por dia em Delos, e o número total de escravos no início do Império Romano poderia ter sido entre 6 e 10 milhões. Em que sentido seus números podem ser somados no lado dos “vencedores”?
Pensar “em termos quantitativos” não nos permite superar estes temas, ou não deveria. As dúvidas persistem. Em que, exatamente, os impérios antigos foram “bem sucedidos”, se foram necessários níveis extraordinários de violência, destruição e deslocamento de populações para que se mantivessem? Hoje parece muito possível que mais 2 mil anos de governança mundial por “elites extrativas poderosas” possam levar à destruição da maior parte da vida na Terra. Muitos pesquisadores acreditam que isso poderá acontecer muito antes, se mantivermos o status quo. Olhando para trás a partir de tal futuro, quem parecerá ser o “vencedor” da história? A história terá nos transformado todos em perdedores? Será que os “mais aptos” terão encontrado uma rota de saída, uma maneira de colonizar outras partes do sistema solar, fundando colônias em Marte ou Vênus? Se houver escolas (ou pelo menos palestras TED), talvez as gerações futuras olhem para trás e perguntem se poderíamos ter aprendido algo com as tradições daqueles que viveram de outra forma. E se não houver um Planeta B? Ou talvez, até lá, nada disso realmente importe muito, porque o passado terá sido automatizado. Em vez de historiadores, teremos “máquinas de história” baseadas em algoritmos e bancos de dados: mais fatos registrados, projetados pelos sobreviventes do último ataque burocrático ao que um dia foi carinhosamente chamado de “as humanidades”.
Voltemos às figuras no Atlas da História Populacional do Mundo. Ele estima 46 milhões de súditos romanos e 50 milhões de súditos han. Vamos supor, por um momento, que esteja certo. Se combinarmos com estatísticas de outros impérios da mesma época – isso equivale a “entre dois terços e três quartos de todas as pessoas vivas na época” (citando Scheidel). Mas o que o Atlas nos diz sobre todas as outras partes do mundo antigo que estavam além do alcance de elites extrativas? Elas estavam realmente tão anuladas?
Uma maneira de controlar a qualidade da especulação histórica é usar fontes rigorosas e atualizadas. Nas ciências sociais, basear afirmações importantes em uma fonte de 1978 é voltar um pouco no tempo. Questões tão significativas foram objeto de pesquisas contínuas? Ao longo dos últimos 45 anos, a compreensão dos estudiosos sobre a demografia romana e chinesa imperial pode não ter mudado tanto. Mas não podemos afirmar que não houve progresso relevante, ou mesmo vital, em nosso conhecimento de outras partes do mundo. Isso é especialmente verdade em minha área: a arqueologia.
Nas últimas décadas, espaços geográficos que antes eram considerados vazios, ou descartados como “um retrocesso paleolítico” (como nosso Atlas de 1978 refere-se à a Austrália Aborígene), foram inundados com novos dados. A arqueologia, especificamente os novos avanços na arqueologia de assentamentos e métodos de levantamento, foi de grande valia. Entre outras coisas, essas novas técnicas estão revelando tradições inteiras de vida urbana, abrangendo séculos ou até milênios, onde antes não se suspeitava de nada. Todos eles estão no escopo dos últimos 5.000 anos, mas poucos podem ser identificados com o surgimento de reinos ou impérios organizados burocraticamente.
Nos anos que se seguiram à publicação do Atlas, arqueólogos que trabalhavam no delta interior do Médio Níger revelaram evidências de uma próspera civilização urbana sem sinais discerníveis de governo ou autoridade central, focada no local de Jenne-jeno, e que antecedeu os impérios de Gana, Mali e Songhai por alguns séculos. A China, também, ganhou uma longa história de cidades antes do império, desde as partes baixas do rio Amarelo até o vale do Fen, na província de Shanxi, e a “cultura Liangzhu” de Jiangsu e Zhejiang. O mesmo é verdade para as regiões costeiras do Peru, onde arqueólogos descobriram grandes assentamentos com praças afundadas e grandes plataformas, quatro milênios mais antigas do que o Império Inca. Na Ucrânia, antes da invasão russa, o trabalho arqueológico nas estepes ao norte do Mar Negro – que autores gregos antigos retrataram como “estepes bárbaras”, uma terra de nômades ferozes – estava gerando evidências detalhadas de uma tradição urbana perdida, 3.000 anos antes de Heródoto; em locais como Nebelivka, por exemplo.
