A socióloga Stephanie L. Mudge examina como e porquê os partidos de centro-esquerda em todo o mundo engoliram o evangelho neoliberal - apenas para demolir a sua própria base social.
Uma entrevista com
Stephanie L. Mudge
O presidente dos EUA, Bill Clinton, cumprimenta o primeiro-ministro britânico Tony Blair após sua chegada a Belfast, em 3 de setembro de 1998. (Barbara Kinney /Escritório de Fotografia da Casa Branca via Wikimedia Commons) |
Uma entrevista com
Daniel Denvir
Tradução / O mundo em que vivemos hoje se tornou possível graças à neoliberalização de partidos historicamente de esquerda. Por que isso aconteceu é o que a socióloga Stephanie L. Mudge analisa em seu livro monumental Leftism Reinvented: Western Parties from Socialism to Neoliberalism. A obra percorre a longa história do Partido Trabalhista britânico, do Partido Social-Democrata Sueco, do Partido Social-Democrata da Alemanha e do Partido Democrata dos EUA.
No entanto, para entender por que esses partidos se tornaram neoliberalizados, ela primeiro analisa como eles foram fundados — em todos os casos, menos o Partido Democrata — como partidos profundamente socialistas, e como eles fizeram a transição do socialismo para o keynesianismo a meio do século XX. O que ela descobriu pode surpreender você.
Mudge argumenta que a mudança na posição e no papel dos especialistas econômicos dos partidos foi fundamental. E provou ser fundamental novamente com a transição do keynesianismo para o neoliberalismo. Ela escreve que o poder desses especialistas foi desestabilizado por crises econômicas que colocaram subitamente em questão as ortodoxias reinantes. Primeiro, as crises econômicas ligadas ao padrão-ouro do início do século XX, que culminaram na Grande Depressão e na ascensão do fascismo. E segundo, a crise de estagflação impulsionada pelos choques do petróleo, que dominou os anos 1970. Cada uma dessas crises abriu uma batalha interpretativa em que os especialistas estabelecidos e suas ideologias foram destronadas. Primeiro, os marxistas foram substituídos pelos keynesianos. E em seguida, os keynesianos foram substituídos por uma combinação neoliberalizada de especialistas em finanças, nerds da análise política, estrategistas e spin doctors [especialistas em comunicação e em retorcer a informação].
Mudge argumenta que devemos levar muito a sério o fato de que os promotores da Terceira Via, como Bill Clinton, Tony Blair e Gerhard Schröder, nunca se auto-descreveram como neoliberais. Ela escreve que há uma “tendência para apresentar o que deveria ser um quebra-cabeça, nomeadamente, por que as pessoas que se opõem ao neoliberalismo ou que nunca ouviram falar dele podem, no entanto, agir no mundo de formas que estão em conformidade com o pensamento neoliberal como um fato. Os defensores da Terceira Via são neoliberais, mesmo que digam que não são”.
Mudge não está dizendo que deveríamos nos abster de chamar nomes aos defensores da Terceira Via. O que ela argumenta é que somente poderemos entender como o neoliberalismo se tornou tão hegemônico se observarmos como ele passou a abranger os líderes dos partidos de esquerda que, ao contrário de muitos de seus adversários conservadores, nunca abraçaram formalmente o neoliberalismo.
Os partidos de esquerda neoliberalizados se voltaram para as finanças e se afastaram do movimento sindical, cortaram sua conexão com a base e intensificaram a globalização neoliberal, derrubando a participação eleitoral e impulsionando o apoio à extrema-direita. Esse é o mundo em que vivemos hoje, um mundo onde uma nova geração de esquerda descobriu que o neoliberalismo cortou os próprios laços que tornam a política da esquerda inteligível para as pessoas. Reconstruir essas relações exigirá uma organização incrivelmente aprofundada, algo que descobrimos que não podemos reconstruir do zero em um único ciclo eleitoral.
Daniel Denvir entrevistou Stephanie L. Mudge para o podcast the Dig sobre esses argumentos. A entrevista foi editada para melhorar sua concisão e clareza.
DD
Você escreve: "Na medida em que os partidos de esquerda são limites para a plutocracia, também são eixos fundamentais da democracia em geral." Este livro que você escreveu, então, não é apenas a história da neoliberalização e declínio dos partidos de esquerda, mas também a história da ascensão da extrema-direita?
Stephanie L. Mudge
Tradução / O mundo em que vivemos hoje se tornou possível graças à neoliberalização de partidos historicamente de esquerda. Por que isso aconteceu é o que a socióloga Stephanie L. Mudge analisa em seu livro monumental Leftism Reinvented: Western Parties from Socialism to Neoliberalism. A obra percorre a longa história do Partido Trabalhista britânico, do Partido Social-Democrata Sueco, do Partido Social-Democrata da Alemanha e do Partido Democrata dos EUA.
No entanto, para entender por que esses partidos se tornaram neoliberalizados, ela primeiro analisa como eles foram fundados — em todos os casos, menos o Partido Democrata — como partidos profundamente socialistas, e como eles fizeram a transição do socialismo para o keynesianismo a meio do século XX. O que ela descobriu pode surpreender você.
Mudge argumenta que a mudança na posição e no papel dos especialistas econômicos dos partidos foi fundamental. E provou ser fundamental novamente com a transição do keynesianismo para o neoliberalismo. Ela escreve que o poder desses especialistas foi desestabilizado por crises econômicas que colocaram subitamente em questão as ortodoxias reinantes. Primeiro, as crises econômicas ligadas ao padrão-ouro do início do século XX, que culminaram na Grande Depressão e na ascensão do fascismo. E segundo, a crise de estagflação impulsionada pelos choques do petróleo, que dominou os anos 1970. Cada uma dessas crises abriu uma batalha interpretativa em que os especialistas estabelecidos e suas ideologias foram destronadas. Primeiro, os marxistas foram substituídos pelos keynesianos. E em seguida, os keynesianos foram substituídos por uma combinação neoliberalizada de especialistas em finanças, nerds da análise política, estrategistas e spin doctors [especialistas em comunicação e em retorcer a informação].
Mudge argumenta que devemos levar muito a sério o fato de que os promotores da Terceira Via, como Bill Clinton, Tony Blair e Gerhard Schröder, nunca se auto-descreveram como neoliberais. Ela escreve que há uma “tendência para apresentar o que deveria ser um quebra-cabeça, nomeadamente, por que as pessoas que se opõem ao neoliberalismo ou que nunca ouviram falar dele podem, no entanto, agir no mundo de formas que estão em conformidade com o pensamento neoliberal como um fato. Os defensores da Terceira Via são neoliberais, mesmo que digam que não são”.
Mudge não está dizendo que deveríamos nos abster de chamar nomes aos defensores da Terceira Via. O que ela argumenta é que somente poderemos entender como o neoliberalismo se tornou tão hegemônico se observarmos como ele passou a abranger os líderes dos partidos de esquerda que, ao contrário de muitos de seus adversários conservadores, nunca abraçaram formalmente o neoliberalismo.
Os partidos de esquerda neoliberalizados se voltaram para as finanças e se afastaram do movimento sindical, cortaram sua conexão com a base e intensificaram a globalização neoliberal, derrubando a participação eleitoral e impulsionando o apoio à extrema-direita. Esse é o mundo em que vivemos hoje, um mundo onde uma nova geração de esquerda descobriu que o neoliberalismo cortou os próprios laços que tornam a política da esquerda inteligível para as pessoas. Reconstruir essas relações exigirá uma organização incrivelmente aprofundada, algo que descobrimos que não podemos reconstruir do zero em um único ciclo eleitoral.
Daniel Denvir entrevistou Stephanie L. Mudge para o podcast the Dig sobre esses argumentos. A entrevista foi editada para melhorar sua concisão e clareza.
DD
Você escreve: "Na medida em que os partidos de esquerda são limites para a plutocracia, também são eixos fundamentais da democracia em geral." Este livro que você escreveu, então, não é apenas a história da neoliberalização e declínio dos partidos de esquerda, mas também a história da ascensão da extrema-direita?
Stephanie L. Mudge
Então, a resposta simples para a pergunta que você colocou é sim. Eu penso que é um relato da neoliberalização e declínio dos partidos de esquerda e, consequentemente, da ascensão da extrema-direita. E a razão para isso tem a ver com o tipo de papel histórico específico dos partidos da esquerda nos sistemas democráticos como partidos que, pelo menos, afirmam representar pessoas que, de outra forma, não têm voz, não têm poder, não têm recursos. Não falo apenas do seu poder económico — falo também do tipo de tempo e espaço e o que poderíamos chamar de capital cultural, que permite que as pessoas participem de processos democráticos de forma significativa.
Então, os partidos da esquerda ocupam um lugar especial como os partidos que reivindicam ser uma espécie de representantes das pessoas que, de outro modo, não teriam necessariamente voz, ou que teriam maior dificuldade em ter uma voz nos processos democráticos. É diferente com relação aos partidos da direita, especialmente partidos conservadores, que não se baseiam necessariamente no mesmo tipo de reivindicações.
E então, o que isso significa é que, se entendermos a democracia como sendo uma forma substancial de caracterizar um sistema político, então ela não é muito substancial se forem apenas as pessoas que têm mais recursos e os mais ricos aqueles que realmente têm representação substancial. Se a democracia exige que as populações desempoderadas e com menos recursos e, de outra forma, marginalizadas ou excluídas também tenham uma representação substancial, então simplesmente temos que ter partidos de esquerda ou algo parecido para termos algum tipo de sistema democrático substancial.
Portanto, a história da neoliberalização de partidos da esquerda, em resumo, é a história de como os partidos da esquerda passaram a representar o mercado como seu eleitorado central, em oposição a seus eleitorados históricos, incluindo o movimento sindical, mas também os trabalhadores em geral e as pessoas menos privilegiadas e menos poderosas.
E então, se tivermos partidos de esquerda que, de certa forma, ocupam o espaço, e sistemas democráticos para a representação de pessoas que, de outro modo, não estariam representadas, se essas entidades começarem a falar primeiramente pelos interesses dos mercados, entendidos como esse tipo de coisa não territorial que opera por aí, em vez de falar pelos interesses dos eleitorados, então o que temos é esse grande vazio na representação democrática.
Essa é a razão pela qual vemos a ascensão de partidos da extrema-direita, originados no mesmo período da ascensão da Terceira Via na centro-esquerda. Portanto, nas décadas de 1980 e 1990, isso está diretamente ligado a esse tipo de vazio criado pela virada dos partidos de esquerda para a representação do mercado em vez dos eleitorados.
DD
Você chama os democratas estadunidenses, o Partido Social-Democrata Sueco (SAP), o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e o Partido Trabalhista do Reino Unido de “partidos de esquerda neoliberalizados”. Nesse sentido, o que torna esse partidos de esquerda, já que são, de fato, neoliberalizados, e uma vez que os defensores da Terceira Via definem explicitamente sua política como “além da esquerda e da direita”? O que ganhamos analiticamente ao descrevê-los como partidos de esquerda neoliberalizados, ao invés de meramente partidos que, no passado, foram de esquerda e que se tornaram de direita ou de centro?
Então, minha definição de esquerda e direita tem a ver com sua localização no cenário eleitoral e em seus respectivos países, independente das posições que ocupem. A forma como eu penso sobre isso é que, dentro de qualquer contexto nacional específico ao longo do século XX, independente do tipo de posições políticas específicas que os partidos da esquerda adotaram, eles continuaram sendo entendidos como os principais partidos de esquerda entre os grandes partidos no sistema eleitoral e no discurso público desses países.
E então, resumindo, se definirmos os partidos da esquerda ou da centro-esquerda em termos do tipo de compreensão padronizada de um partido europeu da centro-esquerda ou social-democrata (ou seja, existe um partido de um lado, e depois existe a organização sindical de outro, e existe uma espécie de organizações geminadas que trabalham juntas no sistema eleitoral), então, por essa definição, é verdade que os Estados Unidos nunca tiveram um partido socialista ou um partido de esquerda dominante.
Mas se o definirmos em termos de um partido em que existe, por um lado, um tipo de organização partidária que coopera com (ou pelo menos afirma representar) os trabalhadores ou o movimento sindical e, por outro lado, realiza investimentos na produção de conhecimento, então temos uma infraestrutura para a produção intelectual combinada com a representação dos trabalhadores e das organizações que representam os trabalhadores. Isso meio que se organiza na forma de um partido de esquerda.
Então, o Partido Democrata se torna de esquerda nas décadas de 1930 e 1940, não porque tenha um braço cultural que esteja investido na produção de conhecimento socialista, mas porque tem um braço cultural ligado às ciências sociais, entre outras coisas, especialmente a profunda conexão que se desenvolve entre a facção liberal do New Deal do Partido Democrata e a economia keynesiana. [Nota de tradução: as referências a “liberal” ao longo da entrevista devem ser lidas no sentido anglo-saxônico do liberalismo político mais progressista e não no sentido do liberalismo econômico de direita].
DD
Até que ponto a falta de um partido socialista nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX está relacionada com a ausência de um sistema partidário normal nos Estados Unidos mais genericamente?
Isso se baseia no tipo específico de história do desenvolvimento político da Europa Ocidental, em que partidos e instituições democráticas desenvolvem uma oposição ao poder de um estado monárquico ou autocrático, ao invés dos Estados Unidos, que, é claro, tinham em sua fundação o objetivo de ser um sistema político democrático.
Nesses dois contextos, o que se alcança na Europa e no sistema parlamentar é esse tipo de organizações partidárias que são organizações burocráticas, que possuem uma existência organizacional e partidos baseados na militância. Eles têm uma hierarquia definida. Têm comissões executivas ou cargos de alto nível.
E esses cargos existem, quer os partidos estejam ou não no governo. É claro que esse não é o caso para os partidos políticos estadunidenses, que eram partidos de massas desde o início, embora seja necessário lembrar que o direito de voto era muito mais restrito no século XIX e início do século XX do que é agora.
Mas, em qualquer caso, eram partidos de massas desde o início, mas não eram organizações burocráticas e centralizadas operando em um sistema parlamentar. Eles não tinham estrutura burocrática definida. São uma espécie de redes soltas de facções quando comparados com seus congêneres europeus, muito mais ancorados a nível local, estadual e regional, em vez de serem organizações nacionais.
Então, assim sendo, você está certo — as organizações partidárias estadunidenses não tinham capacidade organizativa para investir na produção de conhecimento, ou mesmo na produção do que chamo de especialistas do partido [party experts], porque não eram essas organizações burocráticas baseadas em militância e que tinham essa capacidade organizativa para, por exemplo, estabelecer seus próprios jornais e revistas teóricas ou suas próprias escolas partidárias, que foi o que o SPD fez no início do século XX.
Então, os partidos da esquerda ocupam um lugar especial como os partidos que reivindicam ser uma espécie de representantes das pessoas que, de outro modo, não teriam necessariamente voz, ou que teriam maior dificuldade em ter uma voz nos processos democráticos. É diferente com relação aos partidos da direita, especialmente partidos conservadores, que não se baseiam necessariamente no mesmo tipo de reivindicações.
E então, o que isso significa é que, se entendermos a democracia como sendo uma forma substancial de caracterizar um sistema político, então ela não é muito substancial se forem apenas as pessoas que têm mais recursos e os mais ricos aqueles que realmente têm representação substancial. Se a democracia exige que as populações desempoderadas e com menos recursos e, de outra forma, marginalizadas ou excluídas também tenham uma representação substancial, então simplesmente temos que ter partidos de esquerda ou algo parecido para termos algum tipo de sistema democrático substancial.
Portanto, a história da neoliberalização de partidos da esquerda, em resumo, é a história de como os partidos da esquerda passaram a representar o mercado como seu eleitorado central, em oposição a seus eleitorados históricos, incluindo o movimento sindical, mas também os trabalhadores em geral e as pessoas menos privilegiadas e menos poderosas.
E então, se tivermos partidos de esquerda que, de certa forma, ocupam o espaço, e sistemas democráticos para a representação de pessoas que, de outro modo, não estariam representadas, se essas entidades começarem a falar primeiramente pelos interesses dos mercados, entendidos como esse tipo de coisa não territorial que opera por aí, em vez de falar pelos interesses dos eleitorados, então o que temos é esse grande vazio na representação democrática.
Essa é a razão pela qual vemos a ascensão de partidos da extrema-direita, originados no mesmo período da ascensão da Terceira Via na centro-esquerda. Portanto, nas décadas de 1980 e 1990, isso está diretamente ligado a esse tipo de vazio criado pela virada dos partidos de esquerda para a representação do mercado em vez dos eleitorados.
DD
Você chama os democratas estadunidenses, o Partido Social-Democrata Sueco (SAP), o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e o Partido Trabalhista do Reino Unido de “partidos de esquerda neoliberalizados”. Nesse sentido, o que torna esse partidos de esquerda, já que são, de fato, neoliberalizados, e uma vez que os defensores da Terceira Via definem explicitamente sua política como “além da esquerda e da direita”? O que ganhamos analiticamente ao descrevê-los como partidos de esquerda neoliberalizados, ao invés de meramente partidos que, no passado, foram de esquerda e que se tornaram de direita ou de centro?
Stephanie L. Mudge
Então, minha definição de esquerda e direita tem a ver com sua localização no cenário eleitoral e em seus respectivos países, independente das posições que ocupem. A forma como eu penso sobre isso é que, dentro de qualquer contexto nacional específico ao longo do século XX, independente do tipo de posições políticas específicas que os partidos da esquerda adotaram, eles continuaram sendo entendidos como os principais partidos de esquerda entre os grandes partidos no sistema eleitoral e no discurso público desses países.
E então, resumindo, se definirmos os partidos da esquerda ou da centro-esquerda em termos do tipo de compreensão padronizada de um partido europeu da centro-esquerda ou social-democrata (ou seja, existe um partido de um lado, e depois existe a organização sindical de outro, e existe uma espécie de organizações geminadas que trabalham juntas no sistema eleitoral), então, por essa definição, é verdade que os Estados Unidos nunca tiveram um partido socialista ou um partido de esquerda dominante.
Mas se o definirmos em termos de um partido em que existe, por um lado, um tipo de organização partidária que coopera com (ou pelo menos afirma representar) os trabalhadores ou o movimento sindical e, por outro lado, realiza investimentos na produção de conhecimento, então temos uma infraestrutura para a produção intelectual combinada com a representação dos trabalhadores e das organizações que representam os trabalhadores. Isso meio que se organiza na forma de um partido de esquerda.
Então, o Partido Democrata se torna de esquerda nas décadas de 1930 e 1940, não porque tenha um braço cultural que esteja investido na produção de conhecimento socialista, mas porque tem um braço cultural ligado às ciências sociais, entre outras coisas, especialmente a profunda conexão que se desenvolve entre a facção liberal do New Deal do Partido Democrata e a economia keynesiana. [Nota de tradução: as referências a “liberal” ao longo da entrevista devem ser lidas no sentido anglo-saxônico do liberalismo político mais progressista e não no sentido do liberalismo econômico de direita].
DD
Até que ponto a falta de um partido socialista nos Estados Unidos no final do século XIX e início do século XX está relacionada com a ausência de um sistema partidário normal nos Estados Unidos mais genericamente?
Stephanie L. Mudge
Isso se baseia no tipo específico de história do desenvolvimento político da Europa Ocidental, em que partidos e instituições democráticas desenvolvem uma oposição ao poder de um estado monárquico ou autocrático, ao invés dos Estados Unidos, que, é claro, tinham em sua fundação o objetivo de ser um sistema político democrático.
Nesses dois contextos, o que se alcança na Europa e no sistema parlamentar é esse tipo de organizações partidárias que são organizações burocráticas, que possuem uma existência organizacional e partidos baseados na militância. Eles têm uma hierarquia definida. Têm comissões executivas ou cargos de alto nível.
E esses cargos existem, quer os partidos estejam ou não no governo. É claro que esse não é o caso para os partidos políticos estadunidenses, que eram partidos de massas desde o início, embora seja necessário lembrar que o direito de voto era muito mais restrito no século XIX e início do século XX do que é agora.
Mas, em qualquer caso, eram partidos de massas desde o início, mas não eram organizações burocráticas e centralizadas operando em um sistema parlamentar. Eles não tinham estrutura burocrática definida. São uma espécie de redes soltas de facções quando comparados com seus congêneres europeus, muito mais ancorados a nível local, estadual e regional, em vez de serem organizações nacionais.
Então, assim sendo, você está certo — as organizações partidárias estadunidenses não tinham capacidade organizativa para investir na produção de conhecimento, ou mesmo na produção do que chamo de especialistas do partido [party experts], porque não eram essas organizações burocráticas baseadas em militância e que tinham essa capacidade organizativa para, por exemplo, estabelecer seus próprios jornais e revistas teóricas ou suas próprias escolas partidárias, que foi o que o SPD fez no início do século XX.
Portanto, são tipos de animais completamente diferentes em termos de organização. E penso que essa é uma parte importante da história da ausência de um partido de esquerda ou de um partido socialista nos Estados Unidos, que, mais uma vez, sempre teve como ponto de referência o modelo europeu, que tem uma base organizacional que simplesmente nunca existiu no sistema partidário estadunidense.
Teóricos do partido e cultura socialista
DD
Você argumenta que os partidos da esquerda foram reinventados por duas vezes, primeiro da esquerda socialista para a esquerda economicista, e depois da esquerda economicista para a esquerda neoliberalizada, e que o fundamental nessas transições foram mudanças em quem eram os especialistas do partido e o que os especialistas do partido faziam. Por que é que um número tão pequeno de especialistas era tão importante, e o que faz com que os partidos desempenhem um papel tão decisivo na “passagem da ideologia para a hegemonia”?
Meu interesse é menos nas pessoas em si mesmas e mais sobre o que suas trajetórias para posições de influência dentro das redes partidárias podem nos dizer sobre as forças institucionais mais amplas que geraram essas reinvenções.
