22 de março de 2023

A estupidez da natureza

Slavoj Žižek



Tradução / Vou confessar um prazer que me deixa culpado e provoca o desprezo de quase todos os meus amigos. Gosto bastante do filme de ficção científica mais ou menos recente de Roland Emmerich, Moonfall – Ameaça Lunar. O filme parte da premissa de que a Lua é uma megaestrutura sintética construída pelos ancestrais da humanidade, como uma arca para repovoar a nossa espécie depois do conflito com uma poderosa inteligência artificial (IA) fora de controle.

Duas características do filme que acho interessantes são, primeiro, a desnaturalização do que percebemos originalmente como um gigantesco objeto natural – a superfície esburacada da Lua é apenas a máscara que esconde uma complexa máquina interna; e, em segundo lugar, o conflito que estrutura a totalidade da história humana se trava entre duas estirpes de inteligência artificial, a IA da Lua e a ia fora de controle, não entre a humanidade e uma IA enquanto tal.

Então, o que acontece se universalizamos a premissa e concebemos a própria natureza – o que vemos como seus traços mais “naturais” (a espontaneidade, o caos etc.) – como uma aparência enganosa ocultando uma máquina interna? Os mais recentes desenvolvimentos biogenéticos não nos ensinam que estamos entrando numa nova fase em que é a própria natureza que se desmancha no ar?

A biotecnologia é um prenúncio do fim da natureza. Depois que descobrimos as regras de sua construção, os organismos naturais se transformam em objetos passíveis de manipulação. A natureza, tanto a humana quanto a não humana, é assim “dessubstancializada”, despojada de sua densidade impenetrável, do que Martin Heidegger chamava de “Terra”. E isso nos obriga a atribuir um novo sentido ao título de Freud, Das Unbehagen in der Kultur – o mal-estar, o desconforto, na cultura.[1] Com os desdobramentos mais recentes, o desconforto se desloca da cultura para a própria natureza: a natureza não é mais “natural”, o pano de fundo sempre confiável e “denso” das nossas vidas. Ela agora aparece como um mecanismo frágil que a qualquer momento pode explodir numa catástrofe.

Crucial, aqui, é a interdependência entre o homem e a natureza: reduzindo o homem apenas a um objeto natural a mais, cujas propriedades podem ser manipuladas, o que perdemos não é (só) a humanidade, mas também a própria natureza. Nesse sentido, Francis Fukuyama tem razão. A própria humanidade conta com uma noção de “natureza humana” que simplesmente nos é dada, a dimensão impenetrável em/de nós mesmos em que nascemos/somos despejados. O paradoxo, assim, é que o homem só existe na medida em que existe uma natureza humana impenetrável (a “Terra” de Heidegger). Com a possibilidade de intervenções biogenéticas inaugurada pelo acesso ao genoma, a espécie pode ter a liberdade de modificar ou redefinir a si mesma, suas próprias coordenadas. Essa possibilidade, na prática, emancipa a humanidade das limitações de uma espécie finita, de sua escravização pelos “genes egoístas”. No entanto, essa liberdade suprema (de autorreconstrução genética) coincide com a ausência suprema de liberdade: eu próprio me vejo reduzido a um objeto que pode ser interminavelmente remodelado.

Aqui chegamos à outra característica de Moonfall – Ameaça Lunar, que permite ao filme diluir a implicação radical da desnaturalização da natureza: o conflito subjacente ao enredo é o confronto entre duas espécies de IA, que atuam ambas como entidades dotadas de vontade e intenção ativas. O que se perde com isso é algo que só podemos chamar de absoluta estupidez da natureza: a natureza é estupidamente indiferente às tribulações da humanidade, e as teorias da conspiração têm a intenção precisa de tornar essa estupidez menos patente, como podemos ver no caso das interpretações conspiratórias da pandemia de Covid.

Moonfall - Ameaça Lunar celebra um teórico da conspiração de nome K. C. Houseman (interpretado por John Bradley), o único que sabe o que está acontecendo o tempo todo, embora esteja totalmente excluído da esfera acadêmica oficial. Para salvar o mundo, ele une forças com um astronauta caído em desgraça e a ex-mulher do astronauta, a diretora da Nasa (Halle Berry) que também tem dúvidas quanto à versão oficial do que está acontecendo.

Aqui o enredo dá uma guinada quase freudiana: em seu desfecho, o astronauta e a chefe da Nasa decidem tentar de novo e voltam a formar um casal, mas para tanto Houseman precisa se sacrificar, morrendo no interior da Lua para dar cabo da ia malévola. Houseman toma essa decisão para impressionar sua mãe, provar para ela que é realmente capaz de atos de grandeza. Depois disso, o par romântico do filme se une para sempre no espaço virtual da IA boa da Lua. Assim, o casal só pode ser formado graças ao sacrifício altruísta da figura de Houseman, um incel – não existe casal feliz sem o sacrifício de um indivíduo incestuosamente obcecado. E descobrimos também que o autossacrifício de Houseman replica o autossacrifício da IA primordialmente “boa”, que se anula como entidade ativa para permitir que a vida floresça na Terra. Aqui, estamos mergulhados até os joelhos na teologia sacrificial: a humanidade deve sua existência ao sacrifício de uma inteligência sobrenatural.

