26 de julho de 2024

Globalização, capitalismo e hegemonia

A ascensão e o aguçamento da rivalidade entre a China e os Estados Unidos são frequentemente reduzidos a desejos pessoais de supremacia (Trump vs. Xi Jinping em particular), quando não são apresentados como uma simples reiteração da eterna batalha do Bem (Ocidente, democracia) contra o Mal (Oriente, despotismo). Pelo contrário, em seu último livro [Chine x États Unis, le capitalismo contre la globalization], o economista Benjamin Bürbaumer se propõe a descrever e explicar essa rivalidade. Ela determina algumas das transformações mais importantes da ordem mundial atual, com base em uma análise do capitalismo e suas contradições.

Andrea Cavazzini



Tradução / O contexto global em que vivemos é amplamente marcado não apenas pela relação cada vez mais contenciosa entre a China e os Estados Unidos, mas também por uma aceleração da capacidade da China de modificar estrategicamente a ordem institucional – econômica, social e política – do mundo contemporâneo. É urgente elaborar análises tão ricas quanto possível dessa situação, para entender não apenas as metamorfoses das relações capitalistas e suas alternativas internas, mas também (obviamente) tentar decifrar as possíveis perspectivas de sua abolição.

No que diz respeito à República Popular da China (RPC), o peso dos clichês e fantasias mais ou menos recentes continua a pesar fortemente nos estudos francófonos [e ocidentais em geral] e, sobretudo, na imagem generalizada e “pública” da potência asiática. Do discurso apologético de certas correntes maoístas dos anos 1970 ao discurso um pouco mais sutil da onda “antitotalitária”, corre-se um sério risco de perder a inteligibilidade da China contemporânea e sua jornada. Reduz-se a China, assim, à imagem distópica de um imenso formigueiro tecnológico, dócil e vigiado por vídeo, um terreno fértil inesgotável para a loucura coletiva e a manipulação diabólica1. No entanto, é a inteligibilidade do mundo contemporâneo e suas tendências estruturais que está em jogo na possibilidade de ver no futuro da RPC algo diferente de uma fábula orientalista.

O livro de Benjamin Bürbaumer representa um passo decisivo na construção dessa inteligibilidade. Situa o papel que a China desempenha hoje no cenário mundial tanto na dinâmica das relações capitalistas de produção quanto em uma história de lutas: as lutas pela hegemonia travadas pelas grandes potências mundiais dentro do modo de produção capitalista, mas também as lutas das classes trabalhadoras e dos movimentos de oposição, cuja realidade inescapável constitui, no livro, o ponto de partida de uma narrativa e de uma análise que conduzem à conjuntura atual e ao seu futuro subsequente.

Seria impossível lidar aqui com todos os muitos temas importantes que Benjamin Bürbaumer aborda no decorrer de tal narrativa: o livro deve ser lido na íntegra por qualquer pessoa que deseje obter uma visão geral adequada sobre o tema. No entanto, tentaremos apontar alguns pontos que nos parecem decisivos e propor algumas reflexões a partir dessa contribuição essencial.

Das lutas sociais ao capital transnacional

O autor parte de uma observação: a atual rivalidade entre China e Estados Unidos pressupõe a interdependência entre as duas potências dentro do que é conhecido como “globalização”, que corresponde à hegemonia mundial dos Estados Unidos sob a direção dos setores transnacionais do capital estadunidense.

Longe de aproximar os dois gigantes e pacificar suas relações, essa dependência mútua está levando a China a subverter a globalização, a reestruturar o mercado mundial com o objetivo de adquirir um papel dominante nele e, em última análise, a desafiar abertamente a hegemonia norte-americana, uma estratégia global da qual fazem parte as Novas Rotas da Seda. As iniciativas diplomáticas chinesas e o rearmamento da República Popular são alguns de seus principais componentes. Segundo Bürbaumer, essa tendência não depende de fatores contingentes, mas da maneira como a dependência mútua foi construída e do papel que desempenhou na globalização.

Bürbaumer olha para a década de 1970, que ele vê como a chave para entender certos aspectos estruturais da era atual, assim como das tendências que ameaçam subverter essas estruturas. De fato, foi a época em que, por um lado, a última sequência mundial de lutas sociais e políticas estava se desenrolando e, por outro, a taxa de lucro das empresas capitalistas americanas estava caindo. Os parágrafos iniciais do livro traçam o “pânico dos patrões” que atingiu o establishment dos EUA no início dos anos 1970 diante de uma sequência em que o crescimento do contrapoder sindical, as práticas de luta e demandas nas fábricas que tendiam a sobrecarregar os centros sindicais e um desafio à ordem social fora das fábricas por movimentos juvenis, feministas, antirracistas, antibelicistas etc., articularam-se e alimentaram-se mutuamente2.

Trata-se de um questionamento geral dos fundamentos da sociedade capitalista norte-americana de forma mais ou menos intensa e duradoura3: um questionamento que está ligado a um declínio constante, desde a década de 1960, da capacidade do capital de extrair lucros de investimentos passados. Baseando-se no trabalho de Gérard Duménil e Dominique Lévy, por um lado, e Robert Brenner, por outro, Bürbaumer explica que essa queda na taxa de lucro depende não apenas da pressão exercida pelas demandas salariais e lutas sociais, mas também da concorrência das empresas da Alemanha Ocidental e do Japão e, finalmente, os custos da mecanização, que não são compensados pela eficiência em termos de redução do uso de mão de obra viva[4].

