Fernanda Perrin
Folha de S.Paulo
O presidente Lula abriu a Assembleia-Geral das Nações Unidas nesta terça-feira (19) com um discurso de 21 minutos focado em desigualdade e com o retorno da demanda histórica do Itamaraty de uma reforma no Conselho de Segurança, incluindo críticas incisivas à dinâmica atual do sistema internacional.
O petista voltou ao principal palco global após mais de dez anos repetindo temas centrais de suas primeiras participações no fórum --o combate à desigualdade e à fome, a defesa do diálogo para alcançar a paz e o apelo por maior representatividade do Sul Global.
A participação do Brasil neste ano também marca a retomada da orientação internacionalista da diplomacia brasileira após quatro anos de isolamento durante o governo de Jair Bolsonaro (PL). Com indiretas ao adversário político, Lula foi bastante aplaudido ao estabelecer diferenças ante o antecessor.
Presidente Lula abre Assembleia-Geral da ONU - Timothy A. Clary/AFP |
Lula começou prestando homenagem ao diplomata Sérgio Vieira de Mello, morto no Iraque há 20 anos. Também prestou condolências às vítimas do terremoto no Marrocos e das tempestades na Líbia e no Rio Grande do Sul para, em seguida, falar sobre a crise climática e a desigualdade, um dos temas centrais de seu discurso. "Hoje, ela [a crise climática] bate às nossas portas, destrói nossas casas, nossas cidades, nossos países, mata e impõe perdas e sofrimentos a nossos irmãos, sobretudo os mais pobres", disse.
Ele relembrou que, há 20 anos, a fome foi um tema central de seu discurso e que a pertinência do tema não mudou. "O mundo está cada vez mais desigual", afirmou. "É preciso, antes de tudo, vencer a resignação que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural. Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo."
O presidente voltou a apontar que os países mais ricos se desenvolveram com base em um modelo poluente, mas que os emergentes não querem repetir essa fórmula. "Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas."
Mencionando a matriz energética brasileira, a qual chamou de "uma das mais limpas do mundo", Lula disse que o país retomou ações de fiscalização e combate a crimes ambientais. "O mundo inteiro sempre falou da Amazônia, agora é a Amazônia que está falando por si mesma."
O presidente brasileiro fez ainda um apelo pela liberdade de imprensa. Chamando Julian Assange de jornalista, declarou que o fundador do Wikileaks "não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima". "Nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos."
Aplaudido ao repetir que "o Brasil está de volta", o petista disse que estava ali porque a democracia venceu em seu país. "O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, nossa região, o mundo e o multilateralismo."
"Nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais. Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos", afirmou.
Foi um contraponto claro ao período em que a diplomacia brasileira, na gestão Bolsonaro, esteve sob a batuta de Ernesto Araújo, que se orgulhava de ter feito do Brasil um pária no cenário global.
Lula apontou, no entanto, que as principais instâncias de governança global perderam fôlego. "Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, não da solução." Um dos alvos da crítica de Lula foi o FMI (Fundo Monetário Internacional). O presidente apontou que a instituição emprestou no ano passado US$ 160 bilhões a países europeus e apenas US$ 34 bilhões para africanos e chamou de inaceitável a representação desigual do fundo e do Banco Mundial, em que países que contribuem com mais recursos têm maior peso de voto.
Com a fala, o petista reforça a pressão por uma reforma dessas instituições. A bandeira foi abraçada também pelos Estados Unidos, que veem nelas um instrumento para competir com a China —o gigante asiático tem usado financiamento a países em desenvolvimento como forma de obter influência.
Lula enfatizou a emergência de outros espaços multilaterais para além da ONU, pano de fundo de uma conferência esvaziada neste ano em Nova York. "O Brics surgiu na esteira desse imobilismo e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes."
O neoliberalismo foi outro alvo do discurso do petista. Ele atribuiu à precarização do trabalho e ao aumento do desemprego a perda de confiança nas instituições, especialmente entre jovens, em um processo de deterioração econômica e política.
"Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário", afirmou, sob aplausos.