Como David Graeber e eu observamos em O Despertar de Tudo — Uma nova história da humanidade, nosso conhecimento sobre essas regiões e suas histórias profundas aumentou exponencialmente nas últimas décadas. Por que, então, recuar tão apressadamente para o estado do conhecimento existente em 1978, e perder todas essas novas informações? Em breve, teremos uma ideia mais clara de quão instáveis as coisas podem ficar. Primeiro, porém, há mais a dizer sobre a questão da confiabilidade. Colin McEvedy e Richard Jones – que escreveram o Atlas da História Populacional do Mundo – foram surpreendentemente francos sobre a qualidade de seus dados: “não tentaríamos disfarçar a natureza hipotética de nosso tratamento dos períodos anteriores… não tiramos os números do ar. Bem, nem sempre.” O próprio reconhecimento deles da natureza provisória e hipotética de alguns desses números é interessante, já que Scheidel não é o único a basear algumas afirmações extremamente amplas nesta única, e datada, fonte.
No ano passado, Timothy Guinnane, professor emérito de economia da Universidade de Yale, decidiu soar o alarme sobre o Atlas.
Escrevendo no The Journal of Economic History, Guinnane avaliou os méritos acadêmicos da obra. Ele o considerou “não confiável” – pouco mais do que uma enciclopédia de estatísticas zumbis. Guinnane acusa o Atlas de, às vezes, relatar estimativas populacionais sem qualquer evidência de apoio aparente, ou sem indicação de como uma determinada fonte foi convertida em estatísticas utilizáveis. Ele sugere que os historiadores parem de usá-lo, porque as alegações sobre a história global baseadas no Atlas assemelham-se ao proverbial pedaço de queijo suíço velho: faltam partes, e o que está lá está errado. Seus autores, ele observa, eram muitas vezes mais francos sobre as lacunas em seu trabalho, e a natureza especulativa de seus gráficos populacionais, do que os pesquisadores que continuam a usar seus dados.
Em uma entrevista recente à Long Now Foundation, Guinnane explica o que o inspirou a escrever seu artigo depois de ver um estudioso após outro fazer “referências a dados desse tipo”. Confrontado, repetidamente, com estatísticas que têm um impacto importante em nossa compreensão da história, incluindo a história de longo prazo do uso humano da terra e da mudança ambiental, ele quis saber de onde vêm os números populacionais; da mesma forma que podemos perguntar como alguém pode supor que, no início da Era Comum, a maioria das pessoas na Terra vivia sob domínio imperial. Por que pensamos isso? Nas próprias palavras de Guinnane, os resultados de suas investigações o deixaram “perplexo”, pois sua experiência indica que “tais dados não existem”. Daí o título de seu artigo na revista: “We Do Not Know the Population of Every Country in the World for the Past Two Thousand Years” [“Não sabemos a população de cada país nos últimos 2 mil anos”] (muito menos nos últimos 5 mil…).
Em um futuro próximo, os historiadores poderão se perguntar como, meio século após sua publicação, uma fonte tão frágil como o Atlas tornou-se a base única para uma demografia do apocalipse. Como, sobre fundações tão frágeis, conseguimos injetar em nossas mentes a noção de que existe algo natural em viver em sociedades onde os governantes exercem autoridade arbitrária sobre súditos? Onde a dissidência foi enfrentada com brutalidade, prisão, exílio ou até mesmo morte; e onde a única alternativa era algo como a “liberdade” dos antigos alemães de Gibbon: vida de liberdade, mas também de pobreza e ignorância generalizadas.
Guinnane cita proeminentes historiadores econômicos que continuam a usar o Atlas de várias maneiras. Como ele enfatiza corretamente, a culpa não deve recair sobre estudiosos individuais. Ele também está certo ao dizer que, enquanto editoras acadêmicas respeitáveis continuarem a aceitar trabalhos baseados em tais fontes, é improvável que vejamos muito progresso: “as estimativas não melhorarão, a menos que nos importemos o suficiente com bons dados para parar de usar ingenuamente os antigos.” A arqueologia, sugiro, tem um papel vital a desempenhar aqui.