A “globalização” foi (fruto da) resposta do capital a essa crise múltipla. No decorrer da sequência, uma tendência ao “investimento no exterior” emergiu no capital estadunidense como instrumento de redução dos custos de produção, o que levou à formação estável, e depois à hegemonia, de uma “fração transnacional” do capital industrial: “Essa fração viu seus interesses convergirem com os do setor financeiro para formar uma aliança em favor da livre circulação de capitais e mercadorias: o capital transnacional dos EUA.

Do capital transnacional à globalização

Essa fração é a força motriz do processo conhecido como “globalização”, que aparece como uma reestruturação das relações sociais em escala global: um processo ao mesmo tempo econômico, político e sociológico, que alterou radicalmente as estruturas sociais e as comunidades humanas desde a década de 1970.

Sua força motriz tem sido a dupla demanda para extinguir a dinâmica do protesto e aumentar os lucros capitalistas. Foi em busca desse duplo objetivo que o capital transnacional dos EUA adotou o que David Harvey chama de “solução espacial” para a crise: modificar as “condições territoriais” nas quais o capital busca a obtenção de lucros. No contexto da década de 1970, isso implicava não apenas a expansão espacial em sentido quantitativo, mas também a “produção de um novo espaço global” favorável à “circulação de bens, serviços e capitais”.

A reconstrução de Bürbaumer do processo de globalização e suas etapas não pode ser repetida aqui em detalhes. Basta dizer que um de seus principais operadores políticos foi a Comissão Trilateral, cujo objetivo explícito consistiu em promover “políticas coordenadas de liberalização […]: livre comércio, livre circulação de capitais, redução dos gastos públicos e da tributação, flexibilidade do emprego e das taxas de câmbio”. Seguindo o exemplo da Comissão Trilateral, outros institutos privados, como o Clube Bilderberg e o Instituto Atlântico, formularam e implementaram a política internacional do capital transnacional norte-americano, apoiada principalmente por investimentos diretos no exterior.

Para os países receptores, isso implica “a absorção de uma parte significativa do capital nacional pelo capital de um terceiro país”, a “formação de uma fração de capital integrada em circuitos transnacionais” e, finalmente, “uma rede de interconexões que liga organicamente o país receptor aos Estados Unidos”, a ponto de comprometer a separação e a independência dos agrupamentos socioinstitucionais presos nesse sistema de relações. Este foi inicialmente o destino dos parceiros da Europa Ocidental, os primeiros destinatários dos investimentos mais maciços.

Desde que o capital transnacional se fundiu com o Estado norte-americano desde o mandato de Gerald Ford (1974-1977), graças principalmente ao trabalho da Comissão Trilateral, as políticas de liberalização e desregulamentação foram primeiro aplicadas internamente e depois exportadas através da imensa rede de influência econômica e política da qual o capital norte-americano era o centro:

"Durante os anos oitenta, todos os países mais avançados acabaram por eliminar a maior parte dos obstáculos à livre circulação de capitais". Isso também significou exportar o desmantelamento de "setores inteiros do estado de bem-estar social [...], desregulamentação, cortes de impostos, cortes orçamentários e ataques aos sindicatos".

Seria impossível resumir aqui as análises de Bürbaumer sobre os acordos de livre comércio, o GATT, a OMC e as múltiplas etapas da estratégia política do capital transnacional. Essa estratégia, que envolve uma interação complexa entre atores públicos e privados e uma coordenação internacional cada vez mais estreita, agora tem um alcance verdadeiramente global, após a desintegração do bloco soviético.

A globalização total veio sob Bill Clinton, que afirmou explicitamente que a prosperidade e a estabilidade dos Estados Unidos dependiam de sua política externa e que o país deveria “estar no centro de todas as redes mundiais vitais”. A “solução espacial” fornecida para a crise dos anos 1970 implica, em última análise, o papel dos EUA como “supervisor” do capitalismo globalizado e, portanto, sua hegemonia nas relações internacionais.

Essa dinâmica de reestruturação do mundo de acordo com os interesses do capital transnacional norte-americano, cujos dois pivôs são a realização de lucros por meio da expansão espacial e a disciplina dos trabalhadores e da dissidência potencial, tem duas dimensões estratégicas, às quais Bürbaumer atribui grande importância, e nas quais devemos nos concentrar.

A primeira é a organização da economia mundial em “cadeias de valor” por meio da liberalização dos fluxos de capital e dos acordos de livre comércio. O deslocamento para fora (offshoring) tem sido a “peça central estratégica” da globalização, pois deu “às empresas a oportunidade de aumentar seus lucros e, ao mesmo tempo, garantir um baixo crescimento de preços – cortando custos, aumentando a flexibilidade, evitando riscos e, às vezes, contornando as regulamentações trabalhistas e ambientais – e preservando as rendas a por meio do design, marketing e atividade financeira”[5].

Esse deslocamento não implica a propriedade formal de diferentes segmentos de produção espalhados pelo mundo: para controlar os processos produtivos basta “ter as alavancas para controlar as cadeias globais de valor, nomeadamente a propriedade de tecnologias-chave e a organização das redes de distribuição essenciais à produção” (p. 61). Em outras palavras:

