Paulo Nogueira Batista Jr.
Economista, ex-vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (estabelecido pelo Brics em Xangai), ex-diretor-executivo no FMI em Washington e autor de "O Brasil Não Cabe no Quintal de Ninguém" (editora LeYa)
Folha de S.Paulo
Um dos aspectos mais interessantes da cúpula do Brics, que se realizou em Joanesburgo de 21 a 23 de agosto, foi a decisão de dar sequência aos temas da desdolarização e de uma possível associação monetária entre os países do grupo. Os presidentes Vladimir Putin e Luiz Inácio Lula da Silva foram particularmente assertivos em suas declarações sobre esses temas, reiterando manifestações anteriores.
A Índia pareceu mais hesitante, talvez porque os seus conflitos com a China a tornem mais propensa a manter boas relações com os Estados Unidos.
A declaração dos líderes, divulgada ao final do encontro, enfatizou "a importância de encorajar o uso de moedas locais em transações comerciais e financeiras entre o Brics, assim como com seus parceiros comerciais". Os líderes encarregaram os seus "ministros de Finanças e/ou presidentes de Banco Central, como for apropriado, a considerar o uso de moedas locais, instrumentos de pagamentos e plataformas e trazer os resultados dessa discussão para nós até a próxima cúpula". A linguagem foi vaga (reflexo, presumo, das dúvidas da Índia), mas é suficiente para dar sequência à discussão.
A próxima cúpula será na Rússia, que exercerá a presidência do grupo em 2024. Os russos estão na origem da proposta de uma moeda Brics, apresentada por eles, de modo embrionário, em 2022. É de se esperar que eles liderem a consideração mais aprofundada desse tema complexo.
Especialistas russos notaram a curiosa coincidência: as cinco moedas do Brics começam todas com a letra "R" —real, rublo, rupia, renminbi e rand. Propuseram então que uma eventual moeda Brics se chamasse R5. A R5 seria inicialmente uma unidade de conta, tomando a forma de uma cesta das cinco moedas, em que o peso de cada uma delas seria determinado, a grosso modo, pelo peso relativo das cinco economias. (Deixo em aberto, por ora, como se daria a participação dos novos países membros do Brics).
A proposta russa, até onde sei, não vai muito além disso. Falou-se vagamente em "lastrear" a moeda em ouro e/ou outras commodities —algo inviável na prática. Vejamos então, em apertada síntese, como se poderia criar a R5, que seja não apenas unidade de conta, mas cumpra as outras funções monetárias —reserva de valor e meio de pagamento. Para isso, seria indispensável que a nova moeda despertasse confiança, isto é, que fosse emitida de forma ordenada e "lastreada" de alguma maneira viável.
O espaço não permite tratar do assunto senão telegraficamente. Importante ressaltar: 1 - a R5 não precisaria ter existência física, seria apenas uma moeda digital; 2 - não seria necessário, nem recomendável, criar um Banco Central do Brics, pois não há como unificar as políticas monetárias dos cinco países, nem agora nem em futuro previsível; 3 - não se trata, portanto, de criar uma moeda única, que substituiria as respectivas nacionais; e 4 - os bancos centrais continuariam desempenhando todas as funções típicas de autoridade monetária.
Bastaria criar um banco emissor, encarregado de emitir R5, de acordo com regras pré-determinadas. A R5 seria uma moeda virtual para transações internacionais, incialmente entre os bancos centrais.
Aproximar-se-ia, portanto, da proposta de criação do Bancor, elaborada por Keynes em tentativa frustrada de impedir a hegemonia do dólar no pós-Segunda Guerra. Conceitualmente, é semelhante também à proposta apresentada em 2022, por Fernando Haddad e Gabriel Galípolo, de criação de uma moeda SUR para a América do Sul, em artigo publicado nesta Folha ("Criação de moeda sul-americana pode acelerar integração regional", 1º/4/22).
Como seria lastreada a R5? Uma possiblidade —inspirada, por um lado, em reformas monetárias europeias, notadamente na estabilização alemã de 1923, e, por outro, no próprio funcionamento das moedas fiduciárias modernas— seria torná-la livremente conversível em títulos garantidos pelos países do Brics. O banco emissor emitiria também títulos R5, com diferentes prazos e taxas de juros, que seriam a materialização da garantia do Brics para a nova moeda.