Vejamos o exemplo da floresta amazônica, uma área de mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, sem história de império até a conquista europeia, e que o Atlas caracteriza como mais uma região demográfica marginal, escassamente povoada por caçadores e coletores nômades, cujo modo de subsistência (seus autores assumiram) nunca poderia sustentar populações densas. Como isso se sustenta hoje?
Não se sustenta. Na última década, os arqueólogos têm revirado completamente essa imagem, usando lasers aéreos para olhar através da copa das árvores. Paisagens tropicais que resistiam a levantamentos terrestres estão revelando seus segredos. Em vez de lacunas no mapa, agora somos capazes de ver cenários altamente cultivados com infraestrutura que remonta aos primeiros séculos a.C. Redes de estradas, terraços, obras cerimoniais, bairros residenciais planejados e sistemas de assentamento regional organizados em padrões de precisão geométrica podem ser rastreados por toda a Amazônia, do Brasil à Bolívia, até as encostas orientais dos Andes. Em certas partes da Amazônia, a floresta em si revela-se um produto da interação humana com o solo. Com o tempo, isso gerou as ricas terras ‘antropogênicas’ chamadas de “terras pretas de índio”, com níveis de fertilidade muito superiores aos dos solos tropicais comuns. Alguns antropólogos acreditam agora que entre 10.000 e 20.000 sítios de grande escala permanecem a ser descobertos por toda a Amazônia. Descobertas igualmente surpreendentes estão surgindo no Sudeste Asiático, e podemos esperar encontrá-las também nas partes florestais do continente africano.
Os mesmos procedimentos estão mudando nossa visão sobre paisagens tropicais que testemunharam o surgimento e a queda de grandes reinos e impérios. Os arqueólogos agora acreditam que, no ano 500 d.C., entre 10 e 15 milhões de pessoas viviam nas terras baixas maias de Yucatán e do norte da Guatemala. Para comparação, o Atlas apresenta uma figura de apenas 2 milhões para todo o México na mesma era, incluindo as cidades indígenas do Altiplano (pelo menos algumas das quais, agora sabemos, eram organizadas não como impérios ou reinos, mas como repúblicas autônomas, muito antes da conquista espanhola).
É fácil, com o incentivo de obras como o Atlas, imaginar a história antiga como um tabuleiro de xadrez de reinos e impérios. Mas isso também é muito enganoso. Territórios antigos, nas terras baixas maias e no Sudeste Asiático, tinham fronteiras porosas, constantemente em mudança e abertos à contestação. A autoridade diminuía com a distância do centro. A guerra e o tributo eram, em grande parte, assuntos sazonais, após os quais o poder coercitivo recuava. Como aponta a arqueóloga Monica Smith, somente o historiador mais ingênuo assumiria que as alegações inscritas nos monumentos imperiais são um simples reflexo da realidade política. Claro que os governantes antigos adoravam se apresentar como “soberanos dos quatro cantos”, “mestres do mundo conhecido”, e assim por diante. No entanto, nenhum imperador do mundo antigo poderia sequer imaginar poderes de vigilância como os que agora desfruta qualquer ditador ou oligarca menor.
Em uma escala global, estamos testemunhando uma revolução na nossa compreensão da demografia antiga. Ignorar isso é entregar-se a uma espécie cruel de brincadeira intelectual, pela qual o genocídio das populações indígenas, nos últimos 500 anos – é naturalizado como uma ausência perene de pessoas. Também não podemos assumir que, se quisermos entender as perspectivas do nosso mundo moderno, as únicas “grandes” histórias que vale a pena contar são as dos impérios.
O mundo em que vivemos hoje não é apenas aquele criado por figuras como Tibério de Roma, ou o Imperador Wu, de Han. Até tempos surpreendentemente recentes, espaços de liberdade humana existiram em grandes partes do nosso planeta. Milhões de pessoas viviam neles. Não sabemos seus nomes, já que não os gravaram em pedra, mas sabemos que muitos viviam vidas nas quais era possível fazer mais do que apenas garantir a sobrevivência ou ensaiar o roteiro de outra pessoa sobre “a origem do Estado”. Era possível se afastar, desobedecer, experimentar outras formas de vida, até mesmo criar novas formas de realidade social.