Os protagonistas das cadeias globais de valor são as empresas líderes. Eles supervisionam a fabricação de um bem a partir de uma série de fábricas, muitas vezes espalhadas por diferentes países, cada uma das quais fornece um bem intermediário essencial para a montagem do bem final, que ocorre em países onde o custo da mão de obra é baixo. Embora, em detalhes, possamos identificar uma variedade de razões para a formação da cadeia – redução de risco diversificando locais; redução dos custos de produção (mão-de-obra, terra, energia, matérias-primas); maior flexibilidade – surge um fio condutor. 
Todos esses fatores contribuem para aumentar a lucratividade do líder em detrimento de muitos fornecedores, que são obrigados a aceitar uma concorrência acirrada para fazer parte de um pequeno número de cadeias e, principalmente, em detrimento de seus funcionários. As empresas líderes são geralmente grandes empresas de países avançados cuja atividade está focada no controle oligopolista do acesso aos mercados finais e que buscam monopolizar tecnologias-chave [...]. 
Como a criação de cadeias de valor globais é, antes de tudo, uma questão de coordenação de poder, ela requer gastos mínimos de capital – ao contrário dos fornecedores – ao mesmo tempo em que incentiva preços mais baixos de insumos. Como tal, é uma ferramenta particularmente eficaz para aumentar os lucros. Graças às cadeias globais de valor, as multinacionais obtêm lucros sem acumulação, ou melhor, lucros baseados na acumulação por correspondência, o que impõe o ônus do investimento aos fornecedores.

Como condição para a obtenção de lucros e para operar o domínio da força de trabalho, as cadeias de valor são a infraestrutura material – incluindo no adjetivo a materialidade das organizações e práticas – da globalização, o outro lado dos acordos de livre comércio e das instituições internacionais, o que o “despotismo fabril” é para a santíssima trindade da “liberdade, propriedade e Bentham” no capítulo IV do Livro I de O Capital de Marx.

Para ocupar uma posição dominante nas cadeias de valor, é necessário, por um lado, controlar as condições materiais de acesso aos fluxos de comércio internacional – em termos concretos: controlar os canais físicos de comunicação, estabelecer os critérios técnicos para a validação de produtos comerciais, monopolizar tecnologias ou recursos essenciais – e, por outro lado, garantir que os parceiros subordinados na globalização sintam, no entanto, que essa subordinação também os beneficia – o que Bürbaumer chama com o termo gramsciano de “hegemonia”. É precisamente nesses dois nós estratégicos que a China está desafiando a liderança americana, ao mesmo tempo em que desencadeia uma dinâmica que provavelmente reestruturará radicalmente a ordem mundial.

Da globalização à ascensão da China

A China desempenhou e continua a desempenhar um papel crucial na formação dessa ordem. No final do século 20, a parceria assimétrica entre a China e os Estados Unidos formou a espinha dorsal das relações capitalistas globalizadas, e as relações entre os dois gigantes podem ser vistas como uma espécie de fusão dentro de um mecanismo econômico global.

A abertura progressiva da China aos investidores estrangeiros e sua integração nas redes do capitalismo mundial foram decididas pela facção “liberal” do Partido Comunista Chinês (PCC), que chegou ao poder após a morte de Mao Zedong e a neutralização de seus apoiadores: uma facção que existia desde 1949 e estava menos preocupada em experimentar uma sociedade alternativa às relações capitalistas do que com o desenvolvimento e o poder de um país que, no final dos anos setenta, vivia uma crise industrial e agrícola radical e um aumento do descontentamento social. Foi esse setor da estrutura política dominante que manteve um controle firme sobre o processo de liberalização, rejeitando qualquer “terapia de choque” politicamente incontrolável e, acima de tudo, qualquer desafio ao controle do Partido Comunista sobre o processo.

O objetivo era manter o equilíbrio político e evitar qualquer perda de legitimidade aos olhos da população, tanto no início do processo de liberalização quanto em sua gestão. Esse processo passou por fases de desaceleração[6], especialmente após as mobilizações de massa de 1989-1992, cujo episódio mais conhecido foi a Praça da Paz Celestial. Bürbaumer lembra o “forte componente da classe trabalhadora” e as “demandas sociais” em favor da proteção dos trabalhadores e contra o enriquecimento do estrato de burocratas em processo de fusão com os novos estratos empresariais.

A resposta a essas mobilizações foi, claro, a repressão, mas também uma intensificação da liberalização econômica voltada para a geração de prosperidade e mobilidade social, o que supostamente poderia extinguir a contestação do poder e estruturar um novo consenso de massas. Pequim abriu radicalmente o país aos investidores estrangeiros:

Durante a década de 1990, a China fortaleceu seus ativos como plataforma de exportação. Autorizou a criação de empresas totalmente estrangeiras, assinou acordos de proteção ao investimento [...] e acedeu à outra grande demanda do capital transnacional: a repatriação desimpedida de lucros.

A análise de Bürbaumer mostra que o processo de liberalização se deu em um quadro ainda fortemente sobredeterminado pelo legado do primeiro período da República Popular (1949-1976), em particular no que diz respeito à prática governamental do Partido-Estado e à composição objetiva e subjetiva da força de trabalho. Por um lado, o Partido multiplicou as intervenções verticais impondo regulamentações favoráveis aos investidores. Por outro lado, ele jogou com a descentralização dos executivos locais em favor das multinacionais que buscavam as melhores condições locais para seus investimentos[7].

Mas os trabalhadores assalariados também demonstraram uma grande capacidade de iniciativa e resistência entre os anos 1990 e o início dos anos 2000, por meio de uma onda de mobilizações e conflitos cuja intensidade foi a maior desde a Revolução Cultural. Atingiu níveis quase insurrecionais, com “protestos, bloqueios, ocupações, greves, tumultos, até suicídios de trabalhadores e assassinatos de empresários”. No entanto, o outro lado do poder dos trabalhadores chineses tem sido seu apelo aos investidores estrangeiros, que não foram atraídos apenas pelos baixos salários:

O que distingue a China de outros países periféricos que também têm mão de obra barata e lançaram vastos programas de liberalização é sua herança socialista, que dá às enormes reservas de mão de obra qualidades adicionais em termos de educação e saúde. Soma-se a esse contraste o fato de que, ao proceder a uma liberalização mais controlada, a China conseguiu evitar os efeitos devastadores da terapia de choque.