Então, por exemplo, no caso da esquerda socialista, que é o meu ponto de partida no caso europeu, as condições institucionais ou históricas (que são a base a partir da qual os partidos social-democratas e os partidos trabalhistas emergem) são um mundo no qual existem níveis educacionais relativamente baixos. Por isso, não são muitas pessoas que possuem formação universitária de elite. As ciências sociais existem, especialmente a ciência econômica, mas não são ainda as disciplinas totalmente autônomas em que vão se tornar a meio do século XX. E então, naquela primeira transição que você mencionou, da esquerda socialista para a esquerda economicista, o que eu enfatizo é que o ponto de partida para a esquerda socialista foi essa figura específica que eu chamo de teórico do partido.
E o que eu quero dizer com isso é que, em cada um dos casos que observo na Europa Ocidental, existe um tipo de figura, especificamente me concentro em ministros da Fazenda — ou no caso britânico, chanceleres do Tesouro — e o que descobrimos é que esse pessoal não tem formação específica em economia. Muitos deles possuem certamente mais educação, e mais educação de elite do que ocorre na população em geral, mas muitos deles nem têm necessariamente formação superior.
Esse é o caso, por exemplo, de Philip Snowden no Reino Unido. Mas eles alcançam estatuto como intelectuais e como intelectuais do partido através do jornalismo, e especialmente através de atividades jornalísticas que estão relacionadas de algum modo aos partidos. Portanto, as próprias figuras são importantes em si mesmas, porque são figuras muito proeminentes e poderosas no contexto de seus respectivos partidos.
Mas o que é interessante para mim é: quais são as condições de possibilidade dessas figuras? Quais são as instituições e os arranjos institucionais que as tornam possíveis, que criam os caminhos institucionais para as posições que elas acabam tendo nos partidos social-democratas por um lado, mas também no desenvolvimento de meios de comunicação socialistas, muitos dos quais ou estavam dependentes dos recursos partidários ou eram realmente atividades internas, operando através do partido e financiadas através do partido?
E então aquilo que me interessa, ao observar a figura do especialista do partido, é acompanhar as transformações institucionais que promoveram essas reinvenções. Por isso, no caso do especialista do partido, uma das coisas que chama atenção sobre eles é que existem pessoas que têm o título “economista” no seu tempo, e tendem a ser liberais — ou seja, estão ligados a partidos liberais. E então existe, na verdade, uma oposição nesse tempo entre organizações partidárias socialistas ou de esquerda e a ciência econômica acadêmica. Com a transição para a esquerda economicista, aquilo que está subjacente a isso — a transformação institucional que está subjacente a isso — é uma relação recém-descoberta que caracterizo como uma interdependência entre a ciência econômica acadêmica e a esquerda e os partidos da centro-esquerda. E, nesse momento, isso é verdade também sobre o Partido Democrata quando chegamos nas décadas de 1940 e 1950. Isso simplesmente não existia nos anos 1920 ou antes. E por isso a figura do especialista é um vetor ou algo do tipo, certo? Isso me oferece um modo de observar que eu caracterizo como um tipo de análise de dentro para fora. Seguindo sua trajetória e colocando-os em contexto, conseguimos descobrir o tipo de processos institucionais que promoveram essas reinvenções.
DD
Voltando ao início da história, com esses teóricos socialistas que tiveram esse papel decisivo nos partidos da esquerda socialista, você escreve que eles estavam muito mais voltados para os partidos socialistas do que para os sindicatos, que constituíam a base de massas daqueles partidos. E então, de fato, foi através dos partidos socialistas, antes de tudo, que esses intelectuais tiveram um papel tão decisivo para tornar os sindicatos europeus em sindicatos socialistas. Você argumenta que a ideia de que os partidos da esquerda surgiram do movimento operário é um equívoco comum: “Marx e Engels são, em parte, culpados. Eles promovem a noção de que os partidos, socialistas ou não, eram as extensões ideológicas das classes. Ignorando as condições de sua própria existência, Marx via o socialismo como uma expressão científica e refinada da experiência da classe trabalhadora. Isto é, um modo de pensar embasado na classe, mas articulado por intelectuais.”
O que foi que Marx não entendeu, e como é que ele não entendeu, minimizando o papel de intelectuais como ele próprio, o mesmo tipo de papel óbvio desempenhado por ele, pelos intelectuais que lideraram o SPD ou pelos fabianos [membros da Fabian Society] que forjaram o Partido Trabalhista britânico? E por que o jornalismo era essa profissão de fato para tantos líderes socialistas, desde Marx a Kautsky e a Lenin?
SLM
Primeiro, eu quero dizer que o meu argumento não é que a história da formação de partidos social-democratas e trabalhistas não seja uma história do desenvolvimento do movimento operário. Meu argumento não é que isso seja incorreto de forma alguma. Eu acho que isso seria, na verdade, um tipo de argumento bobo para qualquer pessoa que conheça a história desses partidos. Meu argumento é apenas que isso não é a história toda, entende? Quando lemos sobre a história dos movimentos social-democratas e partidos social-democratas, é comum realçar a relação com o movimento operário por razões históricas óbvias.
E o movimento operário é tratado como um conjunto de organizações e pessoas fazendo coisas e produzindo coisas. E depois, quando existe um debate sobre socialismo, ele é tratado como uma ideologia — algo como um conjunto de ideias, um modo de pensar. Então, eu quero, primeiramente, apenas meio que corrigir o que foi mencionado sobre o meu argumento, que não é que os sindicatos não fossem importantes, é só que o socialismo não era apenas um modo de pensar. Era também um conjunto de organizações e pessoas fazendo coisas.
E então, também quero historicizar isso um pouco e ressaltar que não poderia ser dado por adquirido, por essa razão, que o socialismo se tornaria o tipo de base intelectual — ou, como Mark o entendia, científica — do movimento operário. Essa aliança teve que ser forjada e houve muita disputa nesse processo.
Não havia nada na experiência de ser um trabalhador assalariado que o levasse necessariamente à análise que Marx apresenta em Das Kapital. É que, sabe, essas eram duas coisas diferentes. Então, o próprio Marx e intelectuais como ele tiveram que persuadir os movimentos operários de que sua particular linha de análise era efetivamente uma análise que representava os interesses deles ou que era capaz de falar por eles, e isso exigiu trabalho e disputa e teve todo tipo de rachas e oposições sobre se os partidos deveriam ser dirigidos por trabalhadores ou se os partidos deveriam ser dirigidos por intelectuais.
Esse é um tipo de tensão muito antigo. Então, se quisermos olhar para isso da perspectiva de Marx, é claro que ele vai argumentar que sua perspectiva é uma expressão da experiência da classe trabalhadora.
DD
Marx era um epistemólogo com um ponto de vista inconsistente, mas não somos todos?
SLM
Certo, exatamente. Somos. Todos nós meio que tendemos a encontrar formas de intelectualizar nossas posições de um modo que legitime essa posições. E não acho que Marx seja uma excepção a isso. Então, eu penso que minimizar isso [o papel dos intelectuais] pode ser entendido como um tipo de movimento tático, em outras palavras, dado o contexto em que ele estava — no esforço para constituir esses partidos que unicamente existiam na sua imaginação no tempo em que ele escreveu o Manifesto Comunista.
Então essa é minha resposta para a pergunta sobre por que ele menorizou isso. Sobre a pergunta do jornalismo, é uma das muitas coisas no livro sobre a qual eu não estava planejando escrever. Simplesmente, ficou evidente que esse era o caso — que o jornalismo realmente era a base organizacional do braço intelectual socialista ou do braço cultural dos partidos social-democratas no seu período de formação, das décadas de 1860 a 1920.
Então, a pergunta do porquê o jornalismo: acho que há algumas respostas diferentes para isso. Uma delas retoma o que eu estava dizendo antes sobre uma oposição entre a produção intelectual socialista de pessoas como Marx e a academia. Então, como eu disse antes, as ciências sociais em desenvolvimento estão principalmente aliadas — se é que estavam aliadas a partidos — a partidos liberais. Então, parte do que está ocorrendo eu acho que talvez até seja algo semelhante aos tempos recentes: você tem na Alemanha, por exemplo, um monte de crianças da classe média acedendo ao ensino superior, nada como na dimensão atual, mas estava crescendo nessa época. E daí tem todo esse tipo de intelectuais jovens, altamente educados e radicais, como Marx, que não têm lugar na academia, cujas posições são, na verdade, meio que opostas à academia, que ainda precisam ganhar a vida.
Então, você tem o desenvolvimento dessa imprensa radical, eu acho, em parte porque tem esses novos quadros de intelectuais radicais que são politicamente engajados, que, tal como Marx, são formados em filosofia, entre outras coisas, e que não têm espaço na academia. E a outra coisa que provavelmente é parte importante dessa história é o antissemitismo.
Também existe o papel importante da repressão política. Então, por exemplo, no caso alemão existiam as leis anti-socialistas, eu penso que desde 1878 até 1890, que foram emitidas pelo governo prussiano, e parte do que o governo prussiano fez, como parte explicita desse esforço, foi tentar demolir o aparato de produção intelectual que o Partido Social-Democrata havia desenvolvido.
Então, eles entraram e levaram todas as máquinas de impressão do partido e outras coisas para garantir que não pudesse continuar em suas atividades educativas e culturais. E daí o que acontece na sequência dessa repressão é um crescente radicalismo, e temos essas redes de exilados internacionais empurrados para a clandestinidade e algum patrocínio de vários doadores ricos.
E depois eles estabeleceram coisas como novos jornais e revistas teóricas socialistas que são muito mais explicitamente marxistas. E é realmente nesse contexto que o Programa de Erfurt do SPD — o primeiro programa partidário explicitamente marxista, de uma forma que Marx aprovava — é elaborado.
Sabe, a outra coisa é que eu penso que agora tendemos a olhar o passado nos termos do presente. Quando falamos em ciência econômica hoje, pensamos em um certo conjunto de disciplinas acadêmicas estabelecidas e tendemos a meio que alargar essa compreensão daquilo que a ciência econômica era nessa época. Mas esse não é, na verdade, o caso. Nas décadas de 1910 e 1920, a economia e as ciências sociais não eram profissões autônomas realmente bem desenvolvidas do jeito são agora. As ciências sociais existiam, mas em geral não eram tão bem desenvolvidas e não eram tão influentes na política como foram em décadas posteriores.
DD
Outra contextualização que eu achei realmente interessante é que, enquanto os liberais eram obviamente rivais dos socialistas, os intelectuais socialistas dessa época estavam travando sua luta pelo apoio da classe trabalhadora e dos sindicatos em um mundo de “clubes, sociedades de debates e jornalismo, muitas vezes semeadas pelas elites e associações liberais, que depois serviam como locais da luta representativa entre socialistas e liberais”.
SLM
Sim, isso também emerge como uma dessas coisas que provavelmente não seriam uma descoberta para historiadores do socialismo, mas que foi uma descoberta para mim enquanto eu estava elaborando o livro. Quando olhamos, por exemplo, para o desenvolvimento original do Partido Social-Democrata da Alemanha ou do Partido Social-Democrata Sueco, o que encontramos é que eles estão indo para essas organizações estabelecidas por partidos liberais e ativistas liberais — e liberal aqui não quer dizer liberal no sentido do New Deal estadunidense, mas liberal nesse tipo de sentido europeu clássico de defesa da expansão dos direitos de voto democráticos.
Antes do surgimento dos partidos social-democratas, os liberais estavam envolvidos no mesmo tipo de esforços de socialização em que figuras como Marx e seus compatriotas também se envolveram, que era tentar educar a população trabalhadora para pensar de um modo liberal. E, por isso, uma das coisas que se desenvolveu a partir daí foi a criação de todos os tipos de associações e sociedades educativas e clubes de leitura e coisas desse tipo, que deveriam ser locais de discussão nos quais políticos e ativistas liberais poderiam se engajar e tentar educar trabalhadoras e trabalhadores que, de outra forma, não teriam muita educação.
DD
Isso é provocado pela preocupação da elite liberal sobre o que era considerado como a questão social da época: esses novos dilemas colocados pela ascensão do capitalismo industrial.
SLM
Exatamente. Então, existe muita preocupação sobre as consequências sociais daqueles desenvolvimentos, e a solução liberal era a educação, sabe: “Temos que educar os trabalhadores para que eles possam navegar nesse novo mundo e melhorar sua situação e para que eles também possam se tornar participantes significativos do processo político”.
DD
Soa familiar.
SLM
Sim, exatamente. E então eles criam essas organizações. E daí convidavam alguém como August Bebel para vir dar uma palestra e então eles chegavam e falavam: “Na verdade, toda essa coisa do liberalismo é uma mentira. De fato, é o socialismo, ou especificamente o socialismo marxista, que oferece para vocês uma melhor forma de pensar sobre o mundo e de entender a experiência de vocês”. Existe quase uma invasão a algumas dessas organizações criadas por partidos liberais. E então, no Reino Unido, uma das expressões que também podemos ver desse processo é o declínio do Partido Liberal e a ascensão do Partido Trabalhista em seu lugar.
DD
Foi por causa do importante papel desempenhado por esses intelectuais boêmios e cosmopolitas que partidos como o SPD enfatizaram tanto o intelectualismo e a cultura? Você escreve que eles criaram “um ambiente total para seus membros, toda uma subcultura socialista”. É realmente notável, porque eu acho que o intelectualismo nunca mais voltou a ser tão difundido nos partidos da esquerda europeia.
SLM
Sim, isso é algo que simplesmente não para de me fascinar. A forma como penso sobre isso está meio que fundamentada em um certo entendimento de que os partidos políticos se formam por inúmeras razões, mas uma delas é disputar o poder político. E então, se tivermos presente que os partidos social-democratas na Europa se formam antes que isso fosse possível, ou que começaram se formando antes que houvesse uma extensão suficiente dos direitos de voto de tal modo que fosse possível para eles fazer isso, eles estavam limitados no que era possível em termos de disputa pelo poder e de disputa por cargos. E então, em vez disso, aquilo em que eles investiram foi cultivar eleitores socialistas, certo? Cultivar uma cultura socialista. E também devemos nos lembrar que isso é antes da educação de massas generalizada. É antes do desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social moderno. E por isso, uma das formas de cultivar uma subcultura, ou de socializar as pessoas, é providenciar instituições educacionais de fato e providenciar instituições de bem-estar social de fato. E era uma estratégia muito explícita. Dessa forma, quando os sistemas eleitorais lhes possibilitaram disputar cargos políticos, eles já possuíam um movimento de massas socializado que pensava em quadros de referência socialistas.
Se pensarmos sobre isso, é uma conquista incrível. Se você for na Europa ou se for em algumas das bibliotecas de partidos social-democratas e socialistas, o que você vê é realmente um estilo de vida. É todo um modo de viver. Havia uma ideia de como criar uma família de um modo socialista e havia calendários para que se pudesse pensar no tempo e na passagem do tempo em um quadro de referência socialista. Então, estava muito além de meras questões sobre essa ou aquela política econômica, horas de trabalho ou o que quer que fosse. Era um estilo de vida. Era uma forma de pensar e foi explicitamente cultivada para ser assim. E eu realmente penso que isso foi fundamental para a durabilidade da política social-democrata durante todo o século XX.
A ortodoxia do padrão-ouro e a transição keynesiana
DD
O ponto em que a história se torna realmente surpreendente — e, como alguém de esquerda, um pouco triste — para mim é quando você escreve que a queda dos teóricos dos partidos socialistas resultou de sua estranha dedicação à economia ortodoxa clássica e de sua firme oposição aos gastos deficitários. E isso vira de cabeça para baixo nosso entendimento contemporâneo sobre esquerda e direita, porque os marxistas nessa época eram conservadores fiscais obcecados por orçamentos equilibrados que se opunham aos apelos heterodoxos para gastos deficitários que chegavam de dentro e de fora desses partidos. Qual era a ortodoxia econômica no fim do século XIX e início do século XX? E por que eram logo os marxistas que estavam tão ligados a isso, mesmo quando isso criava uma crise massiva para os partidos da esquerda, enquanto as condições econômicas se tornavam impossíveis?
SLM
Então, as ortodoxias clássicas na virada do século XX eram muito semelhantes ao que poderíamos chamar hoje de conservadorismo fiscal. Se as coisas começarem a entrar em crise, então queremos consolidar nossas finanças. Então, cortamos os gastos ou aumentos impostos, ou alguma combinação dessas duas coisas. É o que hoje poderíamos chamar de austeridade. É um tipo de sistema econômico inteiramente diferente, porque o sistema do padrão-ouro é diferente do que temos agora.
Mas a lógica que sustentava a ordem do padrão-ouro era muito semelhante ao que hoje entenderíamos como conservadorismo fiscal, um tipo de política de austeridade no contexto de uma crise ou recessão. E é realmente fascinante que, quando olhamos para figuras como Rudolf Hilferding, que era amplamente reconhecido como um intelectual ou economista marxista de primeira linha, quando eles são confrontados com as crises do fim dos anos 1920 e dos anos 1930, eles voltam às mesmas ortodoxias fiscais que reconhecemos agora.
Penso que tem muita coisa acontecendo aí. Uma delas é que, nessa época, os partidos dos quais eles fazem parte já são partidos de governo. E romper com as ortodoxias do padrão-ouro potencialmente também significava romper com o próprio padrão-ouro, o que estava simplesmente fora dos limites do senso comum.
Era extremamente radical. Era como olhar para um penhasco e não saber o que estava do outro lado; não se sabia realmente o que estava lá. E então se você é um partido de governo que está realmente no poder, em vez de um partido de agitação e socialização, você não quer ser a pessoa que afunda o barco.
Então, é impressionante que, no fim dos anos 1920 e início dos anos 1930, Hilferding (um teórico marxista na Alemanha), Fredrik Thorsson na Suécia (que não é um intelectual marxista mas é certamente um intelectual social-democrata e ministro sueco da Fazenda) e Philip Snowden no Reino Unido sejam todos conservadores fiscais.
E portanto, eu acho que precisamos relacionar isso com suas posições de poder, não mais como agitadores socialistas, mas como figuras efetivamente responsáveis pelas questões financeiras e econômicas no governo. Ninguém rompe com a ortodoxia até o colapso do padrão-ouro. E no campo dos partidos da centro-esquerda e dos governos social-democratas, o primeiro partido que rompe com essas ortodoxias, dos casos que eu analiso, é o Partido Social-Democrata Sueco, e a explicação para isso é o que alguns sociólogos poderiam chamar chamar de abertura de uma cadeia de vagas [vacancy chain]. Basicamente, os líderes do partido — tanto a figura principal do partido, Thorsson (que é o ministro da Fazenda por padrão), como o líder do partido, Hjalmar Branting —morreram em 1925.
Isso cria um conjunto de vagas que a geração seguinte ocupa. E uma das figuras que ocupam essas vagas, para o cargo de ministro da Fazenda, é Ernst Wigforss, que não tem formação como economista, mas que tem formação universitária e se move em círculos com formação universitária, incluindo economistas. Então, ele é meio versado no que então se chama “a nova ciência econômica” [new economics], que é uma linha orgânica de pensamento econômico própria da Suécia e que se parece muito com o keynesianismo, mas Keynes vem mais tarde. Isso se torna uma nova ortodoxia, em que aquilo que a gente faz em uma recessão não é subir impostos ou cortar gastos ou ambos, mas sim gastar, pedir emprestado para gastar e, então, quando você impulsiona o crescimento econômico ou recupera o crescimento econômico, a gente colhe os benefícios.
DD
Caso isso não esteja claro para todos os ouvintes, o compromisso com a ortodoxia, no caso de Hilferding na Alemanha, se revelou um desastre histórico a nível mundial.
SLM
Sim, e eu acho que não podemos colocar isso somente sobre os ombros de Hilferding. É meio que sintomático de um problema mais amplo. Então, em termos das opções para um partido socialista ou social-democrata, se eles têm esse tipo de compromissos ortodoxos, ficam comprometidos com uma forma de pensar sobre a economia que essencialmente amarra suas mãos de um modo que não conseguem responder às demandas de seus eleitorados.
E isso é desastroso. É desastroso também no Reino Unido. É desastroso para o Partido Trabalhista também. E isso cria todo tipo de rachas entre o braço sindical e a liderança do partido, porque a liderança do partido basicamente enterra a cabeça na areia, e em alguns casos não está disposta nem mesmo a acolher alegações de que o desemprego era um problema em larga escala, não importando quantas evidências em contrário lhes fossem apresentadas pelos seus braços sindicais. Então, foi completamente desastroso e, historicamente, no caso sueco a forma como Thorsson geriu isso foi apenas dizer: “Bem, nós simplesmente temos que sair do poder. Sabe, os partidos social-democratas não conseguem governar em tempos como esse de um modo que seja consistente com nossos princípios”.
DD
Uau.
SLM
Sim, então quando o Keynesianismo aparece, é meio que uma nova ortodoxia econômica. É absolutamente revolucionário. Desamarra as mãos dos partidos social-democratas de modo que possam governar em tempos difíceis de forma consistente com os princípios social-democratas.
DD
E você descreve isso em termos teóricos como um momento polanyiano nos anos 1920 que colocou o mercado e a sociedade humana em uma grande contradição.
SLM
Certo, sim. Essa é uma referência ao economista político, entre outras coisas, Karl Polanyi, que falou sobre as tensões do sistema do padrão-ouro e que tem uma famosa análise em seu livro A Grande Transformação de como isso quase leva ao colapso civilizacional. Então, eu chamo a isso um momento polanyiano em seu espírito. Há essa coisa que emerge no início dos anos 1930 em que parece aos políticos da época, especialmente aos social-democratas ou, sabe, aos trabalhistas, que é possível salvar o sistema do padrão-ouro ou que é possível responder às demandas democráticas dos eleitorados, mas não é possível fazer ambos. Daí, eles tiveram que tomar uma decisão. E, até que aparecesse uma geração mais jovem de economistas formados em economia estatística e no que seria chamado mais tarde de keynesianismo, o entendimento era que sacrificar o sistema do padrão-ouro não era uma opção.
