Marcos Augusto Gonçalves
Editor da Ilustríssima e autor de "1922 - A Semana que Não Terminou" (Companhia das Letras, 2012)
[RESUMO] Autores e roteiristas falam sobre série "Cangaço Novo", que reúne violência, paixões e conflitos políticos, revitaliza o nordestern, o western nordestino, reverbera o cinema novo, "Cidade de Deus" e "Bacurau", e se torna uma das produções mais vistas em dezenas de países. Elenco, roteiro e cenas de ação chamam a atenção pela qualidade.
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A expressão novo cangaço começou a ser utilizada pela imprensa e por agentes de segurança pública na década de 1990 para denominar uma nova espécie de crime que consistia na tomada de pequenas cidades, inicialmente no Norte e Nordeste do país, carentes de forças policiais, por quadrilhas que assaltavam agências bancárias ou carros-fortes.
As ações, marcadas por extrema violência, se estendiam por até uma hora e terminavam em tiroteios e mortes de seguranças, policiais, bandidos e inocentes. Posteriormente, esses assaltos passaram a ser praticados em municípios do Sudeste.
As ações, marcadas por extrema violência, se estendiam por até uma hora e terminavam em tiroteios e mortes de seguranças, policiais, bandidos e inocentes. Posteriormente, esses assaltos passaram a ser praticados em municípios do Sudeste.
Mariana Bardan (esq.) e Eduardo Melo, criadores da série "Cangaço Novo" - Divulgação |
Numa reportagem publicada em 2021, o jornal O Estado de Minas usou o termo "cinematográfico" para descrevê-los. O diário assinalava que, entre 2011 e 2014, teriam sido registradas no estado 386 ocorrências nos moldes do novo cangaço.
Foi por essa época, mais precisamente em 2013, que Mariana Bardan e Eduardo Melo começaram a escrever a história de "Cangaço Novo", série em oito episódios que mergulha nesse universo e dá um salto de qualidade no streaming nacional. Tornou-se top 3 da Amazon Prime Video no Brasil e chegou entre as dez mais assistidas em 49 países, com elevada audiência na África, segundo o site Flix Patrol.
Eduardo, 40, e Mariana, 35, conheceram-se em 2008 na faculdade de cinema da Faap, em São Paulo, onde estudaram com bolsas que cobriam 50% das mensalidades. Ele é filho de mãe baiana e pai cearense, de famílias que migraram para o Sudeste; ela nasceu em Tremembé, no interior de São Paulo, e viveu um período em São Luiz do Paraitinga. Em dois meses de faculdade já estavam namorando —e continuam juntos até hoje. Antes de ingressar na Faap, Mariana, inventando maneiras de deixar a vida interiorana, conseguiu estudar um ano de cinema em Moscou.
Em 2013, período em que buscavam ideias para um projeto próprio, os dois assistiram ao filme "O Profeta", do diretor francês Jacques Audiard. O longa tinha sido indicado para representar a França no Oscar de 2010 e recebeu diversos prêmios na Europa. A história e a atuação de Tahar Rahim foram marcantes para o casal, que então participava de um grupo de estudos de roteiros com colegas recém-formados.
Foi Mariana quem teve a faísca: ambientar uma série de ação e crime, como o filme francês, no Nordeste, no contexto da explosão de assaltos do novo cangaço. "Quando a gente juntou um dado, que o Edu tinha visto na imprensa, sobre a ocorrência de mais de 130 assaltos da modalidade só no Ceará, com o Tahar Rahim interpretando um presidiário que tinha que lidar com diferentes pessoas e máfias de uma forma muito inteligente, começamos a desenvolver o que hoje virou o 'Cangaço Novo'", conta ela.
A ideia àquela altura era inscrever o projeto em um edital público da Ancine. Foi o que fizeram, mas o resultado não veio. Sem nada na mão, Edu, que também é bacharel em matemática aplicada e computacional pela USP, ganhava a vida na área de marketing e produtos da operadora Vivo. Sonhando sempre com o roteiro, os dois decidiram vender tudo e tentar a vida em Los Angeles, para onde viajaram, em 2014.