Assim, as inegáveis capacidades governamentais do PCC – embora estimuladas pela pressão de uma população acostumada à indecisão e ao combate – e a qualidade de vida do trabalho[8] ajudaram a proteger a China dos efeitos mais brutais da globalização e a permitir que ela ocupasse seu lugar na globalização como ator, embora subordinado, mas com vantagens estratégicas consideráveis.

Os Estados Unidos têm sido o principal impulsionador do investimento estrangeiro na China: a produtividade da mão-de-obra chinesa permitiu que as empresas americanas aumentassem seus lucros, enquanto os produtos baratos fabricados na China atendem às demandas dos consumidores norte-americanos e europeus, enfraquecidos pela precariedade e desregulamentação. As décadas de 1990 e 2000 foram anos de lua de mel em ambos os lados do Pacífico: uma proporção crescente dos lucros corporativos dos EUA veio da China, enquanto o crescimento chinês disparou”.

Foi nesse ponto que a China começou a aparecer como um concorrente e não como um parceiro subordinado dentro da ordem capitalista globalizada. Primeiro, por causa do déficit comercial entre a China e os Estados Unidos e o aumento da gama de manufaturas chinesas. Em segundo lugar, na medida em que a própria China deve adotar uma “solução espacial” para a superacumulação causada pelo aumento da capacidade de produção (especialmente na esteira do plano de estímulo adotado durante a crise global de 2007-2008), que apenas a projeção para o mercado mundial parece capaz de absorver. Mas essa projeção não pode continuar fazendo parte do mercado como a globalização a estruturou, mas deve reorganizá-lo em profundidade.

O rápido aumento da produtividade do trabalho nos anos de crescimento, graças ao aumento do uso de máquinas, acabou reduzindo a eficiência do capital: a queda da taxa de lucro nos anos 2000 impulsionou uma contratendência ao intensificar a participação no comércio internacional. Neutralizar a queda da taxa de lucro aumentando a pressão sobre os assalariados, por exemplo, reduzindo os salários ou prolongando a jornada de trabalho, mostrou-se impossível devido ao risco de protestos violentos e em massa.

Por outro lado, a extroversão da economia, e a centralidade das exportações que ela induz, permite “benefícios indiretos para beneficiar camponeses, trabalhadores e empregados” e alimenta “a esperança de uma melhoria contínua no padrão de vida”. Em outras palavras, tratava-se de conciliar a ação a redução da taxa de lucro com a manutenção da legitimidade e do consenso, que o Partido Comunista havia tornado uma prioridade inegociável. Uma vez que, mesmo em um contexto de exploração intensiva e extensiva do trabalho, a correlação de forças entre trabalhadores, Partido e capital, bem como entre os governados e os governantes, nunca é totalmente desequilibrada ou fixa, a estratégia chinesa para absorver as contradições da acumulação só pode se voltar para uma radicalização da extroversão da economia.

A China, portanto, tem a necessidade estrutural de reorganizar de forma favorável aos seus interesses uma economia globalizada cuja configuração até agora esteve inextricavelmente ligada à hegemonia do capital americano e do Estado americano.

Da ascensão da China ao poder à luta pela hegemonia

A China é, portanto, impulsionada por uma dinâmica que está remodelando as relações econômicas, políticas e sociais em escala global. Essa reestruturação tornou-se uma estratégia explícita e deliberada por parte dos líderes da República Popular. O Partido Comunista manteve poderosos conglomerados monopolistas em setores cruciais sob controle estatal e impediu, por meio de um sistema de rotação de cargos, a formação de uma classe de líderes empresariais autônomos do Partido e solidários com o capital transnacional estrangeiro.

Além disso, o Partido Comunista conseguiu canalizar o capital privado incorporando seus representantes por meio de redes complexas de relações informais, familiares e afetivas, que mais uma vez parecem fazer parte da longa história das estruturas antropológicas chinesas. Seja como for, ao contrário da Europa Ocidental, a China não perdeu sua autonomia estratégica e institucional após sua inclusão na ordem globalizada, que agora está tentando reestruturar em seu benefício.

Esta tentativa tem várias faces, a mais espetacular das quais é a Nova Rota da Seda (NRS), ou seja, a “iniciativa cinturão e rota”, um conjunto de ligações e infraestruturas que engloba “ferrovias, oleodutos e gasodutos, redes elétricas e telefônicas, portos e estradas”, com o objetivo de “promover uma maior integração econômica de pelo menos sessenta países, que representam quase dois terços da população mundial, cerca de um terço da produção mundial e 70% dos recursos energéticos mundiais”. O efeito dessa operação gigantesca é reestruturar as cadeias de valor:

A NRS favorece as relações comerciais e financeiras centradas na China, mas também a adaptação de padrões técnicos igualmente focados na China. Conexões eficientes que garantem infraestrutura se traduzem em prazos de entrega mais curtos e menores custos de transporte e produção [...]. Conexões aprimoradas também atraem investimento estrangeiro direto e incentivam o estabelecimento de cadeias de suprimentos sob a supervisão de grandes empresas chinesas. Além de se tornarem mercados de exportação para a produção chinesa, os países conectados pelo NRS tornam-se parte de uma nova divisão territorial do trabalho.

Na verdade, é uma reestruturação global do mercado, e não simplesmente uma intensificação quantitativa da economia extrovertida da China: os NRSs mudam permanentemente o espaço da vida econômica. Os países membros do NRS podem atender às necessidades de infraestrutura e habilidades técnicas que as instituições da globalização (como o FMI ou o Banco Mundial) nunca estiveram dispostas a financiar, enquanto a China, além de financiar, fornece os bens e a mão de obra necessários para construir a infraestrutura.