DD
Você escreve: “Todos os quatro partidos, incluindo os democratas estadunidenses, convergiram em uma linguagem comum que era não socialista, notadamente otimista e distintivamente economicista”. E, de fato, como você observou mais cedo, a virada keynesiana dos democratas foi aquilo que os tornou, pela primeira vez, em um partido de esquerda. Como essa compreensão fundamental de que a economia poderia ser gerenciada cientificamente para garantir o pleno emprego se traduziu em algo a que você chama “a ética keynesiana” [the Keynesian ethic], e qual o papel do teórico econômico keynesiano dentro dos partidos reinventados de esquerda como resultado?
SLM
Então, no livro, eu tipifico especialistas que, de certa forma, sustentam esses diferentes tipos de políticas de esquerda ao longo dos três períodos. Os economistas são meio que o especialista típico que eu tento caracterizar como uma figura dominante quando chegamos nas décadas de 1950 e 1960. E uma das coisas que observo neles é que eles tinham um certo modo de pensar sobre a economia enquanto motor, algo que poderia superaquecer, ou que podemos pisar o freio — algo parecido com uma máquina que precisa de engenheiros ou mecânicos. Por outras palavras, as pessoas precisavam de gerenciamento de acordo com as prioridades do governo. Então, esse modo de pensar sobre a economia era realizado pela pessoa do teórico economista [the economist theorician].
O que ressalto sobre sua localização institucional é que, especialmente em contraste com os teóricos do partido, eles têm um pé na política — e não apenas no governo, mas especificamente nos partidos políticos — e o outro pé na academia. Por um lado, eles são acadêmicos e são reconhecidos como economistas científicos; por outro lado, eles também estão profundamente envolvidos no desenvolvimento programático e nas decisões políticas dos partidos social-democratas e da centro-esquerda e, por extensão, dos governos social-democratas e da centro-esquerda.
Então, a ética keynesiana se refere a uma forma de ver o papel de alguém no mundo político ou na vida política de um modo consistente com essa posição entre a academia e os partidos — a navegação dessa linha. Em outras palavras, a ética keynesiana é um modo de ver o papel profissional de alguém na vida pública como o trabalho de trazer aquilo que sabemos sobre a ciência da gestão econômica para a tomada de decisões políticas, mas não de um modo que amarre as mãos de governos ou políticos — e sim de um modo que lhes permita ponderar equilíbrios estratégicos [strategic trade-offs] e fazer compromissos de formas que ainda lhes possibilitem responder perante seus eleitorados.
DD
A adesão dos partidos de esquerda ao keynesianismo e a ascensão do papel do teórico economista constituíram um movimento para a direita e um afastamento do socialismo? E nesse caso, por que, dado que a Grande Depressão não foi tanto um falhanço do socialismo quanto do padrão-ouro?
SLM
Então, eu penso que que foi um afastamento do socialismo num sentido específico de ser uma rejeição da linguagem socialista e seus quadros de referência. Não vamos mais falar sobre capital e sobre o problema da propriedade, certo? Nossa linguagem política não vai ser formulada usando a linguagem de Marx ou da teoria socialista. A linguagem que vamos usar ao falarmos sobre a economia vai ser uma linguagem econômica keynesiana técnica.
E é por isso que foi caracterizada por algumas pessoas nessa época como o chamado fim da ideologia, em que seríamos socialistas marxistas. Embora Marx e autores posteriores o compreendessem como uma ciência, o marxismo foi caracterizado como ideologia, em oposição à economia keynesiana, que não seria ideologia.
Era algo técnico. Então, foi certamente um afastamento do socialismo nesse sentido específico. E isso gerou descontentamento. O mais famoso exemplo disso é, provavelmente, o Programa de Bad Godesberg, na Alemanha.
DD
De 1959.
SLM
Certo, exatamente. Que foi caracterizado por descontentes do partido na época como a substituição de uma ideologia por uma nova ideologia.
DD
Em vez dos objetivos socialistas, “tanta concorrência quanto possível. Tanto planejamento quanto necessário”.
SLM
Parte da insatisfação no momento da mudança para o keynesianismo é que já não se baseava tanto em um jeito comum de falar. Era um jeito elitista de falar. Era um jeito acadêmico de falar. Era um jeito técnico e exclusivo de falar. Dito isso — especialmente se compararmos com agora — o modo como, através de um governo social-democrata, ou nos Estados Unidos nos anos de John F. Kennedy, por exemplo, a linguagem da economia keynesiana técnica se torna parte de um discurso político geral e popular é realmente impressionante. Uma das coisas que ressalto sobre o teórico economista keynesiano é que, por ter que desempenhar esse duplo papel, ele era meio estrategista e orador público.
Eles não eram apenas economistas e não eram apenas decisores políticos. Por exemplo, Walter Heller e Karl Schiller, seu homólogo alemão, eram famosos por suas comunicações diretas com o público e também pela disposição de comunicar e trabalhar diretamente com a liderança do movimento sindical.
Então, para a resposta específica à sua pergunta, penso que certamente o movimento para o keynesianismo foi um afastamento do socialismo, especialmente naquele sentido específico de um tipo de raciocínio consciente “vamos rejeitar uma linguagem teórica e trocá-la por outra”. Mas isso também permitiu aos economistas e políticos nessa época fazerem coisas que não eram possíveis para as pessoas que, por exemplo, eram teóricos do partido, que estavam realmente ancoradas no partido.
Então, isso lhes deu uma certa latitude, uma certa liberdade para fazer coisas na base de argumentos científicos e técnicos em vez apenas de partidarismo ou apenas, sabe, porque eles quisessem agradar um eleitorado e não outro.
Do keynesianismo ao neoliberalismo
DD
É impressionante que a mesma coisa aconteça em todos os quatro países que você está observando, porque as condições em cada país são, de certa forma, muito específicas, como na Alemanha, onde o papel do economista-teórico é destruído sob o Terceiro Reich. E temos a ciência econômica que emerge da era nazista como essa disciplina altamente cientizada e separada em duas direções: de um lado, o keynesianismo; e do outro lado, o ordoliberalismo (primo alemão do neoliberalismo, colocando de forma simplista). O Partido Democrata Cristão, ou CDU, se integra com o ordoliberalismo e o SPD com o keynesianismo. Como é que, dado que existem condições tão diferentes, particularmente na Alemanha, mas realmente em todos os países, a mesma coisa está ocorrendo ao mesmo tempo?
SLM
Então, é aí que o meu argumento sobre a novidade da interdependência entre economia acadêmica e política partidária — não governos, não agências governamentais, mas organizações partidárias — realmente se torna importante. O meu argumento no livro é que, na base da condição de possibilidade para a existência do economista-teórico, está uma relação nova, organizacional e em rede entre o Partido Democrata nos Estados Unidos e a economia acadêmica. Vale lembrar, no caso europeu — se olharmos para os anos 1920 — essa relação é, quando muito, de oposição.
Existe um desenvolvimento institucional específico que é comum a todos os casos que eu abordo que é essa interconexão emergente entre os departamentos acadêmicos de economia e economistas acadêmicos e os partidos políticos de centro-esquerda, partidos social-democratas, partidos trabalhistas e o Partido Democrata dos EUA. Então, para mim, essa é mesmo a base institucional da emergência dessa figura muito semelhante.
Uma das coisas que faço no livro é comparar a forma como Karl Schiller caracteriza o papel do economista na política e na vida pública na Alemanha com a forma como Walter Heller, em um contexto institucional muito diferente, caracteriza o seu papel, e é curiosamente semelhante. Eles falam sobre como navegar na linha entre ciência e política e sobre a necessidade de fundamentar a tomada de decisões recentes, mas ainda permitindo aos políticos a liberdade de tomar decisões sobre equilíbrios estratégicos [strategic trade-offs].
Eles falam sobre as coisas de um modo muito semelhante, e meu argumento no livro é que isso reflete sua posição institucional semelhante, apesar do fato de que os países são muito diferentes, os partidos são muito diferentes e a história dos partidos é muito diferente. O fator comum subjacente a isso é essa relação em que, em vez de os partidos social-democratas produzirem seus intelectuais internamente, eles estão cada vez mais ligados à academia, às ciências sociais acadêmicas e, especificamente, à ciência econômica. Então, parte do que eu ressalto aí é que existe um desenvolvimento ao longo do tempo. Nos anos 1920, enquanto os partidos social-democratas estão se consolidando como partidos de poder que entram e saem do governo, eles também começam estabelecendo uma presença em campi universitários e começam estabelecendo clubes e formas de recrutamento de novas pessoas, jovens contingentes de liderança. E parte do que ocorre lá é que, como os departamentos de economia e as ciências sociais também estão se desenvolvendo, então, como eles tinham desenvolvido essa presença, eles também estão alcançando esses departamentos.
Com todo esse tipo de crises e instabilidade dos anos 1930, a geração mais jovem de economistas começa se preocupando com o problema do desemprego, com o problema da pobreza e coisas dessas, que não são realmente preocupações de seus mentores liberais clássicos. Então, o desenvolvimento desses laços é tal que os departamentos de economia produzem economistas que depois entram diretamente na liderança dos partidos políticos, tornando possível a esses tipos de figuras muito semelhantes se tornarem figuras dominantes nos seus respetivos partidos, apesar de outros tipos de diferenças institucionais.
DD
Você escreve que uma das razões para essa dinâmica ter sido internacional da forma que foi é que o keynesianismo se tornou a ideologia para gerenciar essa economia mundial recém concebida e constituída de economias nacionais. Era uma ideia nova na época, que surgiu após a II Guerra Mundial, em meio à descolonização e a ascensão da Guerra Fria.
Você escreve: “A era keynesiana foi significativa, em parte, porque uma profissão acadêmica criou metáforas orientadoras, instrumentos técnicos e atalhos terminológicos que ajudaram a organizar toda uma era da História Ocidental moderna. Nesse sentido, a ciência econômica do pós-guerra não era meramente uma tecnologia de governo ou um instrumento dos decisores políticos. Era constitutiva da vida política e das concepções sobre o que significava governar”.
Foi essa nova ordem mundial na época que tornou a primeira reinvenção da esquerda uma coisa internacional?
SLM
Sim. Então, aí o que eu estou falando é que, mesmo que possamos pensar na economia em termos trans-históricos, na verdade, o senso comum geral ou as compreensões ontológicas sobre o que é o “económico” mudaram dramaticamente ao longo do tempo e isso não é arbitrário ou aleatório. Basicamente, está ligado à organização do poder político.
E dessa forma, as ortodoxias liberais do período do padrão-ouro faziam sentido no contexto de um período de império colonial. Depois, com o declínio dos impérios coloniais, é apenas nesse mundo que começa a fazer sentido pensar nas economias como motores especificamente nacionais, como unidades especificamente nacionais. E o que vem junto com isso é a capacidade de caracterizar estatisticamente as economias nacionais. Então, era necessário ter coisas como contas nacionais, que apenas passaram a existir realmente no período de guerra. E também a capacidade técnica de descrever a economia de modo estatístico e descrever todas as economias do mundo como coisas nacionais em unidades estatísticas — isso só faz sentido em um contexto em que a forma política dominante é um Estado-nação. Por outras palavras, existe um argumento ontológico no livro em que a caracterização dos anos do padrão-ouro no mundo econômico em termos do capitalismo é uma coisa diferente da caracterização do mundo em termos de um conjunto de economias nacionais que são como motores que podem ser manipulados. E isso é muito diferente da coisa que emerge nas décadas de 1980 e 1990, em que o mundo econômico é concebido em termos de mercados que são crescentemente não territoriais, não tão conectados a nenhuma fronteira nacional em particular, mas sim essas coisas globais que existem por aí.
DD
E todo esse período vem sendo descrito como “o fim da ideologia”. E, com certeza, foi assim que foi pintado e retratado. Mas você escreve que isso foi apenas um reflexo do quão dominante a ideologia havia se tornado. E, de fato, após todos esses partidos fazerem sua virada neoliberal, foi o keynesianismo que foi taxado de ortodoxia ideológica rígida. E, subitamente, seus vínculos partidários se tornaram uma desvantagem.
Em retrospecto, por que o auge do keynesianismo, o auge do domínio do economista-teórico, acaba sendo um momento de tão grande vulnerabilidade?
SLM
Há essa constante tensão que fundamenta a história do livro, que está entre aquilo que é caracterizado como ideologia e aquilo que é caracterizado como ciência.
E ideologia, nesse enquadramento, por definição, não é ciência. Muitas vezes significa “partidária”. Está ligada aos interesses de um grupo específico ou de um movimento específico ou de um lado específico do muro político. Aquela flexibilidade que eu estava descrevendo — que o economista-teórico tinha em se colocar como economista científico e, logo, ser escutado como alguém que não estava falando apenas de um jeito partidário — era necessária para a sua existência, para sua capacidade de fazer o que fazia.
Era realmente importante: como referi anteriormente, quando comparo Schiller e Heller, em que ambos falam sobre quão importante é terem o apoio de uma profissão científica consensual, é o que torna isso possível. Mas depois se a gente olhar para sua posição real no mundo, o que a gente vê é que eles eram partidários. Estavam profundamente investidos no sucesso dos partidos políticos aos quais estavam ligados. Schiller eventualmente rompe com o SPD, mas, antes disso, eles são claramente atores partidários. No entanto, são capazes de agir como portadores de uma ciência econômica objetiva na vida pública.
Então, uma das histórias que eu tento contar é que — tanto no mundo político como no mundo acadêmico — havia descontentamentos. Tinha pessoas que não gostavam desse casamento da economia keynesiana, especificamente, com os partidos e governos da centro-esquerda — pessoas que entendiam isso como uma diluição ou uma ameaça para a posição científica da profissão como busca da descoberta de verdades econômicas e científicas sobre o mundo. Então existe uma oposição que se desenvolve.
Agora vou falar mais especificamente sobre o caso estadunidense, que se desenvolve entre os economistas keynesianos que estão fazendo esse tipo de movimento entre política e governo, especificamente governos democratas e política no Partido Democrata, e a academia. Existe uma oposição entre isso e economistas que são estritamente acadêmicos — e aqui a história da Escola de Chicago e de pessoas como Milton Friedman é realmente importante — que veem isso como um tipo de economia socialista disfarçada. Então, existe um casamento de que eu tenho falado, ou interdependência, entre a ciência econômica keynesiana e a política partidária.
Isso cria esse tipo de fraturas na ciência econômica e, depois, também na política (e isso é muito claro, por exemplo, na forma como Margaret Thatcher lida com as coisas quando entra no governo), em que o keynesianismo é reconhecido pela direita política como uma ciência econômica da esquerda. Então, Thatcher chega e expurga o governo de economistas keynesianos que tinham sido trazidos em anos anteriores, especialmente pelos governos de Harold Wilson.
DD
E por causa dessa interdependência que foi estabelecida pelos keynesianos entre ciência econômica e partidos de esquerda, ironicamente, essa mesma interdependência prepara o terreno para que o neoliberalismo transforme tanto a ciência econômica como os partidos de esquerda.
SLM
Certo. Torna isso possível. Então, uma das formas de explicar isso é que, nas décadas de 1910 ou 1920, não importava para os partidos da esquerda o que estivesse ocorrendo na ciência econômica.
Os dois mundos não estavam ligados de nenhuma forma significativa. Mas, quando se alcança essa interdependência, então o que está acontecendo na ciência econômica começa a ser muito importante. Por causa desse fato de interdependência, temos na academia estadunidense, em vez daquela profissão científica consensual que Heller descreve, uma profissão fraturada em que, especialmente sob a influência da Escola de Chicago, temos um novo tipo de economia científica dominante que acaba, especificamente, rotulando os economistas keynesianos como Heller de economistas não científicos.
Depois é criada uma dinâmica que não muda apenas a política de direita — e sabemos que Friedman foi conselheiro de Nixon e tudo isso — mas muda também toda a infraestrutura da política de esquerda, dos partidos de esquerda, em que, quando você fosse indicar os economistas para seu Conselho Econômico [Council of Economic Advisers] ou o que quer que fosse, você indicaria aqueles com mais credenciais intelectuais e com o maior prestígio acadêmico. Eles precisavam ter reconhecimento acadêmico.
Então, se a economia keynesiana se torna rotulada como uma versão não acadêmica ou não científica da economia que está simplesmente ultrapassada — existe em seu lugar essa nova economia centrada na ciência dos mercados —, logo você vai ter economistas em governos de esquerda, tal como tínhamos economistas em governos de esquerda nas décadas de 1950 e 1960, mas que vão ver o mundo de um modo muito diferente.
DD
Você escreve que a “ética neoliberal” [neoliberal ethic] foi, no mínimo, tão importante como a ciência econômica neoliberal. O que era essa ética neoliberal e por que o desafio ético colocado pelos neoliberais se revelou tão prejudicial para a posição do keynesianismo e para a posição e papel de um tipo muito específico de economista keynesiano que você chamou de “economista-teórico”?
SLM
Então, tal como a “ética keynesiana”, a razão por que eu uso “ética” para me referir ao período neoliberal é que, de novo, estou falando sobre as compreensões dos especialistas do partido — e nesse momento, especificamente dos economistas — sobre qual é o seu papel na vida pública. Então, da mesma forma que para um economista keynesiano a economia é concebida como essa coisa nacional que pode e deve ser manipulada e conduzida, se quiser, de um modo que permita aos partidos de esquerda governar de acordo com suas prioridades, a imaginação neoliberal do mercado é que ele é essa coisa aí fora que opera de acordo com suas próprias leis naturais, certo? Portanto, é como o sol. É essa coisa aí fora e você não a manipula nem consegue manipular. E se você tentar manipular, provavelmente vai sair pela culatra. Esse é um modo muito diferente de pensar sobre o mundo econômico. E a decorrência disso é que o trabalho do economista na vida pública é deixar espaço para que os mercados operem livremente.
Então, em vez de seu trabalho ser, bom, “nós fundamentamos a tomada de decisões políticas com uma boa análise econômica científica e fornecemos equilíbrios estratégicos [trade-offs]”, seu trabalho é apenas impedir que a política e as políticas públicas interfiram no funcionamento do mercado, porque essa é a única coisa que vai produzir os melhores resultados econômicos.
Essa é uma concepção muito diferente do papel de alguém na vida pública e, por isso, eu a chamo a de uma “ética neoliberal”, porque meu argumento aqui não é que isso ocorra por causa das políticas que eles abraçam nem do que eles realmente fazem. Isso é meio que uma distorção. Só funciona se estivermos dispostos a ignorar o que eles realmente dizem sobre si mesmos. E deixa de lado uma pergunta realmente importante que é: como podemos ter pessoas que se entendem a si mesmas, no caso estadunidense, como atuando nessa tradição de liberalismo neutro ou, no caso sueco, atores políticos social-democratas que explicitamente se opõem à lógica do neoliberalismo — que está especialmente associado aos governos de Thatcher e Reagan — e que, no entanto, promovem políticas que se resumem em liberar o capital internacional e em sacrificar os salários com o objetivo de aumentar os lucros e todas essas coisas que são plenamente consistentes com a compreensão neoliberal do mundo? Como é que a gente explica isso?
Portanto, meu argumento sobre esses novos tipos de economistas é que muitos deles são social-democratas no contexto europeu ou economistas trabalhistas no contexto britânico ou se entendem como economistas de tendência liberal no contexto estadunidense. Mas eles olham o mundo econômico em termos desses mercados desterritorializados. E a melhor coisa que eles podem fazer na vida pública é libertar aqueles mercados e fazer com que outras políticas fiquem em conformidade com as demandas do mercado.
Então, eles entendem que seu papel na vida está se tornando um papel limitador. Seu trabalho é limitar a interferência da política no funcionamento dos mercados. E por isso, a ética neoliberal descreve seu modo de ver o mundo e o modo como isso se traduz em uma certa compreensão do seu papel profissional na vida pública, que é diferente de chamá-los de neoliberais, que tem esse problema de distorcer ou ignorar aquilo que eles dizem sobre si mesmos.
DD
Você tem razão que existe “uma tendência para apresentar o que deveria ser um quebra-cabeça, nomeadamente, por que as pessoas que se opõem ao neoliberalismo ou que nunca ouviram falar dele podem, mesmo assim, agir no mundo de formas que estão em conformidade com o pensamento neoliberal como um fato. Os defensores da Terceira Via são neoliberais, mesmo que digam que não são”.
SLM
Então, isso aí se fundamenta em certos compromissos epistemológicos relacionados com a convicção de que deveríamos considerar os relatos na primeira pessoa, os relatos dos próprios agentes sobre suas motivações e como eles veem as coisas e por que eles fizeram essas coisas, não necessariamente como verdade objetiva, mas como a verdade deles – o que acho que é questionável no contexto do discurso político, porque o discurso político é algo distinto. Mas eu penso que, para uma questão como essa (uma questão que é tão difícil porque o problema do neoliberalismo está misturado com todo tipo de política, com posições políticas, de modos totalmente inseparáveis), se a academia que está fazendo análises da vida pública ou da vida política ou do neoliberalismo não levar em conta os relatos na primeira pessoa dos agentes, o que acaba fazendo é se engajar naquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu caracteriza como “a lógica do julgamento” [“logique du procès”]. Acaba participando nesse jogo político de culpar em vez de explicar.
Então, quando falo no livro sobre figuras como Larry Summers, o que eu estou tentando fazer é situá-lo e a pessoas como ele, de sua geração e com algumas posições institucionais semelhantes, situá-las no tempo e no espaço e perguntar: o que é que, no modo como eles viam o mundo ou sua experiência com o mundo, fez isso ter sentido para eles de uma forma que pudessem dizer: “eu sou progressista ou sou um democrata ou sou um social-democrata e também acho que deveríamos liberalizar os mercados porque isso é a única coisa que podemos fazer”?
Teóricos do partido e cultura socialista
DD
Você argumenta que os partidos da esquerda foram reinventados por duas vezes, primeiro da esquerda socialista para a esquerda economicista, e depois da esquerda economicista para a esquerda neoliberalizada, e que o fundamental nessas transições foram mudanças em quem eram os especialistas do partido e o que os especialistas do partido faziam. Por que é que um número tão pequeno de especialistas era tão importante, e o que faz com que os partidos desempenhem um papel tão decisivo na “passagem da ideologia para a hegemonia”?