"Eu pedi demissão do emprego, vendemos o carro e fomos para lá. Fizemos um curso de roteiro, mas vimos que não tínhamos condição nenhuma de ficar. Primeiro, porque o dinheiro ia acabar. E depois porque a concorrência era uma coisa absurda. Você entrava num café, eram 15 pessoas com Final Draft [software para escrita de roteiros] aberto, todo mundo escrevendo. Você ia comprar uma bebida, quem estava te servindo era um ator. Você pegava um táxi, quem estava dirigindo era um diretor. É uma coisa louca, Los Angeles", recorda Edu.
De volta ao Brasil, Mariana começou a trabalhar em making of de séries. "Nessa, eu conheci um monte de diretores, entre eles o Fábio Mendonça, da O2, em 2015. E falei: Edu, achei o cara para a gente mostrar o projeto, acho que ele vai gostar."
E de fato gostou. "A ideia sempre foi fazer uma série. Já tínhamos umas 30, 40 páginas, que era o que o edital pedia. Tínhamos o argumento do piloto e as sinopses curtas do que a gente imaginava que seriam as próximas temporadas. Tínhamos também outros textos para justificar e defender o projeto. Quando mostramos, ele não demorou muito para responder: gostei, tem potencial, contem comigo."
Por intermédio de Mendonça, o projeto foi para a O2. "Apresentamos para a Andrea Barata Ribeiro [produtora] e para a assistente dela, que na época era a Marcia Berta. E já na primeira reunião disseram que tentariam vender. A gente já tinha uma apresentação visual superbacana, mas quando você entra na produtora, a coisa sofre alterações conforme vai avançando na tentativa de vender para os players. A série era uma coisa muito grande e cara, era como se fôssemos fazer quase quatro longas-metragens. Era para poucos investidores, e naquela época a Amazon ainda nem estava no Brasil", contam os dois.
A cada etapa, novas sugestões surgiam, algumas muito bem-vindas, outras nem tanto. "Nós fazíamos um esforço de tentar atender tudo o que as pessoas achavam. Precisa ter mais isso, vamos botar mais isso, precisa ter um romance, vamos botar um romance. E entra consultor, sai consultor, entra roteirista, sai roteirista… Você vai entendendo o tamanho do negócio. É um bichão, parece que você está numa daquelas mesas de mixagem de som, com 200 mil botões", compara Edu.
Foi em 2018 que a Amazon abraçou o projeto. Fernando Garrido e Erez Milgrom entraram para o grupo de roteiristas, chegaram as consultorias estrangeiras e a engrenagem começou a rodar. "Foi excelente. Mas tem essa situação dolorosa de você estar lá tentando vender o seu projeto. Você vai cedendo. Mas por mais dolorido que tenha sido, hoje agradecemos muito, inclusive os momentos em que a gente disse: 'Não dá para ceder'", diz Edu.
E o que não deu para ceder? "Teve uma pessoa, por exemplo, que veio falar que os bandidos deveriam ser adolescentes, porque essa bandidagem de 30 anos não ia dar muito certo. Isso não dava para ceder, até porque assaltante de banco já é o PhD do crime. O processo foi tipo carregar água na mão: vai carregando, vai caindo. O que sobrar é o projeto. É isso. Mas sobrou bastante coisa boa", relembra Mariana.
Do roteiro às filmagens, que consumiram meses escaldantes em locações no Rio Grande do Norte e na Paraíba, uma longa novela se passou, com episódios imprevisíveis, como a eclosão da pandemia de Covid-19.
"Estava tudo acontecendo, a gente a todo vapor", relata Edu. "O Aly Muritiba tinha chegado para participar da direção, fez sugestões, estava com uma puta energia, aquele clima de 'vamos filmar, vamos filmar'... e vem a pandemia. Depois de seis, sete anos de projeto, a gente se olhava e falava: 'Meu Deus do céu'. Tudo o que a gente podia fazer pelo projeto, a gente fez. Tem que reescrever, reescreve; tem que fazer, faz; tem que cair esse personagem, cai. Tudo a gente fazia. Mas com a pandemia não tinha o que fazer."