Lula mais uma vez defendeu o diálogo como ferramenta para alcançar a paz. Antes de citar a Guerra da Ucrânia, ele elencou uma série de outros conflitos, como a questão israelo-palestina, a crise humanitária no Haiti e as recentes rupturas institucionais em países africanos como Mali, Níger e Sudão.
"A guerra na Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da carta da ONU. Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz. Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo. Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaços para negociações. Investe-se muito em armamento e pouco em desenvolvimento", afirmou, dando nova roupagem a declarações controversas que já deu a respeito do conflito no Leste Europeu.
Lula ainda voltou a criticar as sanções à Cuba, à semelhança do que já havia feito na cúpula do G77 em Havana.
Em contraste com a delegação brasileira do ano passado, diversas pessoas foram até a bancada brasileira para cumprimentar Lula no intervalo após o discurso do americano Joe Biden, que o sucedeu. O brasileiro tirou fotos e abraçou outros participantes da Assembleia.
Antes de Lula, o secretário-geral da ONU, António Guterres, com quem o presidente se encontrou na manhã desta terça, discursou. O português também defendeu uma reforma do Conselho de Segurança, pauta histórica do Itamaraty.
Lula chegou a Nova York na noite de sábado (16) e deve voltar ao Brasil na quarta (20). A longa estadia contrasta com a de Bolsonaro, que passou menos de 24 horas na cidade no ano passado.
O discurso do petista foi feito em um contexto de crescentes críticas à ONU e de competição com outros fóruns multilaterais, como o recém-ampliado Brics, grupo de países emergentes, e o G20, fórum das maiores economias do mundo.
Sintoma disso, lideranças do primeiro escalão de China, Rússia e Índia não participam do evento, o que colocou o brasileiro na posição de "porta-voz" do chamado Sul Global em um encontro esvaziado. Do lado das potências, os EUA são o único dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança que serão representados no encontro por seu chefe de governo.
Nesse cenário, os dois presidentes estarão nos holofotes durante a semana, assim como o líder ucraniano, Volodimir Zelenski —com quem Lula se reúne na quarta-feira. A conversa com o ucraniano ocorre por volta das 17h (horário de Brasília), no hotel em que o brasileiro está hospedado.
A relação entre os dois é turbulenta. Em maio, houve uma tentativa de conversa durante o encontro do G7, mas que acabou frustrado. O lado brasileiro argumenta que ofereceu opções de horário a Zelenski, que não conseguiu comparecer a nenhuma. Os ucranianos atribuem a culpa a Brasília, que teria demorado a responder o pedido de reunião.
Ele relembrou que, há 20 anos, a fome foi um tema central de seu discurso e que a pertinência do tema não mudou. "O mundo está cada vez mais desigual", afirmou. "É preciso, antes de tudo, vencer a resignação que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural. Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo."
O presidente voltou a apontar que os países mais ricos se desenvolveram com base em um modelo poluente, mas que os emergentes não querem repetir essa fórmula. "Agir contra a mudança do clima implica pensar no amanhã e enfrentar desigualdades históricas."
Mencionando a matriz energética brasileira, a qual chamou de "uma das mais limpas do mundo", Lula disse que o país retomou ações de fiscalização e combate a crimes ambientais. "O mundo inteiro sempre falou da Amazônia, agora é a Amazônia que está falando por si mesma."
O presidente brasileiro fez ainda um apelo pela liberdade de imprensa. Chamando Julian Assange de jornalista, declarou que o fundador do Wikileaks "não pode ser punido por informar a sociedade de maneira transparente e legítima". "Nossa luta é contra a desinformação e os crimes cibernéticos."
Aplaudido ao repetir que "o Brasil está de volta", o petista disse que estava ali porque a democracia venceu em seu país. "O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, nossa região, o mundo e o multilateralismo."
"Nosso país está de volta para dar sua devida contribuição ao enfrentamento dos principais desafios globais. Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos", afirmou.
Foi um contraponto claro ao período em que a diplomacia brasileira, na gestão Bolsonaro, esteve sob a batuta de Ernesto Araújo, que se orgulhava de ter feito do Brasil um pária no cenário global.