Stephanie L. Mudge
Meu interesse é menos nas pessoas em si mesmas e mais sobre o que suas trajetórias para posições de influência dentro das redes partidárias podem nos dizer sobre as forças institucionais mais amplas que geraram essas reinvenções.
Então, por exemplo, no caso da esquerda socialista, que é o meu ponto de partida no caso europeu, as condições institucionais ou históricas (que são a base a partir da qual os partidos social-democratas e os partidos trabalhistas emergem) são um mundo no qual existem níveis educacionais relativamente baixos. Por isso, não são muitas pessoas que possuem formação universitária de elite. As ciências sociais existem, especialmente a ciência econômica, mas não são ainda as disciplinas totalmente autônomas em que vão se tornar a meio do século XX. E então, naquela primeira transição que você mencionou, da esquerda socialista para a esquerda economicista, o que eu enfatizo é que o ponto de partida para a esquerda socialista foi essa figura específica que eu chamo de teórico do partido.
E o que eu quero dizer com isso é que, em cada um dos casos que observo na Europa Ocidental, existe um tipo de figura, especificamente me concentro em ministros da Fazenda — ou no caso britânico, chanceleres do Tesouro — e o que descobrimos é que esse pessoal não tem formação específica em economia. Muitos deles possuem certamente mais educação, e mais educação de elite do que ocorre na população em geral, mas muitos deles nem têm necessariamente formação superior.
Esse é o caso, por exemplo, de Philip Snowden no Reino Unido. Mas eles alcançam estatuto como intelectuais e como intelectuais do partido através do jornalismo, e especialmente através de atividades jornalísticas que estão relacionadas de algum modo aos partidos. Portanto, as próprias figuras são importantes em si mesmas, porque são figuras muito proeminentes e poderosas no contexto de seus respectivos partidos.
Mas o que é interessante para mim é: quais são as condições de possibilidade dessas figuras? Quais são as instituições e os arranjos institucionais que as tornam possíveis, que criam os caminhos institucionais para as posições que elas acabam tendo nos partidos social-democratas por um lado, mas também no desenvolvimento de meios de comunicação socialistas, muitos dos quais ou estavam dependentes dos recursos partidários ou eram realmente atividades internas, operando através do partido e financiadas através do partido?
E então aquilo que me interessa, ao observar a figura do especialista do partido, é acompanhar as transformações institucionais que promoveram essas reinvenções. Por isso, no caso do especialista do partido, uma das coisas que chama atenção sobre eles é que existem pessoas que têm o título “economista” no seu tempo, e tendem a ser liberais — ou seja, estão ligados a partidos liberais. E então existe, na verdade, uma oposição nesse tempo entre organizações partidárias socialistas ou de esquerda e a ciência econômica acadêmica. Com a transição para a esquerda economicista, aquilo que está subjacente a isso — a transformação institucional que está subjacente a isso — é uma relação recém-descoberta que caracterizo como uma interdependência entre a ciência econômica acadêmica e a esquerda e os partidos da centro-esquerda. E, nesse momento, isso é verdade também sobre o Partido Democrata quando chegamos nas décadas de 1940 e 1950. Isso simplesmente não existia nos anos 1920 ou antes. E por isso a figura do especialista é um vetor ou algo do tipo, certo? Isso me oferece um modo de observar que eu caracterizo como um tipo de análise de dentro para fora. Seguindo sua trajetória e colocando-os em contexto, conseguimos descobrir o tipo de processos institucionais que promoveram essas reinvenções.
DD
Voltando ao início da história, com esses teóricos socialistas que tiveram esse papel decisivo nos partidos da esquerda socialista, você escreve que eles estavam muito mais voltados para os partidos socialistas do que para os sindicatos, que constituíam a base de massas daqueles partidos. E então, de fato, foi através dos partidos socialistas, antes de tudo, que esses intelectuais tiveram um papel tão decisivo para tornar os sindicatos europeus em sindicatos socialistas. Você argumenta que a ideia de que os partidos da esquerda surgiram do movimento operário é um equívoco comum: “Marx e Engels são, em parte, culpados. Eles promovem a noção de que os partidos, socialistas ou não, eram as extensões ideológicas das classes. Ignorando as condições de sua própria existência, Marx via o socialismo como uma expressão científica e refinada da experiência da classe trabalhadora. Isto é, um modo de pensar embasado na classe, mas articulado por intelectuais.”
O que foi que Marx não entendeu, e como é que ele não entendeu, minimizando o papel de intelectuais como ele próprio, o mesmo tipo de papel óbvio desempenhado por ele, pelos intelectuais que lideraram o SPD ou pelos fabianos [membros da Fabian Society] que forjaram o Partido Trabalhista britânico? E por que o jornalismo era essa profissão de fato para tantos líderes socialistas, desde Marx a Kautsky e a Lenin?
SLM
Primeiro, eu quero dizer que o meu argumento não é que a história da formação de partidos social-democratas e trabalhistas não seja uma história do desenvolvimento do movimento operário. Meu argumento não é que isso seja incorreto de forma alguma. Eu acho que isso seria, na verdade, um tipo de argumento bobo para qualquer pessoa que conheça a história desses partidos. Meu argumento é apenas que isso não é a história toda, entende? Quando lemos sobre a história dos movimentos social-democratas e partidos social-democratas, é comum realçar a relação com o movimento operário por razões históricas óbvias.
E o movimento operário é tratado como um conjunto de organizações e pessoas fazendo coisas e produzindo coisas. E depois, quando existe um debate sobre socialismo, ele é tratado como uma ideologia — algo como um conjunto de ideias, um modo de pensar. Então, eu quero, primeiramente, apenas meio que corrigir o que foi mencionado sobre o meu argumento, que não é que os sindicatos não fossem importantes, é só que o socialismo não era apenas um modo de pensar. Era também um conjunto de organizações e pessoas fazendo coisas.
E então, também quero historicizar isso um pouco e ressaltar que não poderia ser dado por adquirido, por essa razão, que o socialismo se tornaria o tipo de base intelectual — ou, como Mark o entendia, científica — do movimento operário. Essa aliança teve que ser forjada e houve muita disputa nesse processo.
Não havia nada na experiência de ser um trabalhador assalariado que o levasse necessariamente à análise que Marx apresenta em Das Kapital. É que, sabe, essas eram duas coisas diferentes. Então, o próprio Marx e intelectuais como ele tiveram que persuadir os movimentos operários de que sua particular linha de análise era efetivamente uma análise que representava os interesses deles ou que era capaz de falar por eles, e isso exigiu trabalho e disputa e teve todo tipo de rachas e oposições sobre se os partidos deveriam ser dirigidos por trabalhadores ou se os partidos deveriam ser dirigidos por intelectuais.
Esse é um tipo de tensão muito antigo. Então, se quisermos olhar para isso da perspectiva de Marx, é claro que ele vai argumentar que sua perspectiva é uma expressão da experiência da classe trabalhadora.
DD
Marx era um epistemólogo com um ponto de vista inconsistente, mas não somos todos?
SLM
Certo, exatamente. Somos. Todos nós meio que tendemos a encontrar formas de intelectualizar nossas posições de um modo que legitime essa posições. E não acho que Marx seja uma excepção a isso. Então, eu penso que minimizar isso [o papel dos intelectuais] pode ser entendido como um tipo de movimento tático, em outras palavras, dado o contexto em que ele estava — no esforço para constituir esses partidos que unicamente existiam na sua imaginação no tempo em que ele escreveu o Manifesto Comunista.
Então essa é minha resposta para a pergunta sobre por que ele menorizou isso. Sobre a pergunta do jornalismo, é uma das muitas coisas no livro sobre a qual eu não estava planejando escrever. Simplesmente, ficou evidente que esse era o caso — que o jornalismo realmente era a base organizacional do braço intelectual socialista ou do braço cultural dos partidos social-democratas no seu período de formação, das décadas de 1860 a 1920.
Então, a pergunta do porquê o jornalismo: acho que há algumas respostas diferentes para isso. Uma delas retoma o que eu estava dizendo antes sobre uma oposição entre a produção intelectual socialista de pessoas como Marx e a academia. Então, como eu disse antes, as ciências sociais em desenvolvimento estão principalmente aliadas — se é que estavam aliadas a partidos — a partidos liberais. Então, parte do que está ocorrendo eu acho que talvez até seja algo semelhante aos tempos recentes: você tem na Alemanha, por exemplo, um monte de crianças da classe média acedendo ao ensino superior, nada como na dimensão atual, mas estava crescendo nessa época. E daí tem todo esse tipo de intelectuais jovens, altamente educados e radicais, como Marx, que não têm lugar na academia, cujas posições são, na verdade, meio que opostas à academia, que ainda precisam ganhar a vida.
Então, você tem o desenvolvimento dessa imprensa radical, eu acho, em parte porque tem esses novos quadros de intelectuais radicais que são politicamente engajados, que, tal como Marx, são formados em filosofia, entre outras coisas, e que não têm espaço na academia. E a outra coisa que provavelmente é parte importante dessa história é o antissemitismo.
Também existe o papel importante da repressão política. Então, por exemplo, no caso alemão existiam as leis anti-socialistas, eu penso que desde 1878 até 1890, que foram emitidas pelo governo prussiano, e parte do que o governo prussiano fez, como parte explicita desse esforço, foi tentar demolir o aparato de produção intelectual que o Partido Social-Democrata havia desenvolvido.
Então, eles entraram e levaram todas as máquinas de impressão do partido e outras coisas para garantir que não pudesse continuar em suas atividades educativas e culturais. E daí o que acontece na sequência dessa repressão é um crescente radicalismo, e temos essas redes de exilados internacionais empurrados para a clandestinidade e algum patrocínio de vários doadores ricos.
E depois eles estabeleceram coisas como novos jornais e revistas teóricas socialistas que são muito mais explicitamente marxistas. E é realmente nesse contexto que o Programa de Erfurt do SPD — o primeiro programa partidário explicitamente marxista, de uma forma que Marx aprovava — é elaborado.
Sabe, a outra coisa é que eu penso que agora tendemos a olhar o passado nos termos do presente. Quando falamos em ciência econômica hoje, pensamos em um certo conjunto de disciplinas acadêmicas estabelecidas e tendemos a meio que alargar essa compreensão daquilo que a ciência econômica era nessa época. Mas esse não é, na verdade, o caso. Nas décadas de 1910 e 1920, a economia e as ciências sociais não eram profissões autônomas realmente bem desenvolvidas do jeito são agora. As ciências sociais existiam, mas em geral não eram tão bem desenvolvidas e não eram tão influentes na política como foram em décadas posteriores.
DD
Outra contextualização que eu achei realmente interessante é que, enquanto os liberais eram obviamente rivais dos socialistas, os intelectuais socialistas dessa época estavam travando sua luta pelo apoio da classe trabalhadora e dos sindicatos em um mundo de “clubes, sociedades de debates e jornalismo, muitas vezes semeadas pelas elites e associações liberais, que depois serviam como locais da luta representativa entre socialistas e liberais”.
SLM
Sim, isso também emerge como uma dessas coisas que provavelmente não seriam uma descoberta para historiadores do socialismo, mas que foi uma descoberta para mim enquanto eu estava elaborando o livro. Quando olhamos, por exemplo, para o desenvolvimento original do Partido Social-Democrata da Alemanha ou do Partido Social-Democrata Sueco, o que encontramos é que eles estão indo para essas organizações estabelecidas por partidos liberais e ativistas liberais — e liberal aqui não quer dizer liberal no sentido do New Deal estadunidense, mas liberal nesse tipo de sentido europeu clássico de defesa da expansão dos direitos de voto democráticos.
Antes do surgimento dos partidos social-democratas, os liberais estavam envolvidos no mesmo tipo de esforços de socialização em que figuras como Marx e seus compatriotas também se envolveram, que era tentar educar a população trabalhadora para pensar de um modo liberal. E, por isso, uma das coisas que se desenvolveu a partir daí foi a criação de todos os tipos de associações e sociedades educativas e clubes de leitura e coisas desse tipo, que deveriam ser locais de discussão nos quais políticos e ativistas liberais poderiam se engajar e tentar educar trabalhadoras e trabalhadores que, de outra forma, não teriam muita educação.
DD
Isso é provocado pela preocupação da elite liberal sobre o que era considerado como a questão social da época: esses novos dilemas colocados pela ascensão do capitalismo industrial.
SLM
Exatamente. Então, existe muita preocupação sobre as consequências sociais daqueles desenvolvimentos, e a solução liberal era a educação, sabe: “Temos que educar os trabalhadores para que eles possam navegar nesse novo mundo e melhorar sua situação e para que eles também possam se tornar participantes significativos do processo político”.
DD
Soa familiar.
SLM
Sim, exatamente. E então eles criam essas organizações. E daí convidavam alguém como August Bebel para vir dar uma palestra e então eles chegavam e falavam: “Na verdade, toda essa coisa do liberalismo é uma mentira. De fato, é o socialismo, ou especificamente o socialismo marxista, que oferece para vocês uma melhor forma de pensar sobre o mundo e de entender a experiência de vocês”. Existe quase uma invasão a algumas dessas organizações criadas por partidos liberais. E então, no Reino Unido, uma das expressões que também podemos ver desse processo é o declínio do Partido Liberal e a ascensão do Partido Trabalhista em seu lugar.
DD
Foi por causa do importante papel desempenhado por esses intelectuais boêmios e cosmopolitas que partidos como o SPD enfatizaram tanto o intelectualismo e a cultura? Você escreve que eles criaram “um ambiente total para seus membros, toda uma subcultura socialista”. É realmente notável, porque eu acho que o intelectualismo nunca mais voltou a ser tão difundido nos partidos da esquerda europeia.
SLM
Sim, isso é algo que simplesmente não para de me fascinar. A forma como penso sobre isso está meio que fundamentada em um certo entendimento de que os partidos políticos se formam por inúmeras razões, mas uma delas é disputar o poder político. E então, se tivermos presente que os partidos social-democratas na Europa se formam antes que isso fosse possível, ou que começaram se formando antes que houvesse uma extensão suficiente dos direitos de voto de tal modo que fosse possível para eles fazer isso, eles estavam limitados no que era possível em termos de disputa pelo poder e de disputa por cargos. E então, em vez disso, aquilo em que eles investiram foi cultivar eleitores socialistas, certo? Cultivar uma cultura socialista. E também devemos nos lembrar que isso é antes da educação de massas generalizada. É antes do desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social moderno. E por isso, uma das formas de cultivar uma subcultura, ou de socializar as pessoas, é providenciar instituições educacionais de fato e providenciar instituições de bem-estar social de fato. E era uma estratégia muito explícita. Dessa forma, quando os sistemas eleitorais lhes possibilitaram disputar cargos políticos, eles já possuíam um movimento de massas socializado que pensava em quadros de referência socialistas.
Se pensarmos sobre isso, é uma conquista incrível. Se você for na Europa ou se for em algumas das bibliotecas de partidos social-democratas e socialistas, o que você vê é realmente um estilo de vida. É todo um modo de viver. Havia uma ideia de como criar uma família de um modo socialista e havia calendários para que se pudesse pensar no tempo e na passagem do tempo em um quadro de referência socialista. Então, estava muito além de meras questões sobre essa ou aquela política econômica, horas de trabalho ou o que quer que fosse. Era um estilo de vida. Era uma forma de pensar e foi explicitamente cultivada para ser assim. E eu realmente penso que isso foi fundamental para a durabilidade da política social-democrata durante todo o século XX.
A ortodoxia do padrão-ouro e a transição keynesiana
DD
O ponto em que a história se torna realmente surpreendente — e, como alguém de esquerda, um pouco triste — para mim é quando você escreve que a queda dos teóricos dos partidos socialistas resultou de sua estranha dedicação à economia ortodoxa clássica e de sua firme oposição aos gastos deficitários. E isso vira de cabeça para baixo nosso entendimento contemporâneo sobre esquerda e direita, porque os marxistas nessa época eram conservadores fiscais obcecados por orçamentos equilibrados que se opunham aos apelos heterodoxos para gastos deficitários que chegavam de dentro e de fora desses partidos. Qual era a ortodoxia econômica no fim do século XIX e início do século XX? E por que eram logo os marxistas que estavam tão ligados a isso, mesmo quando isso criava uma crise massiva para os partidos da esquerda, enquanto as condições econômicas se tornavam impossíveis?
SLM
Então, as ortodoxias clássicas na virada do século XX eram muito semelhantes ao que poderíamos chamar hoje de conservadorismo fiscal. Se as coisas começarem a entrar em crise, então queremos consolidar nossas finanças. Então, cortamos os gastos ou aumentos impostos, ou alguma combinação dessas duas coisas. É o que hoje poderíamos chamar de austeridade. É um tipo de sistema econômico inteiramente diferente, porque o sistema do padrão-ouro é diferente do que temos agora.
Mas a lógica que sustentava a ordem do padrão-ouro era muito semelhante ao que hoje entenderíamos como conservadorismo fiscal, um tipo de política de austeridade no contexto de uma crise ou recessão. E é realmente fascinante que, quando olhamos para figuras como Rudolf Hilferding, que era amplamente reconhecido como um intelectual ou economista marxista de primeira linha, quando eles são confrontados com as crises do fim dos anos 1920 e dos anos 1930, eles voltam às mesmas ortodoxias fiscais que reconhecemos agora.
Penso que tem muita coisa acontecendo aí. Uma delas é que, nessa época, os partidos dos quais eles fazem parte já são partidos de governo. E romper com as ortodoxias do padrão-ouro potencialmente também significava romper com o próprio padrão-ouro, o que estava simplesmente fora dos limites do senso comum.
Era extremamente radical. Era como olhar para um penhasco e não saber o que estava do outro lado; não se sabia realmente o que estava lá. E então se você é um partido de governo que está realmente no poder, em vez de um partido de agitação e socialização, você não quer ser a pessoa que afunda o barco.
Então, é impressionante que, no fim dos anos 1920 e início dos anos 1930, Hilferding (um teórico marxista na Alemanha), Fredrik Thorsson na Suécia (que não é um intelectual marxista mas é certamente um intelectual social-democrata e ministro sueco da Fazenda) e Philip Snowden no Reino Unido sejam todos conservadores fiscais.
E portanto, eu acho que precisamos relacionar isso com suas posições de poder, não mais como agitadores socialistas, mas como figuras efetivamente responsáveis pelas questões financeiras e econômicas no governo. Ninguém rompe com a ortodoxia até o colapso do padrão-ouro. E no campo dos partidos da centro-esquerda e dos governos social-democratas, o primeiro partido que rompe com essas ortodoxias, dos casos que eu analiso, é o Partido Social-Democrata Sueco, e a explicação para isso é o que alguns sociólogos poderiam chamar chamar de abertura de uma cadeia de vagas [vacancy chain]. Basicamente, os líderes do partido — tanto a figura principal do partido, Thorsson (que é o ministro da Fazenda por padrão), como o líder do partido, Hjalmar Branting —morreram em 1925.
Isso cria um conjunto de vagas que a geração seguinte ocupa. E uma das figuras que ocupam essas vagas, para o cargo de ministro da Fazenda, é Ernst Wigforss, que não tem formação como economista, mas que tem formação universitária e se move em círculos com formação universitária, incluindo economistas. Então, ele é meio versado no que então se chama “a nova ciência econômica” [new economics], que é uma linha orgânica de pensamento econômico própria da Suécia e que se parece muito com o keynesianismo, mas Keynes vem mais tarde. Isso se torna uma nova ortodoxia, em que aquilo que a gente faz em uma recessão não é subir impostos ou cortar gastos ou ambos, mas sim gastar, pedir emprestado para gastar e, então, quando você impulsiona o crescimento econômico ou recupera o crescimento econômico, a gente colhe os benefícios.
DD
Caso isso não esteja claro para todos os ouvintes, o compromisso com a ortodoxia, no caso de Hilferding na Alemanha, se revelou um desastre histórico a nível mundial.
SLM
Sim, e eu acho que não podemos colocar isso somente sobre os ombros de Hilferding. É meio que sintomático de um problema mais amplo. Então, em termos das opções para um partido socialista ou social-democrata, se eles têm esse tipo de compromissos ortodoxos, ficam comprometidos com uma forma de pensar sobre a economia que essencialmente amarra suas mãos de um modo que não conseguem responder às demandas de seus eleitorados.
E isso é desastroso. É desastroso também no Reino Unido. É desastroso para o Partido Trabalhista também. E isso cria todo tipo de rachas entre o braço sindical e a liderança do partido, porque a liderança do partido basicamente enterra a cabeça na areia, e em alguns casos não está disposta nem mesmo a acolher alegações de que o desemprego era um problema em larga escala, não importando quantas evidências em contrário lhes fossem apresentadas pelos seus braços sindicais. Então, foi completamente desastroso e, historicamente, no caso sueco a forma como Thorsson geriu isso foi apenas dizer: “Bem, nós simplesmente temos que sair do poder. Sabe, os partidos social-democratas não conseguem governar em tempos como esse de um modo que seja consistente com nossos princípios”.
DD
Uau.
SLM
Sim, então quando o Keynesianismo aparece, é meio que uma nova ortodoxia econômica. É absolutamente revolucionário. Desamarra as mãos dos partidos social-democratas de modo que possam governar em tempos difíceis de forma consistente com os princípios social-democratas.
DD
E você descreve isso em termos teóricos como um momento polanyiano nos anos 1920 que colocou o mercado e a sociedade humana em uma grande contradição.