Além do principal, as gravações, as restrições atingiram em cheio etapas prévias da produção, como os incontáveis testes para a escolha de um elenco nordestino. Com limitações para fazer tudo presencialmente, a solução foi partir para o digital. "A gente começou a escrever cenas específicas para testes online que nem estariam na série. Elas foram usadas só para a gente poder ver mais das pessoas, poder fazer esse casting", lembra Mariana.
Com o apoio de produtores de estados do Nordeste, formou-se enfim o elenco, que tinha como ponto central a química entre o personagem Ubaldo e suas duas irmãs —em especial a heroína Dinorah, que ganhou vida com uma atuação espantosa da atriz Alice Carvalho.
"Quando a gente escreveu, tinha muito essa questão: caralho, mano, essa mina precisa ser um arregaço... Quem vai ser essa mina? Na minha cabeça, eu pensava numa atriz ou outra, mas quando ela apareceu... Nossa, ainda bem! Obrigada por ter aceitado esse papel", diz Mariana.
Se a performance do elenco chama a atenção, não são menos impressionantes as complexas cenas de ação, que elevam o gênero nordestern, nesse aspecto, a alturas nunca alcançadas. Foi mais um bem-sucedido encontro dos roteiristas com a realização. O responsável pelas cenas foi o experiente espanhol Jordi Casares, que trabalhou em inúmeros filmes.
"A gente chorou quando viu as coisas dele", diz Edu. "Ele abraçou a equipe, a equipe abraçou ele. Isso foi fundamental. E não era só a qualidade das cenas, mas toda a questão da segurança. A gente fez um trabalho de roteiro, com a ideia de que cena de ação não deveria ser só tiro, carro virando e bomba. Cena de ação tem que ser drama também. Então você vai perceber que nossas cenas têm toda uma progressão dentro delas."
Essa foi apenas uma das exigências que o perfeccionismo do casal apresentou como desafio para o roteiro. Uma outra foi abandonar a ideia de que o fundamental era ter episódios iniciais eletrizantes. "Nós queríamos uma série inteira eletrizante, como Billy Wilder, né? Pega o espectador pelo pescoço, tira do chão e não solta nunca mais. E para isso nós colocamos o dogma de não ter flashback no meio do episódio e abandonamos o paradigma impregnado em todos nós de que o piloto, o primeiro episódio, é que tinha que ser foda. É claro que queríamos um piloto foda, mas o segundo tinha que ser melhor que o piloto, o terceiro melhor que o segundo e assim até o fim."
Além de "O Profeta" e de Billy Wilder, duas outras referências cinematográficas foram citadas por eles ao longo da conversa, John Ford e Sergio Leone —diretores ligados ao universo do cineasta Glauber Rocha.
Ford é uma das fontes de inspiração para "Deus e o Diabo na Terra do Sol", um nordestern político e alegórico dos tempos do velho cangaço no estilo cinema novo. O filme foi lançado em 1964, mesmo ano em que estreava "Por um Punhado de Dólares", de Leone, com Clint Eastwood. O título "Cangaço Novo", diferentemente da expressão novo cangaço, desliza para o território da história do cinema, ecoando o movimento brasileiro que chegou ao ápice na década de 1960, ainda que trafegue numa faixa do mercado audiovisual, em escala internacional, carregada de convenções, fórmulas e clichês.
A série também evoca alguma coisa de "Cidade de Deus" (2002), que foi, goste-se disso ou não, um marco no cinema brasileiro. Da mesma forma que aconteceu com o filme de Fernando Meirelles (da mesma produtora O2), "Cangaço Novo" pode provocar rapidamente em alguns a sensação de que se está diante de uma produção fora da curva. Como bem observou prontamente o jornalista e crítico Mauricio Stycer, logo se percebe que o sarrafo subiu.