Às vezes os não livres também faziam isso, enfrentando riscos muito maiores. Quantos, naquela época, preferiam o controle imperial à liberdade não imperial? Quantos tinham uma escolha? Quanta escolha temos agora? No futuro, será necessário mais do que estatísticas obsoletas para nos impedir de fazer essas perguntas. Existem histórias enterradas, sobre política e valores humanos. O solo da Terra não é apenas o sistema de suporte à vida de nossa espécie, mas também um arquivo forense, contendo evidências preciosas para desafiar narrativas arcaicas sobre as origens da desigualdade, propriedade privada, patriarcado, guerra, vida urbana e o Estado – narrativas que nasceram diretamente da experiência do império, escritas pelos “vencedores” de um futuro que ainda pode nos transformar a todos em perdedores.
Investigar o passado humano dessa maneira não é uma busca por utopia, mas uma maneira de nos libertar para pensar sobre as verdadeiras possibilidades da existência humana. Livres de suposições teóricas ultrapassadas e interpretações dogmáticas de dados obsoletos, poderíamos olhar com novos olhos para o próprio significado de termos como “civilização”? Nossa espécie existe há cerca de 300 mil anos. Estamos à beira de um precipício, confrontando um futuro de colapso ambiental, erosão da democracia e guerras de destruição sem precedentes: uma nova era do império, talvez a última em um ciclo de eras que, pelo que realmente sabemos, pode representar apenas uma fração modesta da experiência humana.
Para aqueles que buscam mudar o curso das coisas, tal incerteza sobre o alcance das liberdades humanas pode, por si mesma, ser uma fonte de libertação e abrir caminhos para outros futuros.
Voltarei a esse ponto importante mais tarde.
Primeiro, vale a pena refletir sobre o que significa falar da “vantagem competitiva” de Estados governados por elites extrativas. No mínimo, isso introduz questões sobre a força e viabilidade a longo prazo de certos tipos de sociedade e as fraquezas endêmicas de outras. Apenas os “vencedores”, presume-se, conseguem forjar caminhos viáveis para o futuro. Esses, no entanto, são assuntos de opinião, não de estatísticas. Eles ignoram questões como “Quantos se beneficiaram de viver em estruturas imperiais?” ou “O que é um caminho viável para o futuro?” Que “vantagens”, podemos perguntar, teve uma garota capturada por piratas cilícios e vendida nos mercados de escravos de Delos na era romana, em comparação com uma que vivia livremente nas Colinas Nuba, do sul do Cordofão? Diz-se que os escravos trocavam de mãos a um ritmo de 10 mil por dia em Delos, e o número total de escravos no início do Império Romano poderia ter sido entre 6 e 10 milhões. Em que sentido seus números podem ser somados no lado dos “vencedores”?
Pensar “em termos quantitativos” não nos permite superar estes temas, ou não deveria. As dúvidas persistem. Em que, exatamente, os impérios antigos foram “bem sucedidos”, se foram necessários níveis extraordinários de violência, destruição e deslocamento de populações para que se mantivessem? Hoje parece muito possível que mais 2 mil anos de governança mundial por “elites extrativas poderosas” possam levar à destruição da maior parte da vida na Terra. Muitos pesquisadores acreditam que isso poderá acontecer muito antes, se mantivermos o status quo. Olhando para trás a partir de tal futuro, quem parecerá ser o “vencedor” da história? A história terá nos transformado todos em perdedores? Será que os “mais aptos” terão encontrado uma rota de saída, uma maneira de colonizar outras partes do sistema solar, fundando colônias em Marte ou Vênus? Se houver escolas (ou pelo menos palestras TED), talvez as gerações futuras olhem para trás e perguntem se poderíamos ter aprendido algo com as tradições daqueles que viveram de outra forma. E se não houver um Planeta B? Ou talvez, até lá, nada disso realmente importe muito, porque o passado terá sido automatizado. Em vez de historiadores, teremos “máquinas de história” baseadas em algoritmos e bancos de dados: mais fatos registrados, projetados pelos sobreviventes do último ataque burocrático ao que um dia foi carinhosamente chamado de “as humanidades”.
Voltemos às figuras no Atlas da História Populacional do Mundo. Ele estima 46 milhões de súditos romanos e 50 milhões de súditos han. Vamos supor, por um momento, que esteja certo. Se combinarmos com estatísticas de outros impérios da mesma época – isso equivale a “entre dois terços e três quartos de todas as pessoas vivas na época” (citando Scheidel). Mas o que o Atlas nos diz sobre todas as outras partes do mundo antigo que estavam além do alcance de elites extrativas? Elas estavam realmente tão anuladas?
