6 de julho de 2024

A esquerda dividida da Bolívia corre o risco de perder o poder

Um golpe desajeitado e de curta duração no mês passado não conseguiu trazer de volta ao poder as desacreditadas forças conservadoras da Bolívia. Mas a divisão entre Luis Arce e Evo Morales sobre o legado do Movimento pelo Socialismo poderia dar a essas forças uma abertura maior.

Pablo Castaño

Jacobin

O presidente boliviano, Luis Arce, dá uma entrevista coletiva após uma tentativa fracassada de golpe, 27 de junho. (Marcelo Perez del Carpio/Bloomberg via Getty Images)

Tradução / Quinta-feira, 26 de junho, as tropas ocuparam a Plaza Murillo em La Paz, onde se encontra a sede do governo boliviano. O comandante Juan José Zúñiga, chefe do exército, invadiu a praça com uma centena de soldados e um conjunto de veículos blindados, derrubando a porta do Palacio Quemado, onde o presidente Luis Arce e seus ministros tentaram resistir bloqueando as entradas com móveis.

Embora a tentativa de golpe de Zúñiga tenha terminado logo em derrota, ela significou que a ameaça de rebeliões militares voltaram à América Latina apenas um ano após os seguidores de Jair Bolsonaro tentarem tomar o poder pela força no Brasil. Essa situação não é nova na Bolívia, o país que viveu mais golpes de estado desde 1945.

O último foi em 2019, quando o presidente Evo Morales foi derrubado por uma insurreição cívico-militar e obrigado a se exilar após treze anos de relativa estabilidade política sob os governos do Movimiento al Socialismo (MAS). É necessário recordar esse momento para entender o que aconteceu em 26 de junho e que efeitos pode ter para esquerda boliviana, que se mantém no poder, mas está profundamente dividida e mais frágil do que em qualquer momento desde que Morales chegou à presidência.

Um golpe confuso

Várias teorias sobre a tentativa de golpe circularam, mas parece ter sido a resposta individual do comandante Zúñiga à sua demissão por Arce uma decisão tomada depois que o general ameaçou o ex-presidente Morales na televisão. Ainda que Arce e Morales, antes aliados, estejam agora abertamente em desacordo, o atual presidente decidiu destituir Zúñiga de seu cargo depois deste declarar em televisão que prenderia Morales se tentasse concorrer novamente às eleições. Isso violou a proibição de participação dos militares na política.

Arce destituiu Zúñiga, mas não nomeou imediatamente um substituto, o que permitiu ao militar conservar temporariamente o comando sobre suas tropas e reunir forças suficientes para tomar a central Plaza de Murillo durante algumas horas. Naquele lugar, o general rebelde pronunciou um confuso discurso, afirmando: “ Estamos escutando o clamor do Povo. Porque durante muitos anos uma elite assumiu o controle do país. As forças armadas pretendem reestruturar a democracia”.

No entanto, é pouco provável que a insurreição Sugira de um plano bem estabelecido para tomar o poder, sempre tinha apoiado Arce anteriormente. O presidente enfrentou Zúñiga na entrada do Palácio, mandando que ele se retirasse, enquanto milhares de bolivianos saíram às ruas para protestar contra o golpe. Zúñiga se rendeu em poucas horas devido à total falta de apoio nacional e internacional à sua tentativa de tomada do poder. Inclusive os líderes de direita presos pelo golpe de 2019, os que Zúñiga prometeu liberdade em caso de vitória, rejeitaram a tentativa.

Praticamente todos os governos latino-americanos – inclusive o de extrema-direita de Javier Milei na Argentina – condenaram a insurreição militar. A Organização dos Estados Americanos (OEA), que em 2019 favoreceu o levante contra Morales ao fazer acusações não comprovadas de fraude eleitoral contra o então presidente, também desta vez ficou do lado da democracia boliviana. A Casa Branca pediu “calma e moderação” diante da tentativa de Zúñiga. Diferente de muitos outros golpes de Estado na América Latina, até agora não existem indícios do envolvimento dos Estados Unidos.

Uma esquerda dividida

Uma rebelião militar mostrou as profundas divisões dentro do MAS, o partido socialista-indígena que governa país desde 2006, sendo interrompido apenas com o governo de Jeanine Áñez (2019-2020). Durante sua longa hegemonia, a sucessivas administrações do MAS conseguiram níveis recordes de crescimento econômico, reduzir um drasticamente desigualdade e a pobreza, e abrir as portas do poder a maioria indígena do país pela primeira vez na história, com Evo Morales como líder efetivo e simbólico do chamado processo de mudança.