Além de alguns traços em comum, há um episódio que, involuntariamente, segundo os autores, une as duas produções: da mesma forma que em "Cidade de Deus" o personagem Dadinho revela uma nova personalidade com a famosa frase "Dadinho é o caralho, meu nome é Zé Pequeno, porra", também em "Cangaço Novo" o anti-herói Ubaldo assume nova persona, com sua filiação ao bando e à família nordestina, da qual fora separado ainda garoto, bradando em catarse: "Meu nome é Ubaldo Vaqueiro!" O conflito entre as duas paternidades, o pai assassinado no sertão e o que criou Ubaldo em São Paulo, é uma das linhas de tensão da narrativa.
Pode-se aproximar, ainda, "Cangaço Novo" de "Bacurau" (2019), filme de Kleber Mendonça Filho que acabou em parte sacrificado no seu entendimento por uma polarização rasa entre leituras preconceituosas ou pseudointelectuais de comentaristas de direita e interpretações igualmente simplistas pelo lado da esquerda.
Um dos aspectos discutíveis da série aparece no comentário, de certa forma recorrente, sobre a presença de cenas "muito violentas" —característica tanto de "Cidade de Deus" quanto de "Bacurau", mas também do gênero nordestern adaptado à realidade contemporânea de um país que não cessa de produzir notícias aterradoras sobre homicídios, execuções sumárias, cabeças cortadas em presídios, chacinas variadas e até uma nova e brutal modalidade de crime chamada novo cangaço.
"É o espetáculo do terror. Como os assaltos acontecem à luz do dia e podem durar até uma hora, realmente a violência e o terror são parte do método, que exige força bruta. Se a gente não retratasse esse impacto, a gente ficaria desalinhado com o que acontece. E isso vem também com o gênero de ação, o western e o nordestern. Tem aí um tom acima, que faz parte do gênero, que exagera alguma coisa para se personificar", argumenta Edu.
"É claro que é muito violenta", concorda Mariana. "Afinal, estamos numa série de ação sobre assaltantes de bancos. Se a gente não for violento, a gente se descola muito da realidade. E ainda que seja entretenimento e não um documentário ou um tratado sobre a realidade, a gente se utiliza dela para dramatizar mais as coisas dentro da ficção. Mas a série tem também muito drama, tem muito amor e muitas camadas além da ação e da violência."
Tem também, diga-se, uma trilha musical marcante, que vai de Chico Science a Milton Nascimento e traz "Carcará" na voz de Maria Bethânia, que ganhou fama no espetáculo "Opinião", de 1964, sob a direção de Augusto Boal.
Era a música com que Mariana e Edu mais sonhavam, embora tivessem receio de que não fosse autorizada. Mas foi —e lá está a icônica obra do maranhense João do Vale, com letra do alagoano José Cândido, a reverberar o universo de resistências e violências da cultura popular nordestina e dos protestos contra a ditadura militar. É como "Cangaço Novo" quer ser: pega, mata e come.
Eduardo, 40, e Mariana, 35, conheceram-se em 2008 na faculdade de cinema da Faap, em São Paulo, onde estudaram com bolsas que cobriam 50% das mensalidades. Ele é filho de mãe baiana e pai cearense, de famílias que migraram para o Sudeste; ela nasceu em Tremembé, no interior de São Paulo, e viveu um período em São Luiz do Paraitinga. Em dois meses de faculdade já estavam namorando —e continuam juntos até hoje. Antes de ingressar na Faap, Mariana, inventando maneiras de deixar a vida interiorana, conseguiu estudar um ano de cinema em Moscou.
Em 2013, período em que buscavam ideias para um projeto próprio, os dois assistiram ao filme "O Profeta", do diretor francês Jacques Audiard. O longa tinha sido indicado para representar a França no Oscar de 2010 e recebeu diversos prêmios na Europa. A história e a atuação de Tahar Rahim foram marcantes para o casal, que então participava de um grupo de estudos de roteiros com colegas recém-formados.