Uma maneira de controlar a qualidade da especulação histórica é usar fontes rigorosas e atualizadas. Nas ciências sociais, basear afirmações importantes em uma fonte de 1978 é voltar um pouco no tempo. Questões tão significativas foram objeto de pesquisas contínuas? Ao longo dos últimos 45 anos, a compreensão dos estudiosos sobre a demografia romana e chinesa imperial pode não ter mudado tanto. Mas não podemos afirmar que não houve progresso relevante, ou mesmo vital, em nosso conhecimento de outras partes do mundo. Isso é especialmente verdade em minha área: a arqueologia.
Nas últimas décadas, espaços geográficos que antes eram considerados vazios, ou descartados como “um retrocesso paleolítico” (como nosso Atlas de 1978 refere-se à a Austrália Aborígene), foram inundados com novos dados. A arqueologia, especificamente os novos avanços na arqueologia de assentamentos e métodos de levantamento, foi de grande valia. Entre outras coisas, essas novas técnicas estão revelando tradições inteiras de vida urbana, abrangendo séculos ou até milênios, onde antes não se suspeitava de nada. Todos eles estão no escopo dos últimos 5.000 anos, mas poucos podem ser identificados com o surgimento de reinos ou impérios organizados burocraticamente.
Nos anos que se seguiram à publicação do Atlas, arqueólogos que trabalhavam no delta interior do Médio Níger revelaram evidências de uma próspera civilização urbana sem sinais discerníveis de governo ou autoridade central, focada no local de Jenne-jeno, e que antecedeu os impérios de Gana, Mali e Songhai por alguns séculos. A China, também, ganhou uma longa história de cidades antes do império, desde as partes baixas do rio Amarelo até o vale do Fen, na província de Shanxi, e a “cultura Liangzhu” de Jiangsu e Zhejiang. O mesmo é verdade para as regiões costeiras do Peru, onde arqueólogos descobriram grandes assentamentos com praças afundadas e grandes plataformas, quatro milênios mais antigas do que o Império Inca. Na Ucrânia, antes da invasão russa, o trabalho arqueológico nas estepes ao norte do Mar Negro – que autores gregos antigos retrataram como “estepes bárbaras”, uma terra de nômades ferozes – estava gerando evidências detalhadas de uma tradição urbana perdida, 3.000 anos antes de Heródoto; em locais como Nebelivka, por exemplo.
Como David Graeber e eu observamos em O Despertar de Tudo — Uma nova história da humanidade, nosso conhecimento sobre essas regiões e suas histórias profundas aumentou exponencialmente nas últimas décadas. Por que, então, recuar tão apressadamente para o estado do conhecimento existente em 1978, e perder todas essas novas informações? Em breve, teremos uma ideia mais clara de quão instáveis as coisas podem ficar. Primeiro, porém, há mais a dizer sobre a questão da confiabilidade. Colin McEvedy e Richard Jones – que escreveram o Atlas da História Populacional do Mundo – foram surpreendentemente francos sobre a qualidade de seus dados: “não tentaríamos disfarçar a natureza hipotética de nosso tratamento dos períodos anteriores… não tiramos os números do ar. Bem, nem sempre.” O próprio reconhecimento deles da natureza provisória e hipotética de alguns desses números é interessante, já que Scheidel não é o único a basear algumas afirmações extremamente amplas nesta única, e datada, fonte.
No ano passado, Timothy Guinnane, professor emérito de economia da Universidade de Yale, decidiu soar o alarme sobre o Atlas.
Escrevendo no The Journal of Economic History, Guinnane avaliou os méritos acadêmicos da obra. Ele o considerou “não confiável” – pouco mais do que uma enciclopédia de estatísticas zumbis. Guinnane acusa o Atlas de, às vezes, relatar estimativas populacionais sem qualquer evidência de apoio aparente, ou sem indicação de como uma determinada fonte foi convertida em estatísticas utilizáveis. Ele sugere que os historiadores parem de usá-lo, porque as alegações sobre a história global baseadas no Atlas assemelham-se ao proverbial pedaço de queijo suíço velho: faltam partes, e o que está lá está errado. Seus autores, ele observa, eram muitas vezes mais francos sobre as lacunas em seu trabalho, e a natureza especulativa de seus gráficos populacionais, do que os pesquisadores que continuam a usar seus dados.