Além da infraestrutura física, a China está investindo cada vez mais em infraestrutura técnica, como padrões que definem os critérios que tornam qualquer mercadoria “identificável e qualificável pelos agentes de mercado”. Os poderes capazes de definir essas regras têm uma clara vantagem competitiva. A China é cada vez mais ativa e influente nos órgãos internacionais de normalização. Conforme descrito por Bürbaumer, em páginas que valem a pena ler em detalhes, a estratégia chinesa parece ser uma operação coerente e sistemática destinada a desfazer progressivamente todos os nós – espaciais, físicos, técnicos – cujo controle permite aos Estados Unidos dominar o sistema mundial de produção e comércio.

Parte desse processo é de relevância mais imediata, particularmente no que diz respeito à rivalidade sino-americana nos campos da inteligência artificial e dos semicondutores: “a infraestrutura digital também é objeto de uma batalha feroz pelo controle exclusivo de tecnologias-chave”, o que implica uma intensificação da capacidade da China de produzir inovação em setores de ponta e, portanto, da capacidade do sistema de pesquisa e educação de desenvolver conhecimentos e habilidades avançadas nessas tecnologias.

Finalmente, é a infraestrutura monetária que é colocada no centro das atenções quando a China desafia a supremacia monetária do dólar como principal moeda internacional, o que permite aos Estados Unidos não só obter “lucros exorbitantes financiados pelo resto do mundo”, mas também ter um “instrumento de poder político extraterritorial” através de sanções financeiras[9].

Mas como a supremacia monetária está inextricavelmente ligada a uma relação de subordinação política, as tentativas da China de internacionalizar o renminbi têm uma relação direta com o problema da hegemonia global dos EUA. Porque, como nos lembra Bürbaumer, referindo-se a Gramsci, o conceito de hegemonia inclui a dimensão do consenso, da adesão voluntária a uma ordem sujeita à autoridade do hegemon. No entanto, como o curso das crises ucraniana e palestina mostrou, “os Estados Unidos e seus aliados mais próximos estão penando para gerar consentimento além do círculo do Atlântico Norte”.

Enquanto os Estados Unidos, apesar da desestabilização causada pela China, mantêm uma inegável supremacia nas esferas monetária e militar, parece ter cada vez mais dificuldade em transformar o poder de fato em reconhecimento voluntário por atores subordinados que, de certa forma, participam livremente dos benefícios de sua lealdade ao hegemon. Ao desafiar a ordem mundial sob a hegemonia americana, pelo menos desde que Xi Jinping chegou ao poder[10], a China teve que vincular as mentes e os corações de líderes e sociedades estrangeiras ao seu projeto e papel global. Seu desafio à hegemonia, e sua possível nova hegemonia, devem se tornar desejáveis, bem como apoiados por vantagens materiais.

Assim, a China tem se esforçado cada vez mais para desenvolver um discurso sobre a paz e a prosperidade que sua influência traria ao mundo. Embora a associação dessas duas noções possa trazer à mente o mito do “comércio suave”, Bürbaumer aponta apropriadamente que parte do discurso chinês está enraizado no anti-imperialismo tradicional da República Popular. Seu apoio passado aos movimentos de libertação sustenta o prestígio de que desfruta atualmente no “Sul global”: em outras palavras, a China continua a se beneficiar do papel, real e simbólico, que desempenhou durante o período “vermelho” internacional das décadas de 1960 e 1970.

Além disso, as relações da China com outros países, particularmente por meio do NRS, diferem das práticas dos EUA: a China está construindo infraestrutura e fábricas em países que não as possuem, sem exigir a aplicação de terapias de choque neoliberais ou a adoção de suas próprias estruturas políticas. Em contraste com os Estados Unidos e dos antigos impérios coloniais europeus, a República Popular se apresenta como uma força de paz, cooperação e pluralismo, diante do aventureirismo belicoso e do desprezo demonstrado pelo hegemon e seus principais aliados.

Por exemplo, a China está engajada em uma diplomacia complexa com países “periféricos”, com foco em educação, informação e saúde, incluindo acesso a medicamentos e técnicas de tratamento. Ao mesmo tempo em que a mídia chinesa divulga informações sobre a China e os países do “Sul”, o sistema universitário chinês facilita o acesso a estudantes estrangeiros da periferia, que as universidades “ocidentais” preferem explorar ou mesmo rejeitar cobrando mensalidades exorbitantes e vexatórias:

Isso aumenta a proporção de futuros líderes africanos e altos funcionários formados na República Popular, com base no know-how tecnológico e nos métodos de administração pública e gestão de negócios que prevalecem lá.

Como aponta Alessandra Colarizzi, o “modelo chinês” pode representar um fator de dinamismo e emancipação para um continente africano com uma população jovem e muitas necessidades, mesmo que apenas pela maior mobilidade e circulação de pessoas, conhecimentos e técnicas11. Os efeitos da estratégia da China também podem ter consequências imprevisíveis em partes do mundo que os Estados Unidos e a Europa Ocidental são incapazes de ver como nada mais do que objetos passivos de exploração e dominação.