Foi Mariana quem teve a faísca: ambientar uma série de ação e crime, como o filme francês, no Nordeste, no contexto da explosão de assaltos do novo cangaço. "Quando a gente juntou um dado, que o Edu tinha visto na imprensa, sobre a ocorrência de mais de 130 assaltos da modalidade só no Ceará, com o Tahar Rahim interpretando um presidiário que tinha que lidar com diferentes pessoas e máfias de uma forma muito inteligente, começamos a desenvolver o que hoje virou o 'Cangaço Novo'", conta ela.
A ideia àquela altura era inscrever o projeto em um edital público da Ancine. Foi o que fizeram, mas o resultado não veio. Sem nada na mão, Edu, que também é bacharel em matemática aplicada e computacional pela USP, ganhava a vida na área de marketing e produtos da operadora Vivo. Sonhando sempre com o roteiro, os dois decidiram vender tudo e tentar a vida em Los Angeles, para onde viajaram, em 2014.
"Eu pedi demissão do emprego, vendemos o carro e fomos para lá. Fizemos um curso de roteiro, mas vimos que não tínhamos condição nenhuma de ficar. Primeiro, porque o dinheiro ia acabar. E depois porque a concorrência era uma coisa absurda. Você entrava num café, eram 15 pessoas com Final Draft [software para escrita de roteiros] aberto, todo mundo escrevendo. Você ia comprar uma bebida, quem estava te servindo era um ator. Você pegava um táxi, quem estava dirigindo era um diretor. É uma coisa louca, Los Angeles", recorda Edu.
De volta ao Brasil, Mariana começou a trabalhar em making of de séries. "Nessa, eu conheci um monte de diretores, entre eles o Fábio Mendonça, da O2, em 2015. E falei: Edu, achei o cara para a gente mostrar o projeto, acho que ele vai gostar."
E de fato gostou. "A ideia sempre foi fazer uma série. Já tínhamos umas 30, 40 páginas, que era o que o edital pedia. Tínhamos o argumento do piloto e as sinopses curtas do que a gente imaginava que seriam as próximas temporadas. Tínhamos também outros textos para justificar e defender o projeto. Quando mostramos, ele não demorou muito para responder: gostei, tem potencial, contem comigo."
Por intermédio de Mendonça, o projeto foi para a O2. "Apresentamos para a Andrea Barata Ribeiro [produtora] e para a assistente dela, que na época era a Marcia Berta. E já na primeira reunião disseram que tentariam vender. A gente já tinha uma apresentação visual superbacana, mas quando você entra na produtora, a coisa sofre alterações conforme vai avançando na tentativa de vender para os players. A série era uma coisa muito grande e cara, era como se fôssemos fazer quase quatro longas-metragens. Era para poucos investidores, e naquela época a Amazon ainda nem estava no Brasil", contam os dois.
A cada etapa, novas sugestões surgiam, algumas muito bem-vindas, outras nem tanto. "Nós fazíamos um esforço de tentar atender tudo o que as pessoas achavam. Precisa ter mais isso, vamos botar mais isso, precisa ter um romance, vamos botar um romance. E entra consultor, sai consultor, entra roteirista, sai roteirista… Você vai entendendo o tamanho do negócio. É um bichão, parece que você está numa daquelas mesas de mixagem de som, com 200 mil botões", compara Edu.
Foi em 2018 que a Amazon abraçou o projeto. Fernando Garrido e Erez Milgrom entraram para o grupo de roteiristas, chegaram as consultorias estrangeiras e a engrenagem começou a rodar. "Foi excelente. Mas tem essa situação dolorosa de você estar lá tentando vender o seu projeto. Você vai cedendo. Mas por mais dolorido que tenha sido, hoje agradecemos muito, inclusive os momentos em que a gente disse: 'Não dá para ceder'", diz Edu.
E o que não deu para ceder? "Teve uma pessoa, por exemplo, que veio falar que os bandidos deveriam ser adolescentes, porque essa bandidagem de 30 anos não ia dar muito certo. Isso não dava para ceder, até porque assaltante de banco já é o PhD do crime. O processo foi tipo carregar água na mão: vai carregando, vai caindo. O que sobrar é o projeto. É isso. Mas sobrou bastante coisa boa", relembra Mariana.