Em uma entrevista recente à Long Now Foundation, Guinnane explica o que o inspirou a escrever seu artigo depois de ver um estudioso após outro fazer “referências a dados desse tipo”. Confrontado, repetidamente, com estatísticas que têm um impacto importante em nossa compreensão da história, incluindo a história de longo prazo do uso humano da terra e da mudança ambiental, ele quis saber de onde vêm os números populacionais; da mesma forma que podemos perguntar como alguém pode supor que, no início da Era Comum, a maioria das pessoas na Terra vivia sob domínio imperial. Por que pensamos isso? Nas próprias palavras de Guinnane, os resultados de suas investigações o deixaram “perplexo”, pois sua experiência indica que “tais dados não existem”. Daí o título de seu artigo na revista: “We Do Not Know the Population of Every Country in the World for the Past Two Thousand Years” [“Não sabemos a população de cada país nos últimos 2 mil anos”] (muito menos nos últimos 5 mil…).
Em um futuro próximo, os historiadores poderão se perguntar como, meio século após sua publicação, uma fonte tão frágil como o Atlas tornou-se a base única para uma demografia do apocalipse. Como, sobre fundações tão frágeis, conseguimos injetar em nossas mentes a noção de que existe algo natural em viver em sociedades onde os governantes exercem autoridade arbitrária sobre súditos? Onde a dissidência foi enfrentada com brutalidade, prisão, exílio ou até mesmo morte; e onde a única alternativa era algo como a “liberdade” dos antigos alemães de Gibbon: vida de liberdade, mas também de pobreza e ignorância generalizadas.
Guinnane cita proeminentes historiadores econômicos que continuam a usar o Atlas de várias maneiras. Como ele enfatiza corretamente, a culpa não deve recair sobre estudiosos individuais. Ele também está certo ao dizer que, enquanto editoras acadêmicas respeitáveis continuarem a aceitar trabalhos baseados em tais fontes, é improvável que vejamos muito progresso: “as estimativas não melhorarão, a menos que nos importemos o suficiente com bons dados para parar de usar ingenuamente os antigos.” A arqueologia, sugiro, tem um papel vital a desempenhar aqui.
Vejamos o exemplo da floresta amazônica, uma área de mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, sem história de império até a conquista europeia, e que o Atlas caracteriza como mais uma região demográfica marginal, escassamente povoada por caçadores e coletores nômades, cujo modo de subsistência (seus autores assumiram) nunca poderia sustentar populações densas. Como isso se sustenta hoje?
Mapa Lidar da cidade de Kunguints na Amazônia equatoriana mostrando ruas antigas ladeadas de casas. Cortesia de Antoine Dorison e Stéphen Rostain/Wikipedia |
Não se sustenta. Na última década, os arqueólogos têm revirado completamente essa imagem, usando lasers aéreos para olhar através da copa das árvores. Paisagens tropicais que resistiam a levantamentos terrestres estão revelando seus segredos. Em vez de lacunas no mapa, agora somos capazes de ver cenários altamente cultivados com infraestrutura que remonta aos primeiros séculos a.C. Redes de estradas, terraços, obras cerimoniais, bairros residenciais planejados e sistemas de assentamento regional organizados em padrões de precisão geométrica podem ser rastreados por toda a Amazônia, do Brasil à Bolívia, até as encostas orientais dos Andes. Em certas partes da Amazônia, a floresta em si revela-se um produto da interação humana com o solo. Com o tempo, isso gerou as ricas terras ‘antropogênicas’ chamadas de “terras pretas de índio”, com níveis de fertilidade muito superiores aos dos solos tropicais comuns. Alguns antropólogos acreditam agora que entre 10.000 e 20.000 sítios de grande escala permanecem a ser descobertos por toda a Amazônia. Descobertas igualmente surpreendentes estão surgindo no Sudeste Asiático, e podemos esperar encontrá-las também nas partes florestais do continente africano.