Questão complexa, discutida de maneira tão suscinta, corre o risco de passar a ideia de simplificação caricatural. Uma versão mais completa dessas sugestões, que apresentei em seminário realizado em Joanesburgo, logo antes da cúpula, foi publicada pela agência de notícias Guancha, uma das principais da China, mas apenas em chinês. A publicação em inglês e português será feita em breve.
A Índia pareceu mais hesitante, talvez porque os seus conflitos com a China a tornem mais propensa a manter boas relações com os Estados Unidos.
A declaração dos líderes, divulgada ao final do encontro, enfatizou "a importância de encorajar o uso de moedas locais em transações comerciais e financeiras entre o Brics, assim como com seus parceiros comerciais". Os líderes encarregaram os seus "ministros de Finanças e/ou presidentes de Banco Central, como for apropriado, a considerar o uso de moedas locais, instrumentos de pagamentos e plataformas e trazer os resultados dessa discussão para nós até a próxima cúpula". A linguagem foi vaga (reflexo, presumo, das dúvidas da Índia), mas é suficiente para dar sequência à discussão.
A próxima cúpula será na Rússia, que exercerá a presidência do grupo em 2024. Os russos estão na origem da proposta de uma moeda Brics, apresentada por eles, de modo embrionário, em 2022. É de se esperar que eles liderem a consideração mais aprofundada desse tema complexo.
Especialistas russos notaram a curiosa coincidência: as cinco moedas do Brics começam todas com a letra "R" —real, rublo, rupia, renminbi e rand. Propuseram então que uma eventual moeda Brics se chamasse R5. A R5 seria inicialmente uma unidade de conta, tomando a forma de uma cesta das cinco moedas, em que o peso de cada uma delas seria determinado, a grosso modo, pelo peso relativo das cinco economias. (Deixo em aberto, por ora, como se daria a participação dos novos países membros do Brics).
A proposta russa, até onde sei, não vai muito além disso. Falou-se vagamente em "lastrear" a moeda em ouro e/ou outras commodities —algo inviável na prática. Vejamos então, em apertada síntese, como se poderia criar a R5, que seja não apenas unidade de conta, mas cumpra as outras funções monetárias —reserva de valor e meio de pagamento. Para isso, seria indispensável que a nova moeda despertasse confiança, isto é, que fosse emitida de forma ordenada e "lastreada" de alguma maneira viável.
O espaço não permite tratar do assunto senão telegraficamente. Importante ressaltar: 1 - a R5 não precisaria ter existência física, seria apenas uma moeda digital; 2 - não seria necessário, nem recomendável, criar um Banco Central do Brics, pois não há como unificar as políticas monetárias dos cinco países, nem agora nem em futuro previsível; 3 - não se trata, portanto, de criar uma moeda única, que substituiria as respectivas nacionais; e 4 - os bancos centrais continuariam desempenhando todas as funções típicas de autoridade monetária.
Bastaria criar um banco emissor, encarregado de emitir R5, de acordo com regras pré-determinadas. A R5 seria uma moeda virtual para transações internacionais, incialmente entre os bancos centrais.
Aproximar-se-ia, portanto, da proposta de criação do Bancor, elaborada por Keynes em tentativa frustrada de impedir a hegemonia do dólar no pós-Segunda Guerra. Conceitualmente, é semelhante também à proposta apresentada em 2022, por Fernando Haddad e Gabriel Galípolo, de criação de uma moeda SUR para a América do Sul, em artigo publicado nesta Folha ("Criação de moeda sul-americana pode acelerar integração regional", 1º/4/22).
Como seria lastreada a R5? Uma possiblidade —inspirada, por um lado, em reformas monetárias europeias, notadamente na estabilização alemã de 1923, e, por outro, no próprio funcionamento das moedas fiduciárias modernas— seria torná-la livremente conversível em títulos garantidos pelos países do Brics. O banco emissor emitiria também títulos R5, com diferentes prazos e taxas de juros, que seriam a materialização da garantia do Brics para a nova moeda.
Questão complexa, discutida de maneira tão suscinta, corre o risco de passar a ideia de simplificação caricatural. Uma versão mais completa dessas sugestões, que apresentei em seminário realizado em Joanesburgo, logo antes da cúpula, foi publicada pela agência de notícias Guancha, uma das principais da China, mas apenas em chinês. A publicação em inglês e português será feita em breve.
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