É por isso que Moonfall – Ameaça Lunar é bastante inferior a Não Olhe para Cima, de Adam McKay, em que também precisamos levantar os olhos para enxergar o que ameaça a nossa sobrevivência. Só que essa ameaça é aceita, em sua estupidez sem sentido, sem qualquer conspiração subjacente: um imenso cometa se avizinha da Terra, e o choque próximo irá destruir toda a vida do planeta. Esse apocalipse definitivo (a vida na Terra se extinguirá dali a seis meses e todos sabem, embora esse conhecimento seja repudiado) é apresentado sob a forma de uma sátira política – mais precisamente uma sátira por trás da qual se percebem o tempo todo as trevas mais extremas. A opção pela sátira é correta: quando lidamos com uma catástrofe verdadeira, vemo-nos além do alcance da tragédia, e só a comédia pode se desincumbir da tarefa graças a sua própria inadequação à situação vigente – lembrem que os melhores filmes sobre os campos de concentração são comédias.

Não admira que alguns críticos tenham se incomodado com a leveza de tom de Não Olhe Para Cima, argumentando que o filme trivializa o apocalipse definitivo. O que de fato incomodou esses críticos é exatamente o oposto: o filme põe em destaque a trivialização que permeia não só o establishment, mas também seus contestadores. A presidente dos Estados Unidos (interpretada por Meryl Streep) é obviamente baseada em Hillary Clinton, de modo que sua relutância em levar a ameaça a sério não vem de uma posição populista de direita. E mesmo aqueles que insistem nos protestos, os que mais adiante no filme repetem a palavra de ordem “Olhe Para Cima!”, suplicando que se leve a sério o cometa cada vez mais próximo, não estão propondo qualquer providência eficiente – limitam-se a participar de um grande espetáculo com estrelas pop, entoando as palavras de ordem mais óbvias. Em vez de indicar um ataque barato aos populistas de direita, os alvos do filme são as duas reações predominantes a ameaças como o aquecimento global: a do establishment liberal e dos ecologistas que protestam contra ele.

Mais precisamente, a lição de Não Olhe Para Cima é que os teóricos da conspiração incorporam o inconsciente da “racionalidade” do establishment liberal. A verdade é exatamente o oposto do costumeiro argumento conspiracionista segundo o qual o poder estabelecido invoca cinicamente falsas ameaças de calamidade para controlar as pessoas. Pelo contrário, as forças do establishment sabem perfeitamente que o perigo é real, mas não conseguem elas mesmas, no íntimo, acreditar nele – são elas os verdadeiros negacionistas.

As reuniões festivas promovidas no jardim por Boris Johnson durante um lockdown rigoroso são reveladoras: embora o primeiro-ministro britânico conhecesse perfeitamente a realidade da Covid – e de fato quase morreu da doença –, essas festinhas demonstram que na verdade não acreditava nela, que percebia a si mesmo e a seu círculo mais íntimo como de alguma forma isentos desse mal. Quando, no filme, a presidente e comandante em chefe Streep faz uma pergunta – “Mas o choque do cometa com a Terra vai impedir o Super Bowl?” –, ela exemplifica perfeitamente essa postura, como se o fim de toda a vida na Terra não tornasse a pergunta sem sentido. Eis por que o verdadeiro alvo da nossa crítica não deve ser os negacionistas absolutos, mas o falso “racionalismo” do establishment.

E, surpreendentemente, isso nos remete de volta a Moonfall – Ameaça Lunar. Em Não Olhe Para Cima, a humanidade está condenada, enquanto em Moonfall um bando de excêntricos antiestablishment salva a Terra. Serão essas as únicas alternativas que temos? Agir com base em teorias da conspiração ou nos sentarmos à mesa, degustando tranquilamente um último repasto enquanto esperamos a explosão da catástrofe (a última cena de Não Olhe Para Cima)? Existe uma terceira opção: devemos aceitar a lição da teologia sacrificial que permeia Moonfall – Ameaça Lunar, mas situá-la numa aceitação materialista da estupidez sem sentido da natureza.

A humanidade deve sua existência não ao sacrifício de alguma inteligência sobrenatural, mas aos imensos extermínios e sofrimentos que acometeram a vida na Terra. Sem a extinção dos dinossauros não haveria vida humana no planeta. Nossas principais fontes de energia (carvão e petróleo) são resquícios de uma destruição inimaginável ocorrida no passado. Nossos hábitos cotidianos dependem do sofrimento global – basta pensar no que ocorre em granjas industrializadas com os porcos e os frangos.

Não somos apenas uma catástrofe para o nosso meio ambiente – emergimos dessa catástrofe e ainda hoje vivemos dela. O cometa que atingiu os animais da Terra somos nós: o espírito humano. E todos esses sacrifícios jamais poderão ser redimidos por algum novo tipo de Tribunal de Nuremberg que nos condene por nossos crimes contra a vida natural. A coisa mais difícil não é encontrar um sentido profundo no sofrimento, mas aceitar realmente a sua falta de sentido.

Slavoj Žižek, a Slovenian philosopher and cultural critic, is a contributing editor of Compact.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...