SLM
Certo, sim. Essa é uma referência ao economista político, entre outras coisas, Karl Polanyi, que falou sobre as tensões do sistema do padrão-ouro e que tem uma famosa análise em seu livro A Grande Transformação de como isso quase leva ao colapso civilizacional. Então, eu chamo a isso um momento polanyiano em seu espírito. Há essa coisa que emerge no início dos anos 1930 em que parece aos políticos da época, especialmente aos social-democratas ou, sabe, aos trabalhistas, que é possível salvar o sistema do padrão-ouro ou que é possível responder às demandas democráticas dos eleitorados, mas não é possível fazer ambos. Daí, eles tiveram que tomar uma decisão. E, até que aparecesse uma geração mais jovem de economistas formados em economia estatística e no que seria chamado mais tarde de keynesianismo, o entendimento era que sacrificar o sistema do padrão-ouro não era uma opção.
DD
Você escreve: “Todos os quatro partidos, incluindo os democratas estadunidenses, convergiram em uma linguagem comum que era não socialista, notadamente otimista e distintivamente economicista”. E, de fato, como você observou mais cedo, a virada keynesiana dos democratas foi aquilo que os tornou, pela primeira vez, em um partido de esquerda. Como essa compreensão fundamental de que a economia poderia ser gerenciada cientificamente para garantir o pleno emprego se traduziu em algo a que você chama “a ética keynesiana” [the Keynesian ethic], e qual o papel do teórico econômico keynesiano dentro dos partidos reinventados de esquerda como resultado?
SLM
Então, no livro, eu tipifico especialistas que, de certa forma, sustentam esses diferentes tipos de políticas de esquerda ao longo dos três períodos. Os economistas são meio que o especialista típico que eu tento caracterizar como uma figura dominante quando chegamos nas décadas de 1950 e 1960. E uma das coisas que observo neles é que eles tinham um certo modo de pensar sobre a economia enquanto motor, algo que poderia superaquecer, ou que podemos pisar o freio — algo parecido com uma máquina que precisa de engenheiros ou mecânicos. Por outras palavras, as pessoas precisavam de gerenciamento de acordo com as prioridades do governo. Então, esse modo de pensar sobre a economia era realizado pela pessoa do teórico economista [the economist theorician].
O que ressalto sobre sua localização institucional é que, especialmente em contraste com os teóricos do partido, eles têm um pé na política — e não apenas no governo, mas especificamente nos partidos políticos — e o outro pé na academia. Por um lado, eles são acadêmicos e são reconhecidos como economistas científicos; por outro lado, eles também estão profundamente envolvidos no desenvolvimento programático e nas decisões políticas dos partidos social-democratas e da centro-esquerda e, por extensão, dos governos social-democratas e da centro-esquerda.
Então, a ética keynesiana se refere a uma forma de ver o papel de alguém no mundo político ou na vida política de um modo consistente com essa posição entre a academia e os partidos — a navegação dessa linha. Em outras palavras, a ética keynesiana é um modo de ver o papel profissional de alguém na vida pública como o trabalho de trazer aquilo que sabemos sobre a ciência da gestão econômica para a tomada de decisões políticas, mas não de um modo que amarre as mãos de governos ou políticos — e sim de um modo que lhes permita ponderar equilíbrios estratégicos [strategic trade-offs] e fazer compromissos de formas que ainda lhes possibilitem responder perante seus eleitorados.
DD
A adesão dos partidos de esquerda ao keynesianismo e a ascensão do papel do teórico economista constituíram um movimento para a direita e um afastamento do socialismo? E nesse caso, por que, dado que a Grande Depressão não foi tanto um falhanço do socialismo quanto do padrão-ouro?
SLM
Então, eu penso que que foi um afastamento do socialismo num sentido específico de ser uma rejeição da linguagem socialista e seus quadros de referência. Não vamos mais falar sobre capital e sobre o problema da propriedade, certo? Nossa linguagem política não vai ser formulada usando a linguagem de Marx ou da teoria socialista. A linguagem que vamos usar ao falarmos sobre a economia vai ser uma linguagem econômica keynesiana técnica.
E é por isso que foi caracterizada por algumas pessoas nessa época como o chamado fim da ideologia, em que seríamos socialistas marxistas. Embora Marx e autores posteriores o compreendessem como uma ciência, o marxismo foi caracterizado como ideologia, em oposição à economia keynesiana, que não seria ideologia.
Era algo técnico. Então, foi certamente um afastamento do socialismo nesse sentido específico. E isso gerou descontentamento. O mais famoso exemplo disso é, provavelmente, o Programa de Bad Godesberg, na Alemanha.
DD
De 1959.
SLM
Certo, exatamente. Que foi caracterizado por descontentes do partido na época como a substituição de uma ideologia por uma nova ideologia.
DD
Em vez dos objetivos socialistas, “tanta concorrência quanto possível. Tanto planejamento quanto necessário”.
SLM
Parte da insatisfação no momento da mudança para o keynesianismo é que já não se baseava tanto em um jeito comum de falar. Era um jeito elitista de falar. Era um jeito acadêmico de falar. Era um jeito técnico e exclusivo de falar. Dito isso — especialmente se compararmos com agora — o modo como, através de um governo social-democrata, ou nos Estados Unidos nos anos de John F. Kennedy, por exemplo, a linguagem da economia keynesiana técnica se torna parte de um discurso político geral e popular é realmente impressionante. Uma das coisas que ressalto sobre o teórico economista keynesiano é que, por ter que desempenhar esse duplo papel, ele era meio estrategista e orador público.
Eles não eram apenas economistas e não eram apenas decisores políticos. Por exemplo, Walter Heller e Karl Schiller, seu homólogo alemão, eram famosos por suas comunicações diretas com o público e também pela disposição de comunicar e trabalhar diretamente com a liderança do movimento sindical.
Então, para a resposta específica à sua pergunta, penso que certamente o movimento para o keynesianismo foi um afastamento do socialismo, especialmente naquele sentido específico de um tipo de raciocínio consciente “vamos rejeitar uma linguagem teórica e trocá-la por outra”. Mas isso também permitiu aos economistas e políticos nessa época fazerem coisas que não eram possíveis para as pessoas que, por exemplo, eram teóricos do partido, que estavam realmente ancoradas no partido.
Então, isso lhes deu uma certa latitude, uma certa liberdade para fazer coisas na base de argumentos científicos e técnicos em vez apenas de partidarismo ou apenas, sabe, porque eles quisessem agradar um eleitorado e não outro.
Do keynesianismo ao neoliberalismo
DD
É impressionante que a mesma coisa aconteça em todos os quatro países que você está observando, porque as condições em cada país são, de certa forma, muito específicas, como na Alemanha, onde o papel do economista-teórico é destruído sob o Terceiro Reich. E temos a ciência econômica que emerge da era nazista como essa disciplina altamente cientizada e separada em duas direções: de um lado, o keynesianismo; e do outro lado, o ordoliberalismo (primo alemão do neoliberalismo, colocando de forma simplista). O Partido Democrata Cristão, ou CDU, se integra com o ordoliberalismo e o SPD com o keynesianismo. Como é que, dado que existem condições tão diferentes, particularmente na Alemanha, mas realmente em todos os países, a mesma coisa está ocorrendo ao mesmo tempo?
SLM
Então, é aí que o meu argumento sobre a novidade da interdependência entre economia acadêmica e política partidária — não governos, não agências governamentais, mas organizações partidárias — realmente se torna importante. O meu argumento no livro é que, na base da condição de possibilidade para a existência do economista-teórico, está uma relação nova, organizacional e em rede entre o Partido Democrata nos Estados Unidos e a economia acadêmica. Vale lembrar, no caso europeu — se olharmos para os anos 1920 — essa relação é, quando muito, de oposição.
Existe um desenvolvimento institucional específico que é comum a todos os casos que eu abordo que é essa interconexão emergente entre os departamentos acadêmicos de economia e economistas acadêmicos e os partidos políticos de centro-esquerda, partidos social-democratas, partidos trabalhistas e o Partido Democrata dos EUA. Então, para mim, essa é mesmo a base institucional da emergência dessa figura muito semelhante.
Uma das coisas que faço no livro é comparar a forma como Karl Schiller caracteriza o papel do economista na política e na vida pública na Alemanha com a forma como Walter Heller, em um contexto institucional muito diferente, caracteriza o seu papel, e é curiosamente semelhante. Eles falam sobre como navegar na linha entre ciência e política e sobre a necessidade de fundamentar a tomada de decisões recentes, mas ainda permitindo aos políticos a liberdade de tomar decisões sobre equilíbrios estratégicos [strategic trade-offs].
Eles falam sobre as coisas de um modo muito semelhante, e meu argumento no livro é que isso reflete sua posição institucional semelhante, apesar do fato de que os países são muito diferentes, os partidos são muito diferentes e a história dos partidos é muito diferente. O fator comum subjacente a isso é essa relação em que, em vez de os partidos social-democratas produzirem seus intelectuais internamente, eles estão cada vez mais ligados à academia, às ciências sociais acadêmicas e, especificamente, à ciência econômica. Então, parte do que eu ressalto aí é que existe um desenvolvimento ao longo do tempo. Nos anos 1920, enquanto os partidos social-democratas estão se consolidando como partidos de poder que entram e saem do governo, eles também começam estabelecendo uma presença em campi universitários e começam estabelecendo clubes e formas de recrutamento de novas pessoas, jovens contingentes de liderança. E parte do que ocorre lá é que, como os departamentos de economia e as ciências sociais também estão se desenvolvendo, então, como eles tinham desenvolvido essa presença, eles também estão alcançando esses departamentos.
Com todo esse tipo de crises e instabilidade dos anos 1930, a geração mais jovem de economistas começa se preocupando com o problema do desemprego, com o problema da pobreza e coisas dessas, que não são realmente preocupações de seus mentores liberais clássicos. Então, o desenvolvimento desses laços é tal que os departamentos de economia produzem economistas que depois entram diretamente na liderança dos partidos políticos, tornando possível a esses tipos de figuras muito semelhantes se tornarem figuras dominantes nos seus respetivos partidos, apesar de outros tipos de diferenças institucionais.
DD
Você escreve que uma das razões para essa dinâmica ter sido internacional da forma que foi é que o keynesianismo se tornou a ideologia para gerenciar essa economia mundial recém concebida e constituída de economias nacionais. Era uma ideia nova na época, que surgiu após a II Guerra Mundial, em meio à descolonização e a ascensão da Guerra Fria.
Você escreve: “A era keynesiana foi significativa, em parte, porque uma profissão acadêmica criou metáforas orientadoras, instrumentos técnicos e atalhos terminológicos que ajudaram a organizar toda uma era da História Ocidental moderna. Nesse sentido, a ciência econômica do pós-guerra não era meramente uma tecnologia de governo ou um instrumento dos decisores políticos. Era constitutiva da vida política e das concepções sobre o que significava governar”.
Foi essa nova ordem mundial na época que tornou a primeira reinvenção da esquerda uma coisa internacional?
SLM
Sim. Então, aí o que eu estou falando é que, mesmo que possamos pensar na economia em termos trans-históricos, na verdade, o senso comum geral ou as compreensões ontológicas sobre o que é o “económico” mudaram dramaticamente ao longo do tempo e isso não é arbitrário ou aleatório. Basicamente, está ligado à organização do poder político.
E dessa forma, as ortodoxias liberais do período do padrão-ouro faziam sentido no contexto de um período de império colonial. Depois, com o declínio dos impérios coloniais, é apenas nesse mundo que começa a fazer sentido pensar nas economias como motores especificamente nacionais, como unidades especificamente nacionais. E o que vem junto com isso é a capacidade de caracterizar estatisticamente as economias nacionais. Então, era necessário ter coisas como contas nacionais, que apenas passaram a existir realmente no período de guerra. E também a capacidade técnica de descrever a economia de modo estatístico e descrever todas as economias do mundo como coisas nacionais em unidades estatísticas — isso só faz sentido em um contexto em que a forma política dominante é um Estado-nação. Por outras palavras, existe um argumento ontológico no livro em que a caracterização dos anos do padrão-ouro no mundo econômico em termos do capitalismo é uma coisa diferente da caracterização do mundo em termos de um conjunto de economias nacionais que são como motores que podem ser manipulados. E isso é muito diferente da coisa que emerge nas décadas de 1980 e 1990, em que o mundo econômico é concebido em termos de mercados que são crescentemente não territoriais, não tão conectados a nenhuma fronteira nacional em particular, mas sim essas coisas globais que existem por aí.
DD
E todo esse período vem sendo descrito como “o fim da ideologia”. E, com certeza, foi assim que foi pintado e retratado. Mas você escreve que isso foi apenas um reflexo do quão dominante a ideologia havia se tornado. E, de fato, após todos esses partidos fazerem sua virada neoliberal, foi o keynesianismo que foi taxado de ortodoxia ideológica rígida. E, subitamente, seus vínculos partidários se tornaram uma desvantagem.
Em retrospecto, por que o auge do keynesianismo, o auge do domínio do economista-teórico, acaba sendo um momento de tão grande vulnerabilidade?
SLM
Há essa constante tensão que fundamenta a história do livro, que está entre aquilo que é caracterizado como ideologia e aquilo que é caracterizado como ciência.
E ideologia, nesse enquadramento, por definição, não é ciência. Muitas vezes significa “partidária”. Está ligada aos interesses de um grupo específico ou de um movimento específico ou de um lado específico do muro político. Aquela flexibilidade que eu estava descrevendo — que o economista-teórico tinha em se colocar como economista científico e, logo, ser escutado como alguém que não estava falando apenas de um jeito partidário — era necessária para a sua existência, para sua capacidade de fazer o que fazia.
Era realmente importante: como referi anteriormente, quando comparo Schiller e Heller, em que ambos falam sobre quão importante é terem o apoio de uma profissão científica consensual, é o que torna isso possível. Mas depois se a gente olhar para sua posição real no mundo, o que a gente vê é que eles eram partidários. Estavam profundamente investidos no sucesso dos partidos políticos aos quais estavam ligados. Schiller eventualmente rompe com o SPD, mas, antes disso, eles são claramente atores partidários. No entanto, são capazes de agir como portadores de uma ciência econômica objetiva na vida pública.
Então, uma das histórias que eu tento contar é que — tanto no mundo político como no mundo acadêmico — havia descontentamentos. Tinha pessoas que não gostavam desse casamento da economia keynesiana, especificamente, com os partidos e governos da centro-esquerda — pessoas que entendiam isso como uma diluição ou uma ameaça para a posição científica da profissão como busca da descoberta de verdades econômicas e científicas sobre o mundo. Então existe uma oposição que se desenvolve.
Agora vou falar mais especificamente sobre o caso estadunidense, que se desenvolve entre os economistas keynesianos que estão fazendo esse tipo de movimento entre política e governo, especificamente governos democratas e política no Partido Democrata, e a academia. Existe uma oposição entre isso e economistas que são estritamente acadêmicos — e aqui a história da Escola de Chicago e de pessoas como Milton Friedman é realmente importante — que veem isso como um tipo de economia socialista disfarçada. Então, existe um casamento de que eu tenho falado, ou interdependência, entre a ciência econômica keynesiana e a política partidária.
Isso cria esse tipo de fraturas na ciência econômica e, depois, também na política (e isso é muito claro, por exemplo, na forma como Margaret Thatcher lida com as coisas quando entra no governo), em que o keynesianismo é reconhecido pela direita política como uma ciência econômica da esquerda. Então, Thatcher chega e expurga o governo de economistas keynesianos que tinham sido trazidos em anos anteriores, especialmente pelos governos de Harold Wilson.
DD
E por causa dessa interdependência que foi estabelecida pelos keynesianos entre ciência econômica e partidos de esquerda, ironicamente, essa mesma interdependência prepara o terreno para que o neoliberalismo transforme tanto a ciência econômica como os partidos de esquerda.
SLM
Certo. Torna isso possível. Então, uma das formas de explicar isso é que, nas décadas de 1910 ou 1920, não importava para os partidos da esquerda o que estivesse ocorrendo na ciência econômica.
Os dois mundos não estavam ligados de nenhuma forma significativa. Mas, quando se alcança essa interdependência, então o que está acontecendo na ciência econômica começa a ser muito importante. Por causa desse fato de interdependência, temos na academia estadunidense, em vez daquela profissão científica consensual que Heller descreve, uma profissão fraturada em que, especialmente sob a influência da Escola de Chicago, temos um novo tipo de economia científica dominante que acaba, especificamente, rotulando os economistas keynesianos como Heller de economistas não científicos.
Depois é criada uma dinâmica que não muda apenas a política de direita — e sabemos que Friedman foi conselheiro de Nixon e tudo isso — mas muda também toda a infraestrutura da política de esquerda, dos partidos de esquerda, em que, quando você fosse indicar os economistas para seu Conselho Econômico [Council of Economic Advisers] ou o que quer que fosse, você indicaria aqueles com mais credenciais intelectuais e com o maior prestígio acadêmico. Eles precisavam ter reconhecimento acadêmico.
Então, se a economia keynesiana se torna rotulada como uma versão não acadêmica ou não científica da economia que está simplesmente ultrapassada — existe em seu lugar essa nova economia centrada na ciência dos mercados —, logo você vai ter economistas em governos de esquerda, tal como tínhamos economistas em governos de esquerda nas décadas de 1950 e 1960, mas que vão ver o mundo de um modo muito diferente.
DD
Você escreve que a “ética neoliberal” [neoliberal ethic] foi, no mínimo, tão importante como a ciência econômica neoliberal. O que era essa ética neoliberal e por que o desafio ético colocado pelos neoliberais se revelou tão prejudicial para a posição do keynesianismo e para a posição e papel de um tipo muito específico de economista keynesiano que você chamou de “economista-teórico”?
SLM
Então, tal como a “ética keynesiana”, a razão por que eu uso “ética” para me referir ao período neoliberal é que, de novo, estou falando sobre as compreensões dos especialistas do partido — e nesse momento, especificamente dos economistas — sobre qual é o seu papel na vida pública. Então, da mesma forma que para um economista keynesiano a economia é concebida como essa coisa nacional que pode e deve ser manipulada e conduzida, se quiser, de um modo que permita aos partidos de esquerda governar de acordo com suas prioridades, a imaginação neoliberal do mercado é que ele é essa coisa aí fora que opera de acordo com suas próprias leis naturais, certo? Portanto, é como o sol. É essa coisa aí fora e você não a manipula nem consegue manipular. E se você tentar manipular, provavelmente vai sair pela culatra. Esse é um modo muito diferente de pensar sobre o mundo econômico. E a decorrência disso é que o trabalho do economista na vida pública é deixar espaço para que os mercados operem livremente.
Então, em vez de seu trabalho ser, bom, “nós fundamentamos a tomada de decisões políticas com uma boa análise econômica científica e fornecemos equilíbrios estratégicos [trade-offs]”, seu trabalho é apenas impedir que a política e as políticas públicas interfiram no funcionamento do mercado, porque essa é a única coisa que vai produzir os melhores resultados econômicos.
Essa é uma concepção muito diferente do papel de alguém na vida pública e, por isso, eu a chamo a de uma “ética neoliberal”, porque meu argumento aqui não é que isso ocorra por causa das políticas que eles abraçam nem do que eles realmente fazem. Isso é meio que uma distorção. Só funciona se estivermos dispostos a ignorar o que eles realmente dizem sobre si mesmos. E deixa de lado uma pergunta realmente importante que é: como podemos ter pessoas que se entendem a si mesmas, no caso estadunidense, como atuando nessa tradição de liberalismo neutro ou, no caso sueco, atores políticos social-democratas que explicitamente se opõem à lógica do neoliberalismo — que está especialmente associado aos governos de Thatcher e Reagan — e que, no entanto, promovem políticas que se resumem em liberar o capital internacional e em sacrificar os salários com o objetivo de aumentar os lucros e todas essas coisas que são plenamente consistentes com a compreensão neoliberal do mundo? Como é que a gente explica isso?
Portanto, meu argumento sobre esses novos tipos de economistas é que muitos deles são social-democratas no contexto europeu ou economistas trabalhistas no contexto britânico ou se entendem como economistas de tendência liberal no contexto estadunidense. Mas eles olham o mundo econômico em termos desses mercados desterritorializados. E a melhor coisa que eles podem fazer na vida pública é libertar aqueles mercados e fazer com que outras políticas fiquem em conformidade com as demandas do mercado.
Então, eles entendem que seu papel na vida está se tornando um papel limitador. Seu trabalho é limitar a interferência da política no funcionamento dos mercados. E por isso, a ética neoliberal descreve seu modo de ver o mundo e o modo como isso se traduz em uma certa compreensão do seu papel profissional na vida pública, que é diferente de chamá-los de neoliberais, que tem esse problema de distorcer ou ignorar aquilo que eles dizem sobre si mesmos.
DD
Você tem razão que existe “uma tendência para apresentar o que deveria ser um quebra-cabeça, nomeadamente, por que as pessoas que se opõem ao neoliberalismo ou que nunca ouviram falar dele podem, mesmo assim, agir no mundo de formas que estão em conformidade com o pensamento neoliberal como um fato. Os defensores da Terceira Via são neoliberais, mesmo que digam que não são”.
SLM
Então, isso aí se fundamenta em certos compromissos epistemológicos relacionados com a convicção de que deveríamos considerar os relatos na primeira pessoa, os relatos dos próprios agentes sobre suas motivações e como eles veem as coisas e por que eles fizeram essas coisas, não necessariamente como verdade objetiva, mas como a verdade deles – o que acho que é questionável no contexto do discurso político, porque o discurso político é algo distinto. Mas eu penso que, para uma questão como essa (uma questão que é tão difícil porque o problema do neoliberalismo está misturado com todo tipo de política, com posições políticas, de modos totalmente inseparáveis), se a academia que está fazendo análises da vida pública ou da vida política ou do neoliberalismo não levar em conta os relatos na primeira pessoa dos agentes, o que acaba fazendo é se engajar naquilo que o sociólogo Pierre Bourdieu caracteriza como “a lógica do julgamento” [“logique du procès”]. Acaba participando nesse jogo político de culpar em vez de explicar.
Então, quando falo no livro sobre figuras como Larry Summers, o que eu estou tentando fazer é situá-lo e a pessoas como ele, de sua geração e com algumas posições institucionais semelhantes, situá-las no tempo e no espaço e perguntar: o que é que, no modo como eles viam o mundo ou sua experiência com o mundo, fez isso ter sentido para eles de uma forma que pudessem dizer: “eu sou progressista ou sou um democrata ou sou um social-democrata e também acho que deveríamos liberalizar os mercados porque isso é a única coisa que podemos fazer”?