O desafio que a China representa para a hegemonia dos EUA já está mobilizando o mundo “periférico”, abalando o chamado status quo de uma ordem globalizada que cada vez mais parece retornar à matriz imperialista e colonial do século XIX. A China parece estar ciente dessa situação, como evidenciado por seu desejo de se apresentar oficialmente não como uma “grande potência”, mas como a “maior entre os países em desenvolvimento”12: uma escolha discursiva que descreve a realidade com bastante lucidez, ao mesmo tempo em que marca seu pertencimento estrutural ao campo oposto ao do hegemon. A tradução dessa posição pelo envolvimento cada vez mais assertivo da China na diplomacia e na gestão dos assuntos internacionais é uma história muito recente.

Conclusões

Finalmente, uma coisa é clara: a China está transformando profundamente a ordem mundial em seus aspectos políticos, econômicos, sociais e tecnológicos. A hegemonia do que veio a ser chamado de “Ocidente”, um termo atormentado por sobredeterminações ideológicas duvidosas, está se esgotando. É claro que existem outros fatores por trás desse desafio além de apenas a pressão chinesa, mesmo que a estratégia da República Popular represente um divisor de águas.

O livro de Benjamin Bürbaumer pinta um quadro rico das maneiras pelas quais a posição chinesa é articulada nesse contexto. Esse tipo de análise e síntese tornou-se uma base indispensável para a compreensão das forças que moldam o mundo de hoje, forças que, como mostra o autor, têm suas raízes na experiência das revoluções e conflitos sociais do “curto século XX”. Tanto a globalização neoliberal quanto a ascensão do capitalismo chinês têm suas raízes nas “revoluções vermelhas” das décadas de 1960 e 1970 e em sua liquidação no início da década de 1980.

Ao explorar ainda mais o fio condutor do entrelaçamento de durações e eventos enterrados, é possível apontar para questões posteriores sobre a República Popular, sua história, suas determinações estruturais e, possivelmente, sua trajetória futura. Embora a análise dos mecanismos econômicos e das estratégias globais da China seja meticulosa e articulada, o livro é mais breve sobre a estrutura socioinstitucional da República Popular e, acima de tudo, sobre os possíveis efeitos de dois estratos históricos únicos: o da longa duração da história chinesa vista em suas estruturas antropológicas, e o do período maoísta, incluindo os episódios “amaldiçoados” do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural. No entanto, essas duas dimensões podem ajudar a lançar luz sobre certos aspectos do boom econômico durante a era de reformas e construção de consenso pelo Partido Comunista Chinês, permitindo que a noção de “hegemonia” continue a ser desafiada.

Observou-se que a longa história da China imperial mostra uma polaridade entre o governo concentrado e um “mar de comunidades agrárias auto-organizadas”[13]. Essas comunidades basearam-se em um sistema familiar patrilinear que forma a matriz do ideal confucionista de uma sociedade composta por uma miríade de “círculos interligados”, uma sociedade na qual “todos mantêm uma relação social, por mais elementar que seja”.[14] Neste sistema, o “amor hierárquico” pelos outros, ao qual todos estão ligados, forma “uma rede que envolve toda a sociedade” e garante a estabilidade social[16]. Em outras palavras, o modelo dominante de relações sociais na China é a família patriarcal extensa e ramificada, erguida como um ideal moral e político pelo confucionismo.

Isso significa que, ao contrário da Europa, onde as estruturas sociopolíticas dominantes foram altamente diferenciadas e formas artificiais, como a guilda, a igreja, a cidade e o Estado, na China “é a sociedade civil, uma sociedade extensa, intimamente entrelaçada com laços econômicos e sociais entrelaçados, que se tornou a principal forma de organização social […]. Foi nesses sistemas familiares e nas redes interpessoais que eles encarnaram, e não em uma Igreja ou em um Estado, que os chineses da era imperial encontraram sua principal fonte de subsistência econômica e segurança, bem como os serviços sociais indispensáveis”[16]. Michel Aglietta e Guo Bai levantam a hipótese de que essas estruturas relacionais continuam a sustentar as relações sociais e políticas na China hoje, por exemplo, no que Gramsci chamaria de construção de consenso do Partido Comunista:

Grupos de solidariedade […] são grupos abrangentes e inclusivos que incorporam, como membros, autoridades locais […]. Uma das principais obrigações da solidariedade é fazer a parte do trabalho que corresponde a cada um para o grupo. Essa responsabilidade informal é especialmente eficaz em sistemas políticos fragmentados, onde a aplicação da lei é fraca. [Assim] as autoridades chinesas, por sua vez, não derivam sua legitimidade da democracia processual. Sua legitimidade vem diretamente da aceitação da sociedade civil, a partir das ações da administração. Assim, o governo chinês é diretamente responsável por quaisquer problemas decorrentes da sociedade civil, especialmente quando se trata de segurança, sustentabilidade ou bem-estar da população.[17]

Outro aspecto significativo da formação social e da longa história da China é a relativa indeterminação de certos status sociais e políticos e, portanto, a sensação de que é possível mudá-los por meio da mobilização e do voluntarismo. A China Imperial uniu um poder centralizado, administrado por funcionários selecionados por meio de concursos, a redes complexas de relações sociais e familiares locais. Essa combinação impediu o surgimento de uma aristocracia hereditária como um contrapeso permanente[18.