Os mesmos procedimentos estão mudando nossa visão sobre paisagens tropicais que testemunharam o surgimento e a queda de grandes reinos e impérios. Os arqueólogos agora acreditam que, no ano 500 d.C., entre 10 e 15 milhões de pessoas viviam nas terras baixas maias de Yucatán e do norte da Guatemala. Para comparação, o Atlas apresenta uma figura de apenas 2 milhões para todo o México na mesma era, incluindo as cidades indígenas do Altiplano (pelo menos algumas das quais, agora sabemos, eram organizadas não como impérios ou reinos, mas como repúblicas autônomas, muito antes da conquista espanhola).
É fácil, com o incentivo de obras como o Atlas, imaginar a história antiga como um tabuleiro de xadrez de reinos e impérios. Mas isso também é muito enganoso. Territórios antigos, nas terras baixas maias e no Sudeste Asiático, tinham fronteiras porosas, constantemente em mudança e abertos à contestação. A autoridade diminuía com a distância do centro. A guerra e o tributo eram, em grande parte, assuntos sazonais, após os quais o poder coercitivo recuava. Como aponta a arqueóloga Monica Smith, somente o historiador mais ingênuo assumiria que as alegações inscritas nos monumentos imperiais são um simples reflexo da realidade política. Claro que os governantes antigos adoravam se apresentar como “soberanos dos quatro cantos”, “mestres do mundo conhecido”, e assim por diante. No entanto, nenhum imperador do mundo antigo poderia sequer imaginar poderes de vigilância como os que agora desfruta qualquer ditador ou oligarca menor.
Em uma escala global, estamos testemunhando uma revolução na nossa compreensão da demografia antiga. Ignorar isso é entregar-se a uma espécie cruel de brincadeira intelectual, pela qual o genocídio das populações indígenas, nos últimos 500 anos – é naturalizado como uma ausência perene de pessoas. Também não podemos assumir que, se quisermos entender as perspectivas do nosso mundo moderno, as únicas “grandes” histórias que vale a pena contar são as dos impérios.
O mundo em que vivemos hoje não é apenas aquele criado por figuras como Tibério de Roma, ou o Imperador Wu, de Han. Até tempos surpreendentemente recentes, espaços de liberdade humana existiram em grandes partes do nosso planeta. Milhões de pessoas viviam neles. Não sabemos seus nomes, já que não os gravaram em pedra, mas sabemos que muitos viviam vidas nas quais era possível fazer mais do que apenas garantir a sobrevivência ou ensaiar o roteiro de outra pessoa sobre “a origem do Estado”. Era possível se afastar, desobedecer, experimentar outras formas de vida, até mesmo criar novas formas de realidade social.
Às vezes os não livres também faziam isso, enfrentando riscos muito maiores. Quantos, naquela época, preferiam o controle imperial à liberdade não imperial? Quantos tinham uma escolha? Quanta escolha temos agora? No futuro, será necessário mais do que estatísticas obsoletas para nos impedir de fazer essas perguntas. Existem histórias enterradas, sobre política e valores humanos. O solo da Terra não é apenas o sistema de suporte à vida de nossa espécie, mas também um arquivo forense, contendo evidências preciosas para desafiar narrativas arcaicas sobre as origens da desigualdade, propriedade privada, patriarcado, guerra, vida urbana e o Estado – narrativas que nasceram diretamente da experiência do império, escritas pelos “vencedores” de um futuro que ainda pode nos transformar a todos em perdedores.
Investigar o passado humano dessa maneira não é uma busca por utopia, mas uma maneira de nos libertar para pensar sobre as verdadeiras possibilidades da existência humana. Livres de suposições teóricas ultrapassadas e interpretações dogmáticas de dados obsoletos, poderíamos olhar com novos olhos para o próprio significado de termos como “civilização”? Nossa espécie existe há cerca de 300 mil anos. Estamos à beira de um precipício, confrontando um futuro de colapso ambiental, erosão da democracia e guerras de destruição sem precedentes: uma nova era do império, talvez a última em um ciclo de eras que, pelo que realmente sabemos, pode representar apenas uma fração modesta da experiência humana.
Para aqueles que buscam mudar o curso das coisas, tal incerteza sobre o alcance das liberdades humanas pode, por si mesma, ser uma fonte de libertação e abrir caminhos para outros futuros.
David Wengrow é professor de arqueologia comparativa na University College London. Seus livros incluem The Origins of Monsters (2013), What Makes Civilization? (2ª ed., 2018) e, em coautoria com David Graeber, The Dawn of Everything (2021).
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