DD
O contexto decisivo para essa viragem são as crises dos anos 1970, em particular a estagflação, que combinou alto desemprego e alta inflação e assim aparentemente — especialmente se ignorarmos o papel do choque do petróleo na coisa toda — desafiou as regras do keynesianismo. Mas você escreve: “O colapso do keynesianismo não se apresentou simplesmente como a consequência auto-evidente das dificuldades da inflação. Emergiu de uma série de lutas interpretativas no contexto da interdependência entre a ciência econômica e os partidos de esquerda.”
O que foi a crise da estagflação e como os neoliberais, até então marginalizados, junto com outros opositores do keynesianismo (porque você realça que nem todos os opositores do keynesianismo eram neoliberais), venceram essas lutas inter-relacionadas sobre a interpretação da crise?
SLM
Sim, então a história da estagflação é realmente interessante. É um termo que, na verdade, emerge nos anos 1960 no contexto britânico, como um modo de caracterizar um momento econômico que simplesmente não fazia sentido de acordo com a lógica keynesiana. Era um momento econômico em que se atingiam taxas crescentes de inflação e, ao mesmo tempo, taxas crescentes de desemprego. E a lógica keynesiana era que, se você tivesse uma coisa, não poderia ter outra. Isso era meio que entendido como a lógica de como o mundo econômico funcionava. E nos anos 1960, antes dos choques do petróleo, muito do debate sobre estagflação tem a ver com o envolvimento excessivo de economistas keynesianos no governo — no caso britânico, especialmente em governos trabalhistas — e também tem a ver, especialmente no caso estadunidense, com muito do debate sobre o que eles chamavam de “inflação salarial” [wage push inflation]. Basicamente, o movimento sindical seria demasiado poderoso — os trabalhadores seriam demasiado poderosos e estariam empurrando os salários demasiado para cima.
Então, na década de 1970, isso assume um tom muito diferente, porque temos os choques do petróleo. E o que isso faz é aumentar os preços, e temos um novo período do que foi chamado de estagflação, caracterizado por esse duplo problema de taxas de inflação crescentes e taxas de desemprego crescentes. E então, se você olhar para os debates que estão acontecendo na ciência econômica nessa época, especialmente na ciência econômica estadunidense, é realmente interessante, porque se caracteriza por certos economistas acadêmicos falando: “Bom, o que isso significa é que o keynesianismo sempre esteve errado. Sempre foi uma ciência defeituosa.” Isso significa que se você, enquanto economista, fizer as coisas de uma forma keynesiana, se você permanecer nesse modo de pensar, você não é mais um economista científico. Então, em outras palavras, em vez de isso ser lido, como foi em muitos círculos políticos, como um problema relacionado — no caso estadunidense — com a dependência do petróleo no Oriente Médio ou o problema geral das dependências energéticas, na ciência econômica foi lido como uma razão para descartar a ciência econômica keynesiana e, especialmente, essa ideia de um equilíbrio [trade-off] e certos entendimentos do papel das expectativas.
O que você tem, então, é um descrédito dos economistas keynesianos na vida pública — não apenas pela direita política, mas também pelos economistas acadêmicos, que não eram todos seguidores de Milton Friedman, que não eram todos economistas aliados a partidos de direita ou a agentes políticos da direita. Também havia economistas que se entendiam como democratas progressistas. Então, não é que a estagflação simplesmente meio que entre na sala e todo mundo diga: “Claramente, o keynesianismo está errado. E vamos ter que colocar Paul Volcker na Reserva Federal e deixar que ele suba as taxas de juros.” Não foi de maneira alguma tão suave ou óbvio.
Houve debates interpretativos sobre o que isso significava. Tinha pessoas no governo Jimmy Carter, como o secretário do Trabalho e outras pessoas, que estavam dizendo: “Veja, isso é um problema energético. Tem a ver com o problema da dependência do petróleo. E é aí que está o problema. Sabemos por que os preços estão subindo.” E a resposta a isso, inclusive nos anos Nixon, foi o controle de salários e preços. Mas no governo Carter, Teve figuras que reclamaram sobre isso nas suas entrevistas pós-governo, que disseram: “Nós meio que fizemos alguns controles de salários e preços, só que eles não eram obrigatórios. Não os exigimos. Simplesmente, dizíamos: ‘Isso seria bom.’ E depois nunca demos suporte.”
Então, eles não aplicaram as soluções keynesianas que mesmo Nixon aplicou. Carter aceita o diagnóstico de que o problema é para ser resolvido basicamente indicando Volcker para a Reserva Federal. Meu argumento é que a estagflação não era simplesmente essa coisa auto-evidente. Era uma matéria de disputa interpretativa. E havia a interpretação dos economistas (ou de alguns economistas) de que era um fracasso da economia keynesiana e da ciência econômica keynesiana. Mas havia outras interpretações concorrentes que não tinham nada a ver com isso, de que era obviamente sobre o preço do petróleo. Então, a forma como isso é interpretado como uma razão para reconfigurar a ciência econômica e reformular as ortodoxias da economia acadêmica é uma coisa histórica e contingente que, pelas razões de que falamos, tem consequências inacreditáveis para as formas dominantes do pensamento econômico nos círculos de esquerda e centro-esquerda.
DD
Algo importante aqui é que eu acho que temos uma tendência para pensar em políticos de esquerda neoliberalizados como Clinton e Tony Blair como tendo seguido os governos neoliberais de direita como Thatcher e Reagan, que meio que inventam a governança neoliberal, e depois os democratas neoliberalizados a ratificam, tornando-a hegemônica. Mas a subida das taxas de juro por Carter, quando ele coloca Volcker no comando da Reserva Federal, que empobreceu tanto os trabalhadores estadunidenses, obviamente precedeu Reagan e ajudou a garantir que Carter perderia para Reagan. E no caso do Reino Unido, o líder trabalhista James Callaghan acabou alienando os trabalhadores sindicalizados e repudiando as teorias econômicas de seu próprio partido antes da ascensão de Thatcher ao poder. Então, você não chama pessoas como Bill Clinton ou Tony Blair de “neoliberais”, mas sim de políticos de esquerda mais neoliberalizados. Por que essa distinção é importante, dado que “neoliberal” veio a significar, em termos coloquiais, precisamente figuras como Clinton e Blair? O que entendê-los como portadores da ética neoliberal revela que é ocultado quando os chamamos apenas de neoliberais?
SLM
Para mim, a diferença está em saber se o seu objetivo é se envolver com a política da Terceira Via. Isto é, a Terceira Via, tanto na versão de Clinton como na versão de Blair e suas várias outras versões em outros lugares, todas suscitaram em círculos trabalhistas, social-democratas ou — no contexto estadunidense — liberais a questão sobre se isso era um rompimento ou uma traição.
E você também vê isso na literatura acadêmica, essa questão da traição de princípios ou da História ou do eleitorado. E essas questões são importantes, mas para mim são diferentes da questão explicativa histórica do que estava acontecendo e por quê. Então, em outras palavras, por um lado precisamos reconhecer que a Terceira Via adotou posições e políticas que possuíam um sabor neoliberal — que falavam em termos do mercado e que falavam sobre o mercado como uma força dominante que não poderia ser gerenciada nem manipulada. Por vezes, eles falavam sobre o mercado e, por vezes, falavam sobre a globalização como uma força que se sobrepunha a nós e que exigia adaptação. Deve-se perguntar por que eles adotaram esse tipo de posições ao mesmo tempo que também expressavam suas próprias posições anti-neoliberais ou anti-neoconservadoras.
Então, isso não é a mesma coisa que Thatcher anunciando que Hayek tinha definido a nova filosofia do conservadorismo ou Reagan dando lugar de destaque e a Medalha Presidencial da Liberdade para Milton Friedman. É diferente. O que ocorre no lado da centro-esquerda ou da Terceira Via é uma adoção de algumas das posições que hoje reconheceríamos como neoliberais e pró-mercado, mas também uma insistência de que eles estão atuando na tradição de seus partidos e nas tradições da centro-esquerda em seus vários países.
A razão pela qual eu acho importante a distinção entre chamar alguém de neoliberal versus falar sobre políticas neoliberalizadas é que eu acho que, se queremos explicar isso e entender por que aconteceu, então não podemos apenas substituir a complexidade da política real subjacente, incluindo a complexidade das perspectivas das pessoas de que estamos falando, por um rótulo.
Em outras palavras, penso que é perfeitamente justo chamar Reagan e Thatcher de políticos neoliberais por boas razões históricas. Mas eu não acho que a mesma lógica se aplique para figuras como Blair e Clinton. E para mim, se quisermos entender isto historicamente, de uma forma que possa nos ajudar a avançar, então precisamos abordar a questão explicativa. Precisamos reconhecer as diferenças e entender essa distinção entre o que figuras de topo associadas com a Terceira Via disseram sobre si mesmas e o que elas realmente fizeram. Precisamos entender como é que fez sentido para elas, em outras palavras, que elas pudessem dizer — tanto quanto eu ou qualquer outra pessoa de fora saiba, com sinceridade — que você poderia ser um social-democrata ou um político trabalhista, ou Clinton poderia meio que se movimentar entre chamar a si mesmo de “liberal” e de “progressista”, e também adotar políticas pró-mercado que claramente não funcionavam no interesse de muitos de seus eleitorados tradicionais. Mesmo que eles dissessem e achassem que estavam fazendo algo consistente e coerente.
A transformação do partido Democrata dos EUA
DD
Seu livro é sobre quatro partidos em quatro países, mas quero me aprofundar um pouco mais sobre o neoliberalismo de nossos próprios democratas. Os democratas neoliberais, também chamados de “os Novos Democratas” [The New Democrats], estavam organizados em um grupo chamado Conselho de Liderança Democrata [Democratic Leadership Council] (DLC), e ascenderam ao poder junto com Bill Clinton. Você escreve que eles aprenderam lições com a experiência de Carter, certamente não as lições que eu teria aprendido. O que eles determinaram ser o problema dos democratas? E por que acreditavam que a solução estava nessa base eleitoral que chamavam de “the mainstream” [a corrente dominante]?
SLM
Uma das coisas que eu faço para tentar traçar um caminho através dessa trajetória é olhar especialmente para uma das figuras fundadoras do DLC, Al From.
O DLC foi estabelecido em 1985. Al From estava há algum tempo no mundo de assessores e conselheiros democratas no Congresso e ligado a várias Agências Federais. Um desses envolvimentos tinha sido trabalhar com a inflação nos anos Carter, e From conta sua própria história em várias ocasiões. Ele conta a história da experiência com a inflação. E algumas coisas sobre isso se destacam para mim.
Uma dessas coisas é que ele via a inflação e a incapacidade dos democratas em lidar com o problema como um motivo central para o declínio do apoio da classe média ou do mainstream ao Partido Democrata. Basicamente, era um fracasso. E a outra coisa que vemos nos relatos dele e de outras pessoas no seu entorno é a frustração com a incapacidade dos economistas na Casa Branca de Carter em lidar com o problema. E essa é uma frustração que não vemos apenas vindo de Al From, mas também de outras pessoas na Casa Branca de Carter.
Pessoas como Stuart Eizenstat, o secretário do Trabalho de Carter, Ray Marshall, e o próprio Carter estavam falando: “Bom, nós fomos conversar com os economistas para perguntar sobre o que fazer acerca dos problemas macroeconômicos.” E Carter diz: “Você pergunta para cinco economistas e eles dão cinco respostas diferentes.” Então, o que eles estão referindo é que existe uma tensão dentro da ciência econômica que eu descrevi como uma importante transição.
Uma das coisas que está ocorrendo aí, e conseguimos ver essa trajetória, é um descontentamento com os economistas, um afastamento deles em uma nova busca por formas de pensar ou formas de desenvolver posições políticas ou definir estratégias sobre soluções políticas que tanto fossem eficazes como politicamente sensíveis (em outras palavras, sensíveis às preocupações estratégicas do Partido Democrata). Conseguimos ver isso em Al From, meio que traçando sua trajetória desde a Casa Branca de Carter, de volta ao trabalho como assessor parlamentar e estrategista democrata, e depois rumo à criação do DLC, que então se torna uma base para a ascensão de Clinton à presidência.
A outra coisa que está acontecendo, a outra coisa a que eles estão reagindo, é a ascensão do que, por vezes, é chamado de “Nova Política” [New Politics], o liberalismo sob a tenda do Partido Democrata. E com isso o que quero dizer é que, depois de 1968 e dos anos 1970, surgiram vários tipos do que era percepcionado pelas pessoas envolvidas na criação do DLC como grupos de interesse divisivos que representavam os interesses de pessoas específicas, especialmente mulheres e grupos étnico-raciais não brancos. Então, existem esses novos grupos que eram representativos do que era chamado em círculos democratas de “Nova Política”, grupos que também eram vistos como movendo o partido em uma direção que seria prejudicial para a capacidade do partido de atrair o que era caracterizado como o eleitor mainstream ou da classe média.
Devo observar que existe obviamente um aspecto racial nisso. Se olharmos para os relatos das pessoas que estavam envolvidas na criação do DLC naquele momento, quando falam sobre o eleitor mainstream, a figura que invariavelmente é elevada a modelo ou personificação disso é um homem branco da classe trabalhadora: o mesmo eleitorado, em outras palavras, que se tornou tão proeminente na sequência da eleição presidencial de 2016.
Existem muitas coisas que estão alimentando isso. Parte do que está acontecendo (além da preocupação com o aconselhamento político insensível ou inútil dos economistas) também é o que descrevo e que outras pessoas descreveram como luta intra-partidária, em que figuras como Al From e pessoas no seu entorno estão preocupadas com a trajetória do Partido Democrata, que está se tornando demasiadamente impulsionado pela política do que eles caracterizam como a franja da sociedade. E devo observar aqui que, é claro, se a franja é todo mundo menos um trabalhador homem e branco, então estamos falando de muita gente.
DD
Todas essas particularidades divisivas, em vez do sujeito universal do americano branco da classe média.
SLM
Certo. E então o que isso significa é um esforço, em certo momento nos anos 1980, para tentar atuar através do Diretório Nacional do Partido Democrata [Democratic National Committee] (DNC). Eles tentam atuar através da estrutura principal do partido em nível nacional e depois ficam ficam frustrados com isso. Então, o que eles fizeram foi criar o Conselho de Liderança Democrata [Democratic Leadership Council], o DLC, e estavam falando sério. Eles queriam explicitamente ser uma organização concorrente com o DNC. E um dos projetos que eles buscam no início da década de 1980, nos anos Reagan, é a transição de poder dentro do partido, especialmente retirar poder de nomeação [para candidatos em primárias] dos “ideólogos e grupos de interesse” e entregá-lo de volta para o que eles chamam “os eleitos”. Ou seja, os democratas que exercem mandato.
DD
Superdelegados.
SLM
Exatamente. Então, essa é a criação dos superdelegados. E a ideia — um tanto contra-intuitivamente, poderíamos dizer — é que o modo de trazer o Partido Democrata de volta para uma postura mais representativa seria retirar o poder e o processo de nomeação de qualquer um que não fosse já um democrata eleito do establishment [sistema].
DD
Uma coisa que eu acho confusa é o papel dos liberais da Nova Política nessa história, porque primeiro, começando no fim dos anos 1960, temos defensores da Nova Esquerda e da Nova Política que minam o poder do sistema liberal do New Deal, que incluía entidades como a AFL-CIO [Central Sindical que atua nos EUA e no Canadá]. Depois, os maiores impulsionadores da virada neoliberal incluem alguns veteranos da Nova Política como Bill Clinton. Mas isso também incorpora, como você mencionou, esse tipo de reação neo-conservadora à Nova Política e uma reação neoliberal contra o keynesianismo no movimento sindical. Como essas forças realmente díspares se uniram para neoliberalizar o Partido Democrata?
SLM
Torna-se uma história realmente difícil de contar, de certa forma, porque o que está realmente acontecendo durante a década de 1970 e durante os anos Reagan é essa disputa de poder intensa dentro do Partido Democrata e dentro das redes democratas e não está claro quais serão os alinhamentos.
Então, uma das coisas que eu realço na história da criação do DLC é que ele tem uma estrutura organizativa e um conjunto de dependências financeiras muito diferentes relativamente ao antecessor mais próximo que identifico no livro, um tipo de contraponto comparativo: a ADA, Americanos pela Ação Democrata [Americans for Democratic Action].
O DLC, uma vez criado, não é claramente anti-sindical, mas agrupa os influenciadores sindicais ou políticos democratas que representam interesses sindicais como parte do problema da Nova Política, como mais um grupo de interesses.”
E nessa comparação, uma das coisas que noto é que a ADA tem muito apoio sindical, pelo menos inicialmente. Está fortemente dependente de financiamento sindical. Mas o DLC se distingue na época por ter muito apoio de doadores financeiros de Wall Street. E então, uma das coisas que eu acho que está acontecendo aí é que o DLC, uma vez criado, não é claramente anti-sindical, mas agrupa os influenciadores sindicais ou políticos democratas que representam interesses sindicais como parte do problema da Nova Política, como mais um grupo de interesses ou interessados.
DD
O que é irônico, dado o que George Meany achava de George McGovern, certo?
SLM
Sim. Tem todos os tipos de voltas e reviravoltas; quando você olha para isso historicamente, teria sido difícil prever como isso se desenrolaria se você estivesse lá. Então, eu penso que o que ocorre ali é que basicamente o DLC não está dependente dos sindicatos. E, de fato, está dependente de um grupo muito diferente de doadores que também se entendem como democratas e progressistas, mas em oposição aos “velhos liberais” — por vezes, a separação entre os grupos da Nova Política e o velho liberalismo pró-sindical se torna uma coisa relevante na perspectiva de, pelo menos, alguns dos financiadores do DLC.
E então, existe meio que essa progressão em que os sindicatos, a AFL-CIO, estão envolvidos. Por exemplo, estão envolvidos na Comissão Hunt. Essa é a comissão que está responsável pela criação dos superdelegados. Estão envolvidos, mas são marginalizados. São deixados de lado. O resultado que eles obtêm disso não é o que desejam. Depois, conseguimos ver na trajetória do DLC como ele vai assumindo uma postura cada vez mais contrária à política democrata pró-sindical. Por outras palavras, sendo eles os novos democratas por definição, estavam se contrastando com os velhos democratas, que eram democratas pró-sindicatos do New Deal e democratas da Nova Política.
DD
Se Al From e o resto do DLC estavam tão preocupados com a estratégia política, se uma falta de estratégia política é a lição que eles tiraram do governo Carter, por que eles não consideraram a possibilidade de que o choque de Volcker empurrara as pessoas da classe trabalhadora para os braços de Reagan e não tiraram algumas lições disso?
SLM
Não acho que eles falem muito sobre Volcker e a questão da política da Reserva Federal. Acho que foi meio que um fato consumado. E de novo, voltando para nosso diálogo anterior, é claro, Volcker foi nomeado por Carter e era um economista alinhado ao Partido Democrata na tradição de muita gente antes dele. Então, eu penso que era dado como adquirido que isso tinha que ser feito, que era apenas o remédio que o povo estadunidense tinha que tomar. E acho que isso nos traz de volta para esse novo consenso neoliberal e centrado no mercado de que os mercados não poderiam ser governados, de que as economias não poderiam mais ser governadas do modo como eram governadas durante os anos 1960. Não acho que eles colocassem isso em questão. Como observo no livro, Carter sabia o que Volcker iria fazer, sabia que isso não iria ser bom para ele, e tinha pessoas no seu governo que pensavam que era uma má ideia e que depois continuaram acreditando que era uma má ideia.
Mas ele fez isso de todo modo e eu penso que, de certa forma, é sintomático do meu argumento de que a facção que liderava o Partido Democrata e a ciência econômica profissional eram profundamente interdependentes. Então, o entendimento convencional ou ortodoxo da economia que tinha emergido na ciência econômica ou estava se tornando dominante nos anos 1980 foi dado como adquirido nos círculos democratas. E então, a pergunta é: após colocar esse trem em movimento, como você responde às demandas de seu eleitorado?
Talvez parte do que está acontecendo aí seja que, embora Clinton falasse em uma linguagem da ciência econômica o tempo todo em seu famoso jeito wonky [de um nerd], se olharmos para sua campanha, uma das coisas que podemos notar, em comparação com a campanha de JFK [John F. Kennedy], por exemplo, é que os economistas credenciados não eram, nem de perto, tão importantes ou tão influentes em sua campanha como eram outros tipos de figuras. Um dos tipos de figuras que se torna influente nos anos Clinton e na campanha de Clinton é algo que tinha estado em andamento por algum tempo, que é a ascensão de conselheiros estratégicos — conselheiros que estavam fazendo pesquisas e grupos focais.
DD
Pessoas como James Carville, que disse de forma célebre: It’s the economy, stupid. [É a economia, estúpido.]
SLM
Certo, exatamente. Então, a linguagem econômica de Clinton muitas vezes vinha de pessoas que, na verdade, não eram economistas, o que é notável, em contraste, por exemplo, com a linguagem econômica de JFK, que é, em grande parte, uma linguagem que ele aprendera diretamente com economistas keynesianos. Acho que isso é sintomático desse rompimento e desilusão com os economistas e com a ciência econômica que está enraizado nos anos Carter. Mesmo quando temos o DLC nos anos Clinton, temos muita linguagem mencionando os economistas e a economia, mas, na verdade, se olharmos para as redes partidárias, os economistas não são, nem de perto, tão proeminentes e influentes como são em anos anteriores. Sua jurisdição meio que se restringe. Então, eles podem falar sobre o que fazer, por exemplo, com a política de taxas de juros e sobre matérias relacionadas com os mercados internacionais e coisas dessas, mas seus múltiplos papéis que descrevi na era do economista-teórico keynesiano — as figuras que carregam a ética keynesiana, em que eles são estrategistas e redatores de discursos e conselheiros económicos — ficam circunscritos.
