19 de janeiro de 2023

Hermenêuticas criminosas

Interpretação errônea da lei pode causar efeitos colaterais como a invasão dos prédios dos Três Poderes

Lenio Luiz Streck


A estátua da Justiça no Supremo Tribunal Federal Cristiano Mariz

Desde 1893, nenhum juiz pode ser acusado de crime de hermenêutica. Foi Rui Barbosa quem lançou a tese ao defender um juiz acusado de distorcer a lei.

Porém há uma diferença entre crime de hermenêutica e o uso da hermenêutica para fazer incitamento a cometimento de crime(s). Explico em dois exemplos. O primeiro é o mais notório: a enviesada hermenêutica do Artigo 142 da Constituição. Graças a essa leitura, milhares de radialistas, operadores jurídicos, militares, pessoas comuns e ex-jogadores de bingo passaram a ter a convicção de que a Constituição continha uma espécie de dispositivo autoimplosivo, um reset institucional. Essa ideia lhes foi "vendida".

Gente do Direito e militares fizeram uma leitura do tipo "todo o poder emana das Forças Armadas". Tese tão absurda que o Supremo Tribunal Federal a chamou de terraplanismo jurídico (voto do ministro Luís Roberto Barroso).

Ademais, pudesse o Artigo 142 ser lido do modo como queriam os militares e alguns juristas famosos e outros não tanto, nossa Constituição teria sido reescrita, e passaríamos a ler que "todo o poder não emana mais do povo, por meio de seus representantes, e sim das Forças Armadas", uma vez que essas constituiriam um metapoder de Estado.

Há que ter uma responsabilidade ética na interpretação de textos. Quero dizer que, por vezes, fazer um certo tipo de hermenêutica pode ser um incitamento ao crime. Mesmo que o intérprete não queira. As pessoas (leia-se militares e políticos) podem acreditar que, de fato, as Forças Armadas são o poder moderador.

Por isso juristas deveriam avisar, na bula, que sua interpretação pode causar efeitos colaterais como a invasão dos prédios dos Três Poderes, como ocorreu no dia 8. Não se diga, agora, que quem leu o Artigo 142 tortamente pode tirar o corpo fora.

Há limites na interpretação de qualquer dispositivo. Se uma lei proíbe cães na plataforma, não se pode achar que permite ursos. Ou que o cão-guia do cego esteja proibido.

E vejam o grau de culpa do general Augusto Heleno, que, em agosto de 2021, disse numa rádio e TV que "o Artigo 142 é bem claro, basta ler com imparcialidade. Ele existe no texto constitucional, é sinal de que pode ser usado" [sic]. Incentivou quantos crimes o preclaro general? Onde estava o Ministério Público?

O segundo exemplo de má hermenêutica foi inferir que a nova Lei de Defesa do Estado Democrático (14.197/2021) garantia a livre manifestação golpista, desde que pacífica. Até os comandantes militares entraram nessa patacoada anti-hermenêutica. Leiamos: "Não constitui crime (...) a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais".

Ora, pedir (incitar) golpe militar (em acampamentos e programas de rádio e TV) tem propósitos sociais?

Uma coisa é certa: sustentar que o Artigo 142 era um dispositivo de reset da democracia e apregoar que era livre expressão pedir intervenção militar são dois exemplos do que uma má hermenêutica pode provocar. Porque muita gente acreditou. Basta ver o que ocorreu no dia 8 de janeiro.

Quem colocou o jabuti no Planalto? Parte da culpa é de uma má hermenêutica. Por dolo ou culpa. A História há de mandar a conta.

Lenio Luiz Streck, jurista, professor e advogado, é autor de "Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito"

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