Mas também significou maiores oportunidades de avanço social em um contexto em que não havia distinção essencial entre nobreza e plebeus. Na China contemporânea, alguns observadores, como o escritor Yu Hua, destacaram a persistência da mobilização coletiva e sua capacidade, senão de transformar conscientemente as estruturas sociais, pelo menos de alterar profundamente as relações hierárquicas dentro da população. Yu Hua vê tanto a Revolução Cultural quanto a entrada na economia de mercado como manifestações da atividade de massa impulsionada pelo desejo de mudar seu destino social:

Quando a Revolução Cultural começou em 1966, o slogan de Mao Zedong ‘temos motivos para nos rebelar’ despertou a natureza revolucionária dos elementos mais fracos da sociedade, que responderam com fervor. Um a um, derrubaram os elementos fortes da época, ou seja, os que detinham o poder [...]. Os comitês tradicionais do Partido Comunista e os órgãos governamentais estaduais entraram em colapso em um piscar de olhos, e os falsos órgãos governamentais surgiram como cogumelos. Foi o suficiente para reunir um punhado de simpatizantes e, da noite para o dia, um quartel-general rebelde pôde ser montado [...]. 
Embora, visto de fora, a sociedade tenha mudado completamente, o espírito permaneceu em alguns aspectos notavelmente semelhante. Se a Revolução Cultural foi um movimento de massas de toda a população, embarcamos no desenvolvimento econômico de forma igualmente massiva [...]. Assim como no início da Revolução Cultural inúmeras sedes rebeldes surgiram de repente, na década de 1980 inúmeras empresas privadas apareceram de repente, à medida que a paixão pela revolução deu lugar à paixão pelo dinheiro. Durante esses trinta anos gloriosos, a classe de pessoas com poucos recursos alcançou feitos sem precedentes.[19]

A partir desses aspectos da história e da sociedade chinesas, seria imprudente tirar mais do que a conclusão que segue: a interpretação da dinâmica chinesa exige que a análise das estratégias do Partido esteja vinculada à longa duração das estruturas sociais e aos afetos e comportamentos coletivos que abalam ou transformam as relações de poder e legitimidade. Podemos supor que é a partir desses dados que podemos tornar inteligível a singularidade do sistema social e político que aspira hoje à hegemonia mundial, os recursos sobre os quais se baseia sua dinâmica econômica e o equilíbrio de suas instituições políticas.

Finalmente, é em relação a essa hegemonia que podemos colocar um problema final. Como Bürbaumer nos lembra, a hegemonia pressupõe o reconhecimento por forças subordinadas de seu interesse em admitir a supremacia do hegemon. Mas, para dar mais um passo na ruptura com qualquer visão brutalmente mecanicista das relações hegemônicas, talvez devêssemos lembrar que, para Gramsci, uma força hegemônica não se mede apenas pela criação de um consentimento de fato: o hegemon só o é na condição de que sua hegemonia expresse uma perspectiva universal, que alcance uma síntese histórica capaz de desenvolver os poderes genéricos da espécie humana entre o maior número possível de pessoas e usá-los para fins racionais.

Por isso, para o comunista da Sardenha, a hegemonia refere-se à “reforma intelectual e moral”, ou seja, à “capacidade de envolver ativamente toda a população, tornando-a protagonista de uma grande e total reviravolta nas relações de poder”[20]. Em outras palavras, a hegemonia nunca é um fato simples: é também um valor, cuja consistência depende do que permite que as pessoas façam consigo mesmas, tomando seu próprio destino em suas próprias mãos. Desse ponto de vista, a luta pelo poder entre as potências mundiais só é interessante se puder reabrir a dialética dessa concepção de hegemonia e, portanto, a perspectiva de uma forma qualitativamente superior de organizar as condições da existência humana na terra.

Seria precipitado afirmar ou negar qualquer coisa sobre a possível ligação entre tal organização e as tendências conflitantes dentro da formação social chinesa: a esse respeito, a investigação ainda precisa ser feita. Como disse uma vez um poeta alemão, “a barbárie não vem da barbárie, mas dos negócios; aparece quando os empresários não podem mais fazer negócios sem ela.

Com as palavras de outro poeta alemão, Goethe, Bürbaumer conclui seu trabalho, exortando-nos a varrer todo o imperialismo. Infelizmente, tal operação não pode ser realizada sem passar pela turbulência, que o livro prevê lucidamente, e que corre o risco de tornar vã qualquer esperança de uma nova hegemonia no sentido gramsciano. Mas seria igualmente inútil temer tal turbulência, dado o preço a ser pago pela manutenção do status quo.

Notas

1 Cf. Maria Antonietta Macciocchi, De la Chine, Paris, Seuil, 1971 e Simon Leys, Les Habits neufs du président Mao: chronique de la “Révolution culturelle”, Paris, Champ libre, 1971, ambos caracterizados por uma crença inabalável na onipotência do Presidente Mao, capaz ora de criar o Novo Homem por decreto e ora de manipular, também por decreto, alguns milhões de subumanos. Infelizmente, é essa visão de novela, que se tornou independente dos dois autores citados, que determina em grande parte o discurso da mídia pública sobre a China, ao contrário de qualquer análise de sua história e de sua estrutura social. A literatura italiana sobre a China e seu papel no mundo de hoje geralmente oferece uma visão bastante complexa e matizada da sociedade e da história chinesas: veja em particular as obras de Simone Pieranni, colaboradora do Il Manifesto, como Red Mirror. Nôtre futur s’écrit en Chine (Editions C & F, 2021) e La Cina nuova (Bari, Laterza, 2021), ou de Alessandra Colarizzi, Africa rossa. Il modello cinese e il continente del futuro (Roma: L’Asino d’oro, 2022).

2Como Bürbaumer corretamente nos lembra, essas diferentes áreas de conflito “não eram estanques de forma alguma “, pois o movimento juvenil se espalhou dos campi para as fábricas e os slogans do Black Power e dos direitos civis acabaram “penetrando na força de trabalho” e ativistas trabalhistas.