Do roteiro às filmagens, que consumiram meses escaldantes em locações no Rio Grande do Norte e na Paraíba, uma longa novela se passou, com episódios imprevisíveis, como a eclosão da pandemia de Covid-19.
"Estava tudo acontecendo, a gente a todo vapor", relata Edu. "O Aly Muritiba tinha chegado para participar da direção, fez sugestões, estava com uma puta energia, aquele clima de 'vamos filmar, vamos filmar'... e vem a pandemia. Depois de seis, sete anos de projeto, a gente se olhava e falava: 'Meu Deus do céu'. Tudo o que a gente podia fazer pelo projeto, a gente fez. Tem que reescrever, reescreve; tem que fazer, faz; tem que cair esse personagem, cai. Tudo a gente fazia. Mas com a pandemia não tinha o que fazer."
Além do principal, as gravações, as restrições atingiram em cheio etapas prévias da produção, como os incontáveis testes para a escolha de um elenco nordestino. Com limitações para fazer tudo presencialmente, a solução foi partir para o digital. "A gente começou a escrever cenas específicas para testes online que nem estariam na série. Elas foram usadas só para a gente poder ver mais das pessoas, poder fazer esse casting", lembra Mariana.
Com o apoio de produtores de estados do Nordeste, formou-se enfim o elenco, que tinha como ponto central a química entre o personagem Ubaldo e suas duas irmãs —em especial a heroína Dinorah, que ganhou vida com uma atuação espantosa da atriz Alice Carvalho.
"Quando a gente escreveu, tinha muito essa questão: caralho, mano, essa mina precisa ser um arregaço... Quem vai ser essa mina? Na minha cabeça, eu pensava numa atriz ou outra, mas quando ela apareceu... Nossa, ainda bem! Obrigada por ter aceitado esse papel", diz Mariana.
Se a performance do elenco chama a atenção, não são menos impressionantes as complexas cenas de ação, que elevam o gênero nordestern, nesse aspecto, a alturas nunca alcançadas. Foi mais um bem-sucedido encontro dos roteiristas com a realização. O responsável pelas cenas foi o experiente espanhol Jordi Casares, que trabalhou em inúmeros filmes.
"A gente chorou quando viu as coisas dele", diz Edu. "Ele abraçou a equipe, a equipe abraçou ele. Isso foi fundamental. E não era só a qualidade das cenas, mas toda a questão da segurança. A gente fez um trabalho de roteiro, com a ideia de que cena de ação não deveria ser só tiro, carro virando e bomba. Cena de ação tem que ser drama também. Então você vai perceber que nossas cenas têm toda uma progressão dentro delas."
Essa foi apenas uma das exigências que o perfeccionismo do casal apresentou como desafio para o roteiro. Uma outra foi abandonar a ideia de que o fundamental era ter episódios iniciais eletrizantes. "Nós queríamos uma série inteira eletrizante, como Billy Wilder, né? Pega o espectador pelo pescoço, tira do chão e não solta nunca mais. E para isso nós colocamos o dogma de não ter flashback no meio do episódio e abandonamos o paradigma impregnado em todos nós de que o piloto, o primeiro episódio, é que tinha que ser foda. É claro que queríamos um piloto foda, mas o segundo tinha que ser melhor que o piloto, o terceiro melhor que o segundo e assim até o fim."
Além de "O Profeta" e de Billy Wilder, duas outras referências cinematográficas foram citadas por eles ao longo da conversa, John Ford e Sergio Leone —diretores ligados ao universo do cineasta Glauber Rocha.