Lula apontou, no entanto, que as principais instâncias de governança global perderam fôlego. "Quando as instituições reproduzem as desigualdades, elas fazem parte do problema, não da solução." Um dos alvos da crítica de Lula foi o FMI (Fundo Monetário Internacional). O presidente apontou que a instituição emprestou no ano passado US$ 160 bilhões a países europeus e apenas US$ 34 bilhões para africanos e chamou de inaceitável a representação desigual do fundo e do Banco Mundial, em que países que contribuem com mais recursos têm maior peso de voto.
Com a fala, o petista reforça a pressão por uma reforma dessas instituições. A bandeira foi abraçada também pelos Estados Unidos, que veem nelas um instrumento para competir com a China —o gigante asiático tem usado financiamento a países em desenvolvimento como forma de obter influência.
Lula enfatizou a emergência de outros espaços multilaterais para além da ONU, pano de fundo de uma conferência esvaziada neste ano em Nova York. "O Brics surgiu na esteira desse imobilismo e constitui uma plataforma estratégica para promover a cooperação entre países emergentes."
O neoliberalismo foi outro alvo do discurso do petista. Ele atribuiu à precarização do trabalho e ao aumento do desemprego a perda de confiança nas instituições, especialmente entre jovens, em um processo de deterioração econômica e política.
"Em meio aos seus escombros surgem aventureiros de extrema direita que negam a política e vendem soluções tão fáceis quanto equivocadas. Muitos sucumbiram à tentação de substituir um neoliberalismo falido por um nacionalismo primitivo, conservador e autoritário", afirmou, sob aplausos.
Lula mais uma vez defendeu o diálogo como ferramenta para alcançar a paz. Antes de citar a Guerra da Ucrânia, ele elencou uma série de outros conflitos, como a questão israelo-palestina, a crise humanitária no Haiti e as recentes rupturas institucionais em países africanos como Mali, Níger e Sudão.
"A guerra na Ucrânia escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da carta da ONU. Não subestimamos as dificuldades para alcançar a paz. Mas nenhuma solução será duradoura se não for baseada no diálogo. Tenho reiterado que é preciso trabalhar para criar espaços para negociações. Investe-se muito em armamento e pouco em desenvolvimento", afirmou, dando nova roupagem a declarações controversas que já deu a respeito do conflito no Leste Europeu.
Lula ainda voltou a criticar as sanções à Cuba, à semelhança do que já havia feito na cúpula do G77 em Havana.
Em contraste com a delegação brasileira do ano passado, diversas pessoas foram até a bancada brasileira para cumprimentar Lula no intervalo após o discurso do americano Joe Biden, que o sucedeu. O brasileiro tirou fotos e abraçou outros participantes da Assembleia.
Antes de Lula, o secretário-geral da ONU, António Guterres, com quem o presidente se encontrou na manhã desta terça, discursou. O português também defendeu uma reforma do Conselho de Segurança, pauta histórica do Itamaraty.
Lula chegou a Nova York na noite de sábado (16) e deve voltar ao Brasil na quarta (20). A longa estadia contrasta com a de Bolsonaro, que passou menos de 24 horas na cidade no ano passado.
O discurso do petista foi feito em um contexto de crescentes críticas à ONU e de competição com outros fóruns multilaterais, como o recém-ampliado Brics, grupo de países emergentes, e o G20, fórum das maiores economias do mundo.
Sintoma disso, lideranças do primeiro escalão de China, Rússia e Índia não participam do evento, o que colocou o brasileiro na posição de "porta-voz" do chamado Sul Global em um encontro esvaziado. Do lado das potências, os EUA são o único dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança que serão representados no encontro por seu chefe de governo.
Nesse cenário, os dois presidentes estarão nos holofotes durante a semana, assim como o líder ucraniano, Volodimir Zelenski —com quem Lula se reúne na quarta-feira. A conversa com o ucraniano ocorre por volta das 17h (horário de Brasília), no hotel em que o brasileiro está hospedado.
A relação entre os dois é turbulenta. Em maio, houve uma tentativa de conversa durante o encontro do G7, mas que acabou frustrado. O lado brasileiro argumenta que ofereceu opções de horário a Zelenski, que não conseguiu comparecer a nenhuma. Os ucranianos atribuem a culpa a Brasília, que teria demorado a responder o pedido de reunião.
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