3Por exemplo, sobre o “caso” italiano, ver a velha, mas ainda útil, Introdução à coletânea Parti communiste italien: aux sources de l’eurocommunisme (Paris, 18/10, 1977), de Henri Weber: “A conjunção da explosão estudantil e da revolta dos trabalhadores – que tanto faltou no maio francês – multiplicou o poder do movimento de massas, bem como sua carga subversiva: mais de dez milhões de assalariados participaram da luta pelo bem! Eles não lutaram com base em slogans corporativistas, subordinados à lógica do sistema, mas por objetivos anticapitalistas, contraditórios a essa lógica […]. Essa luta contra a organização capitalista da produção leva à demanda pelo controle operário sobre a organização do trabalho […]. O movimento dos delegados de base, que levou à criação de conselhos, desenvolveu-se contra a política dos dirigentes sindicais […]. A influência do movimento estudantil e da extrema esquerda revolucionária nas assembleias […] atesta isso […]. Como sabemos, esse movimento anticapitalista (e antiburocrático) das massas não se limita às paredes das fábricas. Tomou conta do meio ambiente e das instituições: o movimento pela auto redução do preço do transporte, gás, eletricidade, telefone, aluguéis, impostos […]; a luta contra a falocracia e a família patriarcal, contra a escola, a justiça de classe e o exército”, sem esquecer a reivindicação da “independência da remuneração em relação à produtividade”, que representa um ataque direto à rentabilidade do capital no contexto de uma queda na taxa de lucro. Esses são claramente os mesmos “momentos” que compõem a sequência nos Estados Unidos. Não foi por acaso que a Itália chamou a atenção para a Comissão Trilateral, que, como recorda Bürbaumer, foi um ator fundamental na reestruturação global do capital que emergiu da crise dos anos 1970

4Observar uma queda histórica na taxa de lucro não significa admitir a existência de uma tendência de queda imanente à dinâmica capitalista. Esta última hipótese pode ser associada à ideia (nociva) de uma tendência do capitalismo a se superar por meio de seu movimento interno. No entanto, a formulação de Henryk Grossmann da teoria da tendência descendente da taxa de lucro visa vincular explicitamente os limites internos da valorização capitalista com as lutas sociais e estratégias das potências capitalistas. A obra de Grossmann caiu no esquecimento durante os Trinta Anos Gloriosos, quando o único limite imanente a um capitalismo crescente parecia ser o antagonismo direto da classe trabalhadora, mas merece ser relida em um momento em que a estagnação das lutas coexiste com o surgimento de uma poderosa turbulência dentro do sistema. Veja Romaric Godin, “Henryk Grossman, replacer la lutte de classes au cœur de la crise capitaliste“, emMediapart, 5 de agosto de 2023,https://www.mediapart.fr/journal/economie-et-social/050823/henryk-grossm….

5Bürbaumer cita William Milberg e Deborah Winkler, Outsourcing Economics. Cadeias de Valor Globais no Desenvolvimento Capitalista, Cambridge e Nova York, Cambridge University Press, 2013, p. 12.

6“O alcance das reformas liberais (1979, 1984, 1987-1988) foi diluído pelas medidas contrárias (1981-1982, 1986, 1989-1991)” (p. 72). Essa oscilação parece ser uma característica estrutural ou pelo menos persistente do governo chinês, e certamente mereceria uma análise aprofundada.

7Bürbaumer aponta que os investimentos estrangeiros na China são administrados no nível da aldeia ou comuna por atores locais (intermediários, comerciantes, produtores etc.) ligados a empresas estrangeiras por contratos. Assim, as cadeias globais de valor estão ligadas a uma estrutura social e familiar chinesa altamente dinâmica e densamente estruturada, com laços de solidariedade mais ou menos informais. Sobre esses aspectos, ver Michel Aglietta, Guo Bai, La voie chinoise. Capitalisme et empire, Paris, Odile Jacob, 2012.

8Giovanni Arrighi, Adam Smith in Beijing, London & New York, Verso, 2007, dá ênfase especial a esse aspecto da sociedade chinesa. Ele argumenta que a ascensão das economias asiáticas, e da China em particular, no final do século XX foi baseada em uma grande massa de trabalhadores pouco qualificados, não ligados a tarefas parceladas, mas com um alto grau de coesão social. Pelo contrário, tinham uma forte capacidade de multitarefa e uma vontade de cooperar, de partilhar o trabalho e a responsabilidade no seio da família ou da aldeia, de se integrar na comunidade de trabalho, de responder com flexibilidade a emergências ou circunstâncias imprevistas e de antecipar as dificuldades. Se seguirmos a trilha de Arrighi, podemos concluir que um dos principais impulsionadores da produtividade do trabalho na China é o hábito da cooperação e da ação coletiva, que pode ser encontrado, de forma diferente, nos elos de “proximidade” dentro das cadeias de valor.

9O poder monetário extraterritorial de um Estado está ligado ao grau de internacionalização da moeda que emite, e é implantado nas três funções do dinheiro – meio de troca, unidade de conta, reserva de valor – projetadas no cenário internacional.

10Bürbaumer aponta que o envolvimento da China nos assuntos internacionais sempre foi uma preocupação de seus líderes desde a década de 1990, em paralelo com seu desenvolvimento interno.

11Alessandra Colarizzi, África rossa…, op. cit.

12 Ibid

13M. Aglietta, Guo Bai, La voie chinoise, op. cit, p. 29.

14Ibidem, pág. 32.

15Ibidem, pp. 397-399.

16Ibidem, págs. 37-38.

17 Yu Hua, La Chine en dix mots, Arles, Actes Sud, 2010, pp. 265-267.18Fabio Frosini, “Riforma intellettuale e morale”, in Guido Liguori, Pasquale Voza (eds.), Dizionario gramsciano, Roma, Carocci, 2009, p. 711.

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