Ford é uma das fontes de inspiração para "Deus e o Diabo na Terra do Sol", um nordestern político e alegórico dos tempos do velho cangaço no estilo cinema novo. O filme foi lançado em 1964, mesmo ano em que estreava "Por um Punhado de Dólares", de Leone, com Clint Eastwood. O título "Cangaço Novo", diferentemente da expressão novo cangaço, desliza para o território da história do cinema, ecoando o movimento brasileiro que chegou ao ápice na década de 1960, ainda que trafegue numa faixa do mercado audiovisual, em escala internacional, carregada de convenções, fórmulas e clichês.
A série também evoca alguma coisa de "Cidade de Deus" (2002), que foi, goste-se disso ou não, um marco no cinema brasileiro. Da mesma forma que aconteceu com o filme de Fernando Meirelles (da mesma produtora O2), "Cangaço Novo" pode provocar rapidamente em alguns a sensação de que se está diante de uma produção fora da curva. Como bem observou prontamente o jornalista e crítico Mauricio Stycer, logo se percebe que o sarrafo subiu.
Além de alguns traços em comum, há um episódio que, involuntariamente, segundo os autores, une as duas produções: da mesma forma que em "Cidade de Deus" o personagem Dadinho revela uma nova personalidade com a famosa frase "Dadinho é o caralho, meu nome é Zé Pequeno, porra", também em "Cangaço Novo" o anti-herói Ubaldo assume nova persona, com sua filiação ao bando e à família nordestina, da qual fora separado ainda garoto, bradando em catarse: "Meu nome é Ubaldo Vaqueiro!" O conflito entre as duas paternidades, o pai assassinado no sertão e o que criou Ubaldo em São Paulo, é uma das linhas de tensão da narrativa.
Pode-se aproximar, ainda, "Cangaço Novo" de "Bacurau" (2019), filme de Kleber Mendonça Filho que acabou em parte sacrificado no seu entendimento por uma polarização rasa entre leituras preconceituosas ou pseudointelectuais de comentaristas de direita e interpretações igualmente simplistas pelo lado da esquerda.
Um dos aspectos discutíveis da série aparece no comentário, de certa forma recorrente, sobre a presença de cenas "muito violentas" —característica tanto de "Cidade de Deus" quanto de "Bacurau", mas também do gênero nordestern adaptado à realidade contemporânea de um país que não cessa de produzir notícias aterradoras sobre homicídios, execuções sumárias, cabeças cortadas em presídios, chacinas variadas e até uma nova e brutal modalidade de crime chamada novo cangaço.
"É o espetáculo do terror. Como os assaltos acontecem à luz do dia e podem durar até uma hora, realmente a violência e o terror são parte do método, que exige força bruta. Se a gente não retratasse esse impacto, a gente ficaria desalinhado com o que acontece. E isso vem também com o gênero de ação, o western e o nordestern. Tem aí um tom acima, que faz parte do gênero, que exagera alguma coisa para se personificar", argumenta Edu.
"É claro que é muito violenta", concorda Mariana. "Afinal, estamos numa série de ação sobre assaltantes de bancos. Se a gente não for violento, a gente se descola muito da realidade. E ainda que seja entretenimento e não um documentário ou um tratado sobre a realidade, a gente se utiliza dela para dramatizar mais as coisas dentro da ficção. Mas a série tem também muito drama, tem muito amor e muitas camadas além da ação e da violência."
Tem também, diga-se, uma trilha musical marcante, que vai de Chico Science a Milton Nascimento e traz "Carcará" na voz de Maria Bethânia, que ganhou fama no espetáculo "Opinião", de 1964, sob a direção de Augusto Boal.
Era a música com que Mariana e Edu mais sonhavam, embora tivessem receio de que não fosse autorizada. Mas foi —e lá está a icônica obra do maranhense João do Vale, com letra do alagoano José Cândido, a reverberar o universo de resistências e violências da cultura popular nordestina e dos protestos contra a ditadura militar. É como "Cangaço Novo" quer ser: pega, mata e come.
CANGAÇO NOVO
Elenco Allan Souza Lima, Alice Carvalho e Thainá Duarte Produção Amazon Prime Video e O2 Direção Aly Muritiba e Fábio Mendonça Onde assistir Prime Video Criação Eduardo Melo e Mariana Bardan
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