DD
E que tinham se instalado sob Franklin D. Roosevelt e permanecido meio que institucionalmente intactos mesmo durante os anos Eisenhower, através de grupos como Americans for Democratic Action. E então, seguem no centro da política e da formulação de políticas públicas para JFK e Lyndon B. Johnson.
SLM
Certo. Então uma das coisas que realço no livro é que, na verdade, isso confere um certo sabor keynesiano até mesmo para o governo Eisenhower, mesmo sendo um governo republicano. Eu acho que o argumento quando chegamos nos anos da Terceira Via não é tanto que os economistas já não tenham mais influência, é apenas que seu papel foi circunscrito e transformado.
E isso teve uma conexão direta com o fato de que economistas proeminentes olhavam o mundo de forma muito diferente e não poderiam mais oferecer o tipo de aconselhamento econômico que pudesse ser conciliado com demandas políticas estratégicas. Há um argumento no livro de que existe uma afinidade ou uma relação funcional entre, por um lado, economistas que são conselheiros em redes democratas ou em redes dos partidos de centro-esquerda, que veem o mundo em termos de mercados e que acreditam em realizar intervenções e processos de formulação de políticas públicas unicamente para garantir políticas que sejam amigáveis ao mercado, e, por outro lado, a ascensão do que vem a ser referido nos anos 1990 como “spin”, a ascensão de especialistas políticos que se preocupam unicamente em retorcer [spinning] mensagens impopulares de modo a ganhar eleições. Uma coisa meio que precisava da outra.
DD
Como um obcecado em estudos sobre os anos 90, um dos argumentos que você faz que eu acho realmente interessante é que a eleição de Clinton em 1992 foi, obviamente, uma grande vitória para o DLC. Clinton tinha sido o líder do DLC, mas esse não foi o único momento decisivo para a neoliberalização do partido. Foi realmente importante a Revolução Republicana de 1994, quando os republicanos com Newt Gingrich retomaram a Câmara dos Deputados pela primeira vez em quarenta anos.
SLM
Sim, penso que isso é algo que, às vezes, as pessoas não percebem, especialmente por causa dos anos Reagan. Todo mundo acha que, quando Reagan chegou ao poder, isso foi meio que o fim para os democratas. Mas, na verdade, eles dominavam a Câmara até aos anos Clinton. Clinton permaneceu relativamente popular, exceto que a participação eleitoral estava caindo. E o poder democrata no Congresso também estava afundando.
DD
Foi uma conjuntura enorme nessa briga de facções dentro do Partido Democrata. O DLC disse que os republicanos tinham vencido porque Clinton e os democratas eram demasiado liberais [demasiado à esquerda]. Os liberais, por contraste, disseram que foi por causa do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte [North American Free Trade Agreement] (NAFTA), que, como você observa, foi vendido para Clinton não por economistas, mas por conselheiros sem experiência em economia. E os liberais argumentaram que isso tinha alienado os trabalhadores sindicalizados e os eleitores da classe trabalhadora. Qual era o equilíbrio de poder dento do partido no começo do governo Clinton? Porque eu acho que tendemos a pensar nisso como tendo uma conclusão neoliberal inevitável. Mas qual era o equilíbrio de poder nesse momento, e como a facção neoliberalizada prevaleceu tão decisivamente após 1994?
SLM
A minha abordagem sobre isso é que o equilíbrio de poder no Congresso ainda estava, essencialmente, não do lado dos Novos Democratas, mas sim do lado dos liberais e velhos liberais pró-sindicatos do New Deal.
DD
E os democratas na Câmara, em particular, eram vistos como uma espécie de porta-bandeiras da facção liberal.
SLM
Certo. Clinton é lembrado hoje como um porta-bandeira da Terceira Via estadunidense. Mas seu atrativo, se olharmos para a forma como ele foi recrutado pelo DLC, existe porque ele é entendido como uma das novas figuras principais da Nova Política. Isso ainda é chamado de liberalismo naquele momento. E um dos atrativos de Clinton, em particular, era que eles pensavam que ele conseguiria atrair tanto os velhos liberais como os Novos Democratas, ou as pessoas que os Novos Democratas queriam atrair. Mas ele também conseguiria meio que conciliar isso com os velhos liberais no governo Clinton.
DD
E todo o tipo de fascínio nostálgico dos hippies da geração baby boomer com Bill Clinton, o cara legal que tocava saxofone, do qual me lembro quando era criança.
SLM
Eu caracterizaria isso nos primeiros anos de governo, antes da chegada de Gingrich, como um governo que, em certo sentido, tinha se tornado uma base de poder para os Novos Democratas no DLC, mas mesmo dentro do governo ainda tinha muitas pessoas que se entendiam como liberais do New Deal clássicos, atuando na senda de FDR [Franklin D. Roosevelt]. E então, havia tensões dentro da Casa Branca de Clinton entre aqueles dois tipos de grupos. Essas tensões se expressavam, especialmente, em divergências acerca de questões do que fazer com relação a equilibrar o orçamento e quão importante seria reduzir o déficit versus financiar vários programas sociais.
E então, no Congresso, especialmente na Câmara, as forças democratas dominantes ainda eram o que o DLC teria considerado velhos liberais, que eram profundamente keynesianos em seus argumentos e entendimentos sobre déficit e gasto público. Então, quando Clinton entra na Casa Branca e traz esse novo governo, existe uma ruptura entre os Novos Democratas e os velhos liberais. No início, parece que os Novos Democratas estão meio que preocupados que talvez os velhos liberais ainda tenham vencido, que eles venham a prevalecer em sua influência sobre Clinton.
Então, há uma série de disputas políticas que começa com o déficit, e depois existe a questão da NAFTA, que foi disputada dentro da Casa Branca por essas duas facções, em que havia pessoas como Robert Reich, que defendia uma menor preocupação em equilibrar o orçamento e cortar o déficit e, em vez disso, fazer coisas para ajudar os trabalhadores, versus pessoas como Larry Summers, que era mais um falcão do déficit.
E então, a história que eu conto é que, na verdade, de certa forma, quando Gingrich chega na Câmara com uma clara maioria republicana, na perspectiva dos Novos Democratas na Casa Branca isso pode ser aproveitado para derrotar decisivamente os velhos liberais. É uma forma de reforçar sua posição. Então, conto a história de como isso se desenrola e, antes de mais, como a redução do déficit e o equilíbrio fiscal prevalecem sobre coisas como investimentos massivos em infraestrutura e políticas pró-emprego dessa natureza.
E depois sobre a NAFTA, inicialmente, a forma como Clinton a vendeu, especialmente para o movimento sindical, foi que ela levaria em consideração as demandas trabalhistas. Também tinha grupos ambientalistas. Só que a NAFTA, tal como realmente surgiu, levou em consideração algumas preocupações desses grupos ambientalistas, mas não incluiu as políticas que o movimento sindical queria.
Isso foi visto dentro da Casa Branca como uma vitória dos Novos Democratas. E depois, ocorre a crise do peso mexicano e essa mesmas pessoas se organizam para encontrar formas de resgatar o México a um custo de 20 bilhões de dólares. Então, a história que eu conto é uma espécie de transição de poder para a facção dos Novos Democratas do Partido Democrata ao longo da Casa Branca de Clinton. De certa forma, a ascensão de Gingrich e dos republicanos na Câmara alimentou isso, especialmente porque os Novos Democratas eram favoráveis ao tipo de reformas do Estado de Bem-Estar Social que Gingrich defendia — o tipo de política “from welfare to workfare” [do bem-estar para o trabalho]. A famosa reivindicação de Clinton de “acabar com o Estado de Bem-Estar Social como o conhecemos” foi, na verdade, um conjunto de políticas dos republicanos, mas os Novos Democratas as adotaram alegremente porque as viam como algo que iria cimentar o seu poder dentro do Partido Democrata.
DD
Então, qual a decorrência aqui para as análises convencionais sobre a esquerda hoje — é que os democratas neoliberalizados olharam para os republicanos e depois triangularam? E foi assim que tivemos a virada do partido para a direita? Sua análise é compatível com isso? Ou complica isso?
SLM
De certa forma, conta essa história de um modo diferente. O que me interessa é o que está, na verdade, por baixo disso. Como chegamos a essa triangulação? Porque triangulação é esse termo que eu acho que está mais intimamente associado a um dos mais notórios conselheiros estratégicos de Clinton, Dick Morris. Então, a virada de Clinton para a estratégia, pelo menos se lermos os relatos de membros da Casa Branca de Clinton, é algo que ocorre depois que Gingrich e os republicanos assumem. É uma fonte de frustração para membros do governo Clinton, especialmente aqueles velhos liberais que veem Dick Morris como sinônimo de estratégia — ou seja, ele não tem nenhum tipo de lealdade com o liberalismo do New Deal, é apenas um puro estrategista. Ele atua unicamente para retorcer [spinning] as coisas de modo a garantir que Clinton mantenha o poder.
Existe essa angústia dentro das redes de assessoria do governo Clinton sobre o crescente aconselhamento de Clinton com Dick Morris. Mas penso que uma das coisas mais interessantes é que as pessoas que estão mais preocupadas com isso são os velhos liberais. Então, da perspectiva dos Novos Democratas, essa virada para a estratégia, de certa forma, favoreceu seus interesses. Foi o repúdio final ao liberalismo do New Deal. Então, o que eu quero acrescentar a essa história da ascensão da estratégia e da triangulação e tudo mais é que o que está acontecendo por baixo disso é um conjunto de lutas de facções em que ocorre uma mudança dentro das redes democratas, não apenas para longe dos economistas keynesianos, mas também para longe da “franja”, que, por acaso, é uma larga maioria da população votante, e em vez disso, em direção a esse encontro de uma trindade de conselheiros nas redes dos Novos Democratas: um deles é o wonk ou especialista político baseado em think tanks [grupos de reflexão]; um deles é composto por conselheiros estratégicos como Dick Morris; e o outro é o TFE, ou economista orientado para as finanças transnacionais [transnational finance-oriented economist], que ainda é um tipo de economista democrata, mas tem um modo muito diferente de pensar sobre o mundo.
DD
E você escreve que os partidos de esquerda, criando seus próprios think tanks, levam à ascensão do wonk político, e que isso realmente foi uma resposta ao sucesso que os neoliberais tiveram na criação de think tanks de livre mercado.
SLM
Eu caracterizo isso meio que em termos de sociologia organizacional como um caso do que se chamaria de isomorfismo mimético, ou seja, uma estratégia competitiva e organizacional em que novas organizações são fundadas e copiam as estratégias bem-sucedidas das organizações existentes. Não só através da ciência econômica profissional, que é uma via pela qual há uma certa influência do que eu chamo de projeto neoliberal, meio que o lado intelectual do neoliberalismo, mas também existe outra via, que é a criação de think tanks de livre mercado, que realmente começam a proliferar a partir do final dos anos 1970, e especialmente nas décadas de 1980 e 1990. E houve uma resposta ao sucesso observado desses think tanks — espaços como o American Enterprise Institute e a Heritage Foundation nos Estados Unidos ou o Institute of Economic Affairs em Londres — em termos de tentar estabelecer um novo eleitor democrata ou trabalhista ou progressista. A esperança era que eles fornecessem recursos que facilitassem uma política e uma formulação de políticas públicas bem sucedidas, da mesma forma que os think tanks de livre mercado estavam fazendo para os neoconservadores. É uma rede muito mais pequena, mas uma das coisas que faço no livro é dizer que o novo mundo de “think tanks progressistas” não é, de longe, tão grande como a rede de think tanks de livre mercado e eu acho que grande parte da explicação para isso provavelmente tem a ver com dinheiro, mas isso caminha historicamente lado-a-lado com a proliferação de think tanks de livre mercado. Em outras palavras, eles co-evoluem, ele se co-desenvolvem.
DD
Percorremos um caminho tão longo com Biden nomeando Neera Tanden para chefiar o Departamento de Gestão e Orçamento da Casa Branca [Office of Management and Budget].
SLM
Sim, o Center for American Progress é uma conquista culminante do esforço para construir think tanks progressistas nos Estados Unidos.
DD
Você usa apenas a palavra “progressista” para definir o Center for American Progress e escreve que os promotores da Terceira Via em todos os lugares adotaram o termo “progressista”, em parte, por causa da influência dos Estados Unidos, onde a palavra “socialista” era inaceitável. Mas hoje nos Estados Unidos o termo “progressista” se refere tipicamente a Elizabeth Warren, Bernie Sanders ou Alexandria Ocasio-Cortez, meio que uma ampla faixa da ala mais esquerda do partido, em contraste específico com o setor dominante dos democratas neoliberalizados.
Então, o termo sempre me pareceu inconsistente e confuso, inclusive por causa de seus antecedentes na Era Progressista, que não é uma coisa com que eu particularmente queira me associar. Mas seu livro me deixou ainda mais confuso sobre seu uso coloquial. Como você avalia a estranha trajetória desse termo?
SLM
O modo como eu penso sobre coisas como essa é parecido, na verdade, com a forma como penso sobre um termo como “neoliberalismo”. Na linguagem política, coisas assim são usadas como se fossem uma categoria que possui uma essência estável e que representa a mesma coisa ao longo do tempo e do espaço, o que obviamente não é verdade. O que o progressismo hoje significa é diferente do que significava nos anos do DLC e de Clinton. A linguagem do progressismo tem circulado desde o início do século XX. Então, o modo como eu penso sobre os termos progressismo e neoliberalismo e realmente qualquer desses -ismos é que, para entender realmente de onde eles vêm e ver sua trajetória, temos que olhá-los como coisas que são objeto de disputa. Isso meio que delimita uma coisa a ser definida, e depois temos várias pessoas e vários grupos que se empenham e se orientam para fazer valer uma definição vencedora do termo.
Quando pensamos sobre isso dessa forma — de modo que não é uma única coisa fundamental que simplesmente viaja pelo tempo, mas sim uma categoria que é definida, principalmente, através da disputa sobre seu significado —, então a gente coloca diferentes questões, tais como: ok, então quem são os concorrentes? E quem está vencendo? Mas você está certo. Uma das coisas que eu realço no livro — e essa é uma história que está fundamentada em meu conhecimento de como a Terceira Via se internacionalizou, especialmente o eixo entre Blair e Clinton — é como Clinton vence em 1992, depois o New Labour [Novos Trabalhistas] pega emprestada diretamente essa linguagem política e adota uma parte da maquinaria estratégica da campanha de Clinton, e depois vence em 1997. Então, existe um entendimento que emerge de que esse é o novo caminho a seguir para a política da centro-esquerda, e eles querem atrair Clinton para uma discussão mais internacional, especialmente europeia, sobre as perspectivas políticas da centro-esquerda e da Terceira Via. E eles não podem fazer isso usando a categoria “socialismo”; simplesmente, não teria como Clinton poder estar envolvido em algo desse tipo.
Existe esse processo pelo qual a linguagem do progressismo começa a substituir a linguagem do socialismo e da social-democracia na política europeia à medida em que a Terceira Via se torna uma rede política transnacional. Há novos eventos, há conferências, e tudo isso assume essa linguagem do progressismo, que quase se torna um sinônimo de Terceira Via. Então, essa é uma vertente de diferentes redes de pessoas e organizações que estão investidas nessa categoria do progressismo.
Mas agora o progressismo está associado a figuras como Elizabeth Warren. Então, nos Estados Unidos, penso que agora, com as pessoas que estão realmente vencendo em seu esforço para definir o que o termo significa, está muito mais à esquerda do que Clinton, Blair e o DLC teriam imaginado. Em outras palavras, esses termos viajam. E então, o único modo que eu conheço de lidar com isso, analítica e historicamente, é não dar por garantido que esses termos tenham qualquer tipo de essência eterna, mas sim tratá-los como essas coisas históricas que são definidas e empurradas em diferentes direções ao longo do tempo por diferentes grupos ou redes.
Neoliberalização europeia
DD
Obviamente, não conseguimos fazer justiça a todo o seu incrível livro, mas para uma perspectiva comparativa útil quero revisar brevemente um pouco da neoliberalização dos partidos de esquerda na Europa. Na Alemanha, a virada neoliberal do SPD veio quando o líder do partido, Gerhard Schröder, se tornou chanceler em 1998. No ano seguinte, um dos líderes do partido e ministro da Fazenda, Oskar Lafontaine, se demitiu em protesto pela virada do partido à direita. E o que se seguiu foi uma rápida neoliberalização, incluindo a infame Lei Hartz IV em 2002, que acabou com o seguro-desemprego de longo prazo para os trabalhadores alemães. Ocorreram enormes protestos por toda a antiga Alemanha Oriental. Lafontaine partiu para ajudar a fundar o partido de esquerda Die Linke (A Esquerda) e o SPD caiu, desde o período do governo Merkel, em uma certa marginalização permanente, mesmo com a extrema-direita da AfD, o partido Alternativa para a Alemanha, ganhando tanta força. Por que o SPD virou para a direita naquele momento e quais foram as consequências?
SLM
Então, a história do SPD é difícil e parte do motivo pelo qual é diferente dos outros caso no livro se deve ao lugar da Alemanha na integração europeia, especialmente a integração de mercado. A Alemanha não é apenas um importante impulsionador de todo o processo de integração, mas também se torna na sede do Banco Central Europeu (BCE) quando é criado. E os banqueiros centrais ligados ao Banco Central, todo o tipo de relações de autoridade nessas redes, isso muda para que o BCE se torne nessa autoridade monetária superior, cujas principais figuras de autoridade não são apenas presidentes dos Bancos Centrais, mas também economistas credenciados, e veem o mundo em termos de mercados da forma que eu descrevi como o tipo de imaginação do TFE [economista orientado para as finanças transnacionais].
Parte do que está acontecendo ali é que o equilíbrio de poder entre as bases de formulação de políticas econômicas e financeiras na Alemanha muda de um modo que não ocorre, por exemplo, no Reino Unido. O Reino Unido nunca adotou o Euro. Mas depois, tem essa história interessante sobre os descendentes de Willy Brandt. Lafontaine e Schröder e outro cara, Rudolf Scharping, são conhecidos como “os netos de Brandt”. São a geração seguinte após Brandt. A outra coisa que devo observar é que, no muito tumultuado final dos anos 1960 e início dos anos 1970, o SPD excluiu sua ala jovem de uma forma bastante eficaz. Excluiu esse tipo de facções rebeldes e radicais. E então, Lafontaine, Schröder e Scharping são os que sobreviveram a esse processo, mas são dessa geração. E, a princípio, é meio de entendido que Lafontaine parece ser o modernizador, mas depois, quando Schröder se torna chanceler, fica claro que Lafontaine, como ministro da Fazenda, está claramente mais à esquerda e é posto de lado como alguém que promove essa “velha economia”, porque ele quer fazer coisas como harmonizar a tributação em toda a Europa. Ele quer que o Ministério da Fazenda ainda tenha alguma influência nas decisões sobre as taxas de juros, apesar de o BCE já estar em funcionamento nessa época, tal como o Euro, e então o racha interno no partido se torna “os modernizadores versus os tradicionalistas”. Lafontaine se torna o tradicionalista e Schröder se torna a encarnação do modernizador.
Com Lafontaine defendendo essas políticas, que são colocadas de lado como sendo políticas da velha economia que não são mais viáveis, ele finalmente se demite em frustração e é uma grande deserção. É uma deserção sem precedentes e de alto perfil que abala um pouco o partido. É entendida na época como uma vitória dos modernizadores no governo de Schröder, da mesma forma que há uma vitória dos Novos Democratas nos anos de Clinton. O que vemos no rescaldo do caso alemão é a implementação das reformas Hartz. Em todos os casos europeus e em todos os casos também analisados, existe um avanço proativo da liberalização das finanças. Isso é verdade na Suécia, é verdade no Reino Unido, e ainda, no caso britânico, a autonomização do Banco de Inglaterra — e, por extensão, do Tesouro — para ter mais poder sobre a definição das taxas de juros, entre outras coisas.
Uma das coisas que, na verdade, acontecem sob os auspícios de partidos da centro-esquerda na Europa é essa liberalização das finanças que, depois, tem o efeito de introduzir a mesma globalização que os políticos da Terceira Via dizem ser essa força além do nosso controle. Mas uma das coisas interessantes, então, é que eles assumem o poder e realmente tornam isso realidade.
DD
Criando dessa forma o próprio tipo de arquitetura político-econômica que conduz à crise da dívida europeia.
SLM
Com o avanço da liberalização financeira, eles também se abrem para crises financeiras interligadas e massivas. E, de novo, eu não quero que essa seja uma história de culpa. Acho que é importante entender as orientações dos agentes no terreno. Como no caso de Gordon Brown, penso que ele realmente acreditava que autonomizar o Banco de Inglaterra era a coisa certa a fazer e, possivelmente, a única coisa a fazer. Mas o efeito dessas crenças, que eram crenças muito semelhantes ao que entendemos como neoliberalismo, foi que eles criaram o mundo que tornou possível a última crise financeira. Eles contribuíram para esse processo de uma forma realmente importante.
DD
Eu quero fazer uma pergunta sobre o SAP, porque esse partido vira primeiro para o neoliberalismo, o que é surpreendente para mim, pois ainda pensamos que os social-democratas suecos estão mais à esquerda do que o Partido Democrata atual. E você escreve que, mais do que em qualquer outro país, a neoliberalização dos social-democratas suecos foi impulsionada por um conflito dentro da disciplina de economia que depois moldou um conflito entre o partido e a Confederação Sindical Sueca, ou LO, e esse conflito realmente se cristalizou em torno da famosa proposta do economista Rudolf Meidner, apoiada pelos sindicatos, de criar essas coisas chamadas “fundos salariais”, sobre os quais eu falei no passado no podcast, que gradualmente socializariam a propriedade das empresas suecas.