Áñez, que contou com o apoio do establishment político conservador e liberal na sua tomada ilegal do poder em 2019, geriu a pandemia de forma desastrosa e teve que convocar eleições em outubro de 2020. Luis Arce, que tinha sido ministro da economia do MAS durante mais de uma década, substituiu a Morales como candidato presidencial e ganhou com 55% dos votos. Apesar de Arce não ter o carisma de seu mentor, ele gozava de boa reputação no seu cargo de ministro da economia.

As hostilidade entre ambos os líderes começaram quando Arce expressou sua intenção de se apresentar à reeleição em 2025. Desde então, a rivalidade tem escalado até se converter em uma enfrentamento total, com os parlamentares do MAS divididos entre ambos. O conflito é tão grave que ambas as partes se acusam mutuamente de vínculos com o narcotráfico. Alguns seguidores de Morales inclusive tem difundido a teoria de que o golpe militar dia 26 de junho foi, na verdade, um “autogolpe” orquestrado por Arce para aumentar sua popularidade, o rumor iniciado pelo próprio Zúñiga e que a oposição conservadora fez.

Um elemento central da atual crise política é a insistência de Morales em se apresentar de novo às eleições presidenciais. A Constituição política de 2009 estabeleceu um limite de dois mandatos consecutivos de cinco anos. Um referendo foi realizado em 2016 para alterar a Constituição e remover o limite, mas a campanha do “não” ganhou por uma margem estreita. Uma decisão do Tribunal Constitucional permitiu ao então presidente se apresentar [à reeleição] de qualquer forma em 2019, mas sua vitória eleitoral foi barrada pelo golpe militar.

Em 2023, outra decisão judicial restabeleceu a proibição da reeleição, acrescentando uma proibição de reeleição para mandatos não consecutivos, que não está na Constituição. Morales denunciou que se tratava de uma decisão politicamente motivada de um tribunal sob influência de Arce, sem renunciar a sua intenção de voltar a se apresentar nas eleições de 2025.

A divisão dentro do MAS provocou uma autêntica crise institucional, que levou ao adiamento indefinido das eleições judiciais inicialmente previstas para 2023 e a um bloqueio parlamentar que dificulta medidas para enfrentar a crise econômica do país. Durante os dois primeiros anos de governo de arte, a Bolívia teve uma das suas taxas de inflação mais baixas da América (pouco mais de 1% em 2022, apesar da guerra da Ucrânia). No entanto, as grandes reservas cambiais acumuladas durante os anos de prosperidade econômica, baseada na exportação de hidrocarbonetos, já estavam escutadas.

O impacto da pandemia e o declínio nas vendas de gás, junto com a lenta decolagem do setor de lítio, são os principais fatores da atual escassez de moedas estrangeiras, que compromete o financiamento necessário para os grandes subsídios aos combustíveis concedidos pelo governo boliviano. Um possível corte nesses subsídios, aliado ao aumento da inflação e da escassez de certos produtos, seria um cenário desastroso para economia boliviana e para a popularidade do governo de Arce, que caiu para 18% em junho.

Um futuro incerto

Na atualidade, o está MAS desorganizado: não tem claramente um candidato e pode ocorrer uma batalha legal pelo controle do nome do partido para as eleições de 2025. A situação é tão caótica que nem mesmo está garantida a organização regular das primárias, que, pela lei, os partidos devem celebrar para eleger seus candidatos.

A tentativa de golpe de Zúñiga pode aumentar a simpatia popular por Arce a curto prazo. No entanto, não impulsionará a reconciliação que o MAS todo país necessita desesperadamente. A única boa notícia para a esquerda é que seus rivais conservadores também não estão em boa forma.

O apoio das elites políticas conservadoras e liberais ao golpe cívico-militar de 2019 acabou desanimando a oposição, que nunca foi capaz de construir uma alternativa sólida e atrativa ao MAS. Hoje, Áñez e Luis Fernando Camacho, alguns de seus principais apoios, estão presos por sua participação na insurreição de 2019 e os partidos tradicionais não conseguiram construir novas lideranças capazes de atrair o apoio social majoritário.

A única certeza é que a era de crescimento econômico e de progresso social que seguiu a eleição de Evo Morales em 2005 como primeiro presidente indígena da Bolívia chegou a seu fim. O país andino, um dos mais pobres da América do Sul, parece estar condenado ao longo período de instabilidade política e fragilidade econômica, o que poderia obrigar ao próximo governo, independentemente de sua orientação política, a implementar cortes orçamentários. As perspectivas de futuro parecem sombrias para um país que durante muitos anos inspirou à esquerda da região por sua capacidade de superar o neoliberalismo e fazer justiça para a maioria indígena diante de séculos de racismo estrutural.

Colaborador

Pablo Castaño é jornalista freelancer e cientista político. É doutorado em Política pela Universidade Autónoma de Barcelona e escreveu para Ctxt, Público, Regards e The Independent.

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