Então, isso é visto por muitos na esquerda hoje como esse momento de uma das últimas grandes esperanças de um caminho parlamentar para o socialismo de verdade, e você escreve que normalmente se relata que o Plano Meidner falhou porque havia uma enorme mobilização empresarial e conservadora contra ele. Mas você argumenta que “um fato decisivo para o rompimento do SAP com Meidner a partir de 1976 foi a perda do apoio aos economistas da LO pela corrente dominante da profissão, expressa na oposição aberta de economistas social-democratas bem conhecidos.”
Como esse conflito sobre a ciência econômica e sobre o Plano Meidner em particular empurrou, em última instância, o SAP para o neoliberalismo nos anos 1980 — um período em que o primeiro-ministro do SAP era Olof Palme, que antes de ser assassinado em 1986 fez questão de atacar o neoliberalismo em termos retóricos e que realmente ainda é considerado um leão da esquerda europeia pré-neoliberal?
SLM
Uma das coisas a notar sobre o caso sueco é o poder incrível do Partido Social-Democrata em todo o período do pós-guerra ali. É basicamente o partido que governa por quase todo aquele tempo, com poucas pausas. Então, uma das coisas que separa o caso sueco ou do Partido Social-Democrata Sueco dos outros casos nos anos 1980 é que eles estão no governo, em contraste com [a centro-esquerda no] Reino Unido e os anos Reagan nos EUA, por exemplo. E também é diferente no sentido de que uma das coisas que vemos com frequência na literatura sobre a história da ciência econômica no caso sueco é que a política sueca é realmente “intensiva em economistas”.
Em outras palavras, isso remonta à história da Escola de Estocolmo e à virada precoce do SAP para gastos deficitários para lidar com os problemas da Grande Depressão. A partir daí, existe uma interseção excepcionalmente profunda, talvez até mais profunda do que qualquer um dos casos que eu abordo no livro, entre a ciência econômica profissional e os principais partidos políticos suecos. E então, quando Meidner desenvolveu o plano para os fundos salariais, ele estava trabalhando em uma tradição bem estabelecida e que tinha sido incrivelmente influente na formulação da política econômica sueca e nos assuntos de governança econômica. Uma das coisas que eu sugiro é que o que mudou foi a posição de fundo dos economistas da LO.
“A partir da Grande Depressão, existe uma interseção excepcionalmente profunda, talvez até mais profunda do que qualquer um dos casos que eu abordo no livro, entre a ciência econômica profissional e os principais partidos políticos suecos.”
Em outras palavras, os economistas dos sindicatos conseguiram desempenhar um papel incomum na vida política e na elaboração de políticas públicas suecas, embora não fossem acadêmicos. E então, como a ciência econômica é meio politizada na Suécia, tal como em outros lugares, há outros economistas social-democratas suecos nos anos 1980 que se opõem aos fundos salariais.
Em outras palavras, é muito claro — e eles falam publicamente sobre isso. Eles fazem uma série de intervenções públicas de peso nos principais jornais suecos e há debates sobre isso. De certa forma, podemos contar a história da neoliberalização do Partido Social-Democrata Sueco em termos da política de facções dentro do partido, que realmente é uma luta travada entre diferentes tipos de economistas social-democratas.
É uma história que realmente, de certa forma, é reminescente da história que eu conto sobre Hilferding, a oposição entre lideranças partidárias que estão mais do lado intelectual do partido e lideranças partidárias que estão mais ancoradas nas lideranças sindicais. Só que as instituições são muito diferentes.
O contexto decisivo para essa viragem são as crises dos anos 1970, em particular a estagflação, que combinou alto desemprego e alta inflação e assim aparentemente — especialmente se ignorarmos o papel do choque do petróleo na coisa toda — desafiou as regras do keynesianismo. Mas você escreve: “O colapso do keynesianismo não se apresentou simplesmente como a consequência auto-evidente das dificuldades da inflação. Emergiu de uma série de lutas interpretativas no contexto da interdependência entre a ciência econômica e os partidos de esquerda.”
O que foi a crise da estagflação e como os neoliberais, até então marginalizados, junto com outros opositores do keynesianismo (porque você realça que nem todos os opositores do keynesianismo eram neoliberais), venceram essas lutas inter-relacionadas sobre a interpretação da crise?
SLM
Sim, então a história da estagflação é realmente interessante. É um termo que, na verdade, emerge nos anos 1960 no contexto britânico, como um modo de caracterizar um momento econômico que simplesmente não fazia sentido de acordo com a lógica keynesiana. Era um momento econômico em que se atingiam taxas crescentes de inflação e, ao mesmo tempo, taxas crescentes de desemprego. E a lógica keynesiana era que, se você tivesse uma coisa, não poderia ter outra. Isso era meio que entendido como a lógica de como o mundo econômico funcionava. E nos anos 1960, antes dos choques do petróleo, muito do debate sobre estagflação tem a ver com o envolvimento excessivo de economistas keynesianos no governo — no caso britânico, especialmente em governos trabalhistas — e também tem a ver, especialmente no caso estadunidense, com muito do debate sobre o que eles chamavam de “inflação salarial” [wage push inflation]. Basicamente, o movimento sindical seria demasiado poderoso — os trabalhadores seriam demasiado poderosos e estariam empurrando os salários demasiado para cima.
Então, na década de 1970, isso assume um tom muito diferente, porque temos os choques do petróleo. E o que isso faz é aumentar os preços, e temos um novo período do que foi chamado de estagflação, caracterizado por esse duplo problema de taxas de inflação crescentes e taxas de desemprego crescentes. E então, se você olhar para os debates que estão acontecendo na ciência econômica nessa época, especialmente na ciência econômica estadunidense, é realmente interessante, porque se caracteriza por certos economistas acadêmicos falando: “Bom, o que isso significa é que o keynesianismo sempre esteve errado. Sempre foi uma ciência defeituosa.” Isso significa que se você, enquanto economista, fizer as coisas de uma forma keynesiana, se você permanecer nesse modo de pensar, você não é mais um economista científico. Então, em outras palavras, em vez de isso ser lido, como foi em muitos círculos políticos, como um problema relacionado — no caso estadunidense — com a dependência do petróleo no Oriente Médio ou o problema geral das dependências energéticas, na ciência econômica foi lido como uma razão para descartar a ciência econômica keynesiana e, especialmente, essa ideia de um equilíbrio [trade-off] e certos entendimentos do papel das expectativas.
O que você tem, então, é um descrédito dos economistas keynesianos na vida pública — não apenas pela direita política, mas também pelos economistas acadêmicos, que não eram todos seguidores de Milton Friedman, que não eram todos economistas aliados a partidos de direita ou a agentes políticos da direita. Também havia economistas que se entendiam como democratas progressistas. Então, não é que a estagflação simplesmente meio que entre na sala e todo mundo diga: “Claramente, o keynesianismo está errado. E vamos ter que colocar Paul Volcker na Reserva Federal e deixar que ele suba as taxas de juros.” Não foi de maneira alguma tão suave ou óbvio.
Houve debates interpretativos sobre o que isso significava. Tinha pessoas no governo Jimmy Carter, como o secretário do Trabalho e outras pessoas, que estavam dizendo: “Veja, isso é um problema energético. Tem a ver com o problema da dependência do petróleo. E é aí que está o problema. Sabemos por que os preços estão subindo.” E a resposta a isso, inclusive nos anos Nixon, foi o controle de salários e preços. Mas no governo Carter, Teve figuras que reclamaram sobre isso nas suas entrevistas pós-governo, que disseram: “Nós meio que fizemos alguns controles de salários e preços, só que eles não eram obrigatórios. Não os exigimos. Simplesmente, dizíamos: ‘Isso seria bom.’ E depois nunca demos suporte.”
Então, eles não aplicaram as soluções keynesianas que mesmo Nixon aplicou. Carter aceita o diagnóstico de que o problema é para ser resolvido basicamente indicando Volcker para a Reserva Federal. Meu argumento é que a estagflação não era simplesmente essa coisa auto-evidente. Era uma matéria de disputa interpretativa. E havia a interpretação dos economistas (ou de alguns economistas) de que era um fracasso da economia keynesiana e da ciência econômica keynesiana. Mas havia outras interpretações concorrentes que não tinham nada a ver com isso, de que era obviamente sobre o preço do petróleo. Então, a forma como isso é interpretado como uma razão para reconfigurar a ciência econômica e reformular as ortodoxias da economia acadêmica é uma coisa histórica e contingente que, pelas razões de que falamos, tem consequências inacreditáveis para as formas dominantes do pensamento econômico nos círculos de esquerda e centro-esquerda.
DD
Algo importante aqui é que eu acho que temos uma tendência para pensar em políticos de esquerda neoliberalizados como Clinton e Tony Blair como tendo seguido os governos neoliberais de direita como Thatcher e Reagan, que meio que inventam a governança neoliberal, e depois os democratas neoliberalizados a ratificam, tornando-a hegemônica. Mas a subida das taxas de juro por Carter, quando ele coloca Volcker no comando da Reserva Federal, que empobreceu tanto os trabalhadores estadunidenses, obviamente precedeu Reagan e ajudou a garantir que Carter perderia para Reagan. E no caso do Reino Unido, o líder trabalhista James Callaghan acabou alienando os trabalhadores sindicalizados e repudiando as teorias econômicas de seu próprio partido antes da ascensão de Thatcher ao poder. Então, você não chama pessoas como Bill Clinton ou Tony Blair de “neoliberais”, mas sim de políticos de esquerda mais neoliberalizados. Por que essa distinção é importante, dado que “neoliberal” veio a significar, em termos coloquiais, precisamente figuras como Clinton e Blair? O que entendê-los como portadores da ética neoliberal revela que é ocultado quando os chamamos apenas de neoliberais?
SLM
Para mim, a diferença está em saber se o seu objetivo é se envolver com a política da Terceira Via. Isto é, a Terceira Via, tanto na versão de Clinton como na versão de Blair e suas várias outras versões em outros lugares, todas suscitaram em círculos trabalhistas, social-democratas ou — no contexto estadunidense — liberais a questão sobre se isso era um rompimento ou uma traição.
E você também vê isso na literatura acadêmica, essa questão da traição de princípios ou da História ou do eleitorado. E essas questões são importantes, mas para mim são diferentes da questão explicativa histórica do que estava acontecendo e por quê. Então, em outras palavras, por um lado precisamos reconhecer que a Terceira Via adotou posições e políticas que possuíam um sabor neoliberal — que falavam em termos do mercado e que falavam sobre o mercado como uma força dominante que não poderia ser gerenciada nem manipulada. Por vezes, eles falavam sobre o mercado e, por vezes, falavam sobre a globalização como uma força que se sobrepunha a nós e que exigia adaptação. Deve-se perguntar por que eles adotaram esse tipo de posições ao mesmo tempo que também expressavam suas próprias posições anti-neoliberais ou anti-neoconservadoras.
Então, isso não é a mesma coisa que Thatcher anunciando que Hayek tinha definido a nova filosofia do conservadorismo ou Reagan dando lugar de destaque e a Medalha Presidencial da Liberdade para Milton Friedman. É diferente. O que ocorre no lado da centro-esquerda ou da Terceira Via é uma adoção de algumas das posições que hoje reconheceríamos como neoliberais e pró-mercado, mas também uma insistência de que eles estão atuando na tradição de seus partidos e nas tradições da centro-esquerda em seus vários países.
A razão pela qual eu acho importante a distinção entre chamar alguém de neoliberal versus falar sobre políticas neoliberalizadas é que eu acho que, se queremos explicar isso e entender por que aconteceu, então não podemos apenas substituir a complexidade da política real subjacente, incluindo a complexidade das perspectivas das pessoas de que estamos falando, por um rótulo.
Em outras palavras, penso que é perfeitamente justo chamar Reagan e Thatcher de políticos neoliberais por boas razões históricas. Mas eu não acho que a mesma lógica se aplique para figuras como Blair e Clinton. E para mim, se quisermos entender isto historicamente, de uma forma que possa nos ajudar a avançar, então precisamos abordar a questão explicativa. Precisamos reconhecer as diferenças e entender essa distinção entre o que figuras de topo associadas com a Terceira Via disseram sobre si mesmas e o que elas realmente fizeram. Precisamos entender como é que fez sentido para elas, em outras palavras, que elas pudessem dizer — tanto quanto eu ou qualquer outra pessoa de fora saiba, com sinceridade — que você poderia ser um social-democrata ou um político trabalhista, ou Clinton poderia meio que se movimentar entre chamar a si mesmo de “liberal” e de “progressista”, e também adotar políticas pró-mercado que claramente não funcionavam no interesse de muitos de seus eleitorados tradicionais. Mesmo que eles dissessem e achassem que estavam fazendo algo consistente e coerente.
A transformação do partido Democrata dos EUA
DD
Seu livro é sobre quatro partidos em quatro países, mas quero me aprofundar um pouco mais sobre o neoliberalismo de nossos próprios democratas. Os democratas neoliberais, também chamados de “os Novos Democratas” [The New Democrats], estavam organizados em um grupo chamado Conselho de Liderança Democrata [Democratic Leadership Council] (DLC), e ascenderam ao poder junto com Bill Clinton. Você escreve que eles aprenderam lições com a experiência de Carter, certamente não as lições que eu teria aprendido. O que eles determinaram ser o problema dos democratas? E por que acreditavam que a solução estava nessa base eleitoral que chamavam de “the mainstream” [a corrente dominante]?
SLM
Uma das coisas que eu faço para tentar traçar um caminho através dessa trajetória é olhar especialmente para uma das figuras fundadoras do DLC, Al From.
O DLC foi estabelecido em 1985. Al From estava há algum tempo no mundo de assessores e conselheiros democratas no Congresso e ligado a várias Agências Federais. Um desses envolvimentos tinha sido trabalhar com a inflação nos anos Carter, e From conta sua própria história em várias ocasiões. Ele conta a história da experiência com a inflação. E algumas coisas sobre isso se destacam para mim.
Uma dessas coisas é que ele via a inflação e a incapacidade dos democratas em lidar com o problema como um motivo central para o declínio do apoio da classe média ou do mainstream ao Partido Democrata. Basicamente, era um fracasso. E a outra coisa que vemos nos relatos dele e de outras pessoas no seu entorno é a frustração com a incapacidade dos economistas na Casa Branca de Carter em lidar com o problema. E essa é uma frustração que não vemos apenas vindo de Al From, mas também de outras pessoas na Casa Branca de Carter.
Pessoas como Stuart Eizenstat, o secretário do Trabalho de Carter, Ray Marshall, e o próprio Carter estavam falando: “Bom, nós fomos conversar com os economistas para perguntar sobre o que fazer acerca dos problemas macroeconômicos.” E Carter diz: “Você pergunta para cinco economistas e eles dão cinco respostas diferentes.” Então, o que eles estão referindo é que existe uma tensão dentro da ciência econômica que eu descrevi como uma importante transição.
Uma das coisas que está ocorrendo aí, e conseguimos ver essa trajetória, é um descontentamento com os economistas, um afastamento deles em uma nova busca por formas de pensar ou formas de desenvolver posições políticas ou definir estratégias sobre soluções políticas que tanto fossem eficazes como politicamente sensíveis (em outras palavras, sensíveis às preocupações estratégicas do Partido Democrata). Conseguimos ver isso em Al From, meio que traçando sua trajetória desde a Casa Branca de Carter, de volta ao trabalho como assessor parlamentar e estrategista democrata, e depois rumo à criação do DLC, que então se torna uma base para a ascensão de Clinton à presidência.
A outra coisa que está acontecendo, a outra coisa a que eles estão reagindo, é a ascensão do que, por vezes, é chamado de “Nova Política” [New Politics], o liberalismo sob a tenda do Partido Democrata. E com isso o que quero dizer é que, depois de 1968 e dos anos 1970, surgiram vários tipos do que era percepcionado pelas pessoas envolvidas na criação do DLC como grupos de interesse divisivos que representavam os interesses de pessoas específicas, especialmente mulheres e grupos étnico-raciais não brancos. Então, existem esses novos grupos que eram representativos do que era chamado em círculos democratas de “Nova Política”, grupos que também eram vistos como movendo o partido em uma direção que seria prejudicial para a capacidade do partido de atrair o que era caracterizado como o eleitor mainstream ou da classe média.
Devo observar que existe obviamente um aspecto racial nisso. Se olharmos para os relatos das pessoas que estavam envolvidas na criação do DLC naquele momento, quando falam sobre o eleitor mainstream, a figura que invariavelmente é elevada a modelo ou personificação disso é um homem branco da classe trabalhadora: o mesmo eleitorado, em outras palavras, que se tornou tão proeminente na sequência da eleição presidencial de 2016.
Existem muitas coisas que estão alimentando isso. Parte do que está acontecendo (além da preocupação com o aconselhamento político insensível ou inútil dos economistas) também é o que descrevo e que outras pessoas descreveram como luta intra-partidária, em que figuras como Al From e pessoas no seu entorno estão preocupadas com a trajetória do Partido Democrata, que está se tornando demasiadamente impulsionado pela política do que eles caracterizam como a franja da sociedade. E devo observar aqui que, é claro, se a franja é todo mundo menos um trabalhador homem e branco, então estamos falando de muita gente.
DD
Todas essas particularidades divisivas, em vez do sujeito universal do americano branco da classe média.
SLM
Certo. E então o que isso significa é um esforço, em certo momento nos anos 1980, para tentar atuar através do Diretório Nacional do Partido Democrata [Democratic National Committee] (DNC). Eles tentam atuar através da estrutura principal do partido em nível nacional e depois ficam ficam frustrados com isso. Então, o que eles fizeram foi criar o Conselho de Liderança Democrata [Democratic Leadership Council], o DLC, e estavam falando sério. Eles queriam explicitamente ser uma organização concorrente com o DNC. E um dos projetos que eles buscam no início da década de 1980, nos anos Reagan, é a transição de poder dentro do partido, especialmente retirar poder de nomeação [para candidatos em primárias] dos “ideólogos e grupos de interesse” e entregá-lo de volta para o que eles chamam “os eleitos”. Ou seja, os democratas que exercem mandato.
DD
Superdelegados.
SLM
Exatamente. Então, essa é a criação dos superdelegados. E a ideia — um tanto contra-intuitivamente, poderíamos dizer — é que o modo de trazer o Partido Democrata de volta para uma postura mais representativa seria retirar o poder e o processo de nomeação de qualquer um que não fosse já um democrata eleito do establishment [sistema].
DD
Uma coisa que eu acho confusa é o papel dos liberais da Nova Política nessa história, porque primeiro, começando no fim dos anos 1960, temos defensores da Nova Esquerda e da Nova Política que minam o poder do sistema liberal do New Deal, que incluía entidades como a AFL-CIO [Central Sindical que atua nos EUA e no Canadá]. Depois, os maiores impulsionadores da virada neoliberal incluem alguns veteranos da Nova Política como Bill Clinton. Mas isso também incorpora, como você mencionou, esse tipo de reação neo-conservadora à Nova Política e uma reação neoliberal contra o keynesianismo no movimento sindical. Como essas forças realmente díspares se uniram para neoliberalizar o Partido Democrata?
SLM
Torna-se uma história realmente difícil de contar, de certa forma, porque o que está realmente acontecendo durante a década de 1970 e durante os anos Reagan é essa disputa de poder intensa dentro do Partido Democrata e dentro das redes democratas e não está claro quais serão os alinhamentos.
Então, uma das coisas que eu realço na história da criação do DLC é que ele tem uma estrutura organizativa e um conjunto de dependências financeiras muito diferentes relativamente ao antecessor mais próximo que identifico no livro, um tipo de contraponto comparativo: a ADA, Americanos pela Ação Democrata [Americans for Democratic Action].
O DLC, uma vez criado, não é claramente anti-sindical, mas agrupa os influenciadores sindicais ou políticos democratas que representam interesses sindicais como parte do problema da Nova Política, como mais um grupo de interesses.”
E nessa comparação, uma das coisas que noto é que a ADA tem muito apoio sindical, pelo menos inicialmente. Está fortemente dependente de financiamento sindical. Mas o DLC se distingue na época por ter muito apoio de doadores financeiros de Wall Street. E então, uma das coisas que eu acho que está acontecendo aí é que o DLC, uma vez criado, não é claramente anti-sindical, mas agrupa os influenciadores sindicais ou políticos democratas que representam interesses sindicais como parte do problema da Nova Política, como mais um grupo de interesses ou interessados.
DD
O que é irônico, dado o que George Meany achava de George McGovern, certo?
SLM
Sim. Tem todos os tipos de voltas e reviravoltas; quando você olha para isso historicamente, teria sido difícil prever como isso se desenrolaria se você estivesse lá. Então, eu penso que o que ocorre ali é que basicamente o DLC não está dependente dos sindicatos. E, de fato, está dependente de um grupo muito diferente de doadores que também se entendem como democratas e progressistas, mas em oposição aos “velhos liberais” — por vezes, a separação entre os grupos da Nova Política e o velho liberalismo pró-sindical se torna uma coisa relevante na perspectiva de, pelo menos, alguns dos financiadores do DLC.
E então, existe meio que essa progressão em que os sindicatos, a AFL-CIO, estão envolvidos. Por exemplo, estão envolvidos na Comissão Hunt. Essa é a comissão que está responsável pela criação dos superdelegados. Estão envolvidos, mas são marginalizados. São deixados de lado. O resultado que eles obtêm disso não é o que desejam. Depois, conseguimos ver na trajetória do DLC como ele vai assumindo uma postura cada vez mais contrária à política democrata pró-sindical. Por outras palavras, sendo eles os novos democratas por definição, estavam se contrastando com os velhos democratas, que eram democratas pró-sindicatos do New Deal e democratas da Nova Política.
DD
Se Al From e o resto do DLC estavam tão preocupados com a estratégia política, se uma falta de estratégia política é a lição que eles tiraram do governo Carter, por que eles não consideraram a possibilidade de que o choque de Volcker empurrara as pessoas da classe trabalhadora para os braços de Reagan e não tiraram algumas lições disso?
SLM
Não acho que eles falem muito sobre Volcker e a questão da política da Reserva Federal. Acho que foi meio que um fato consumado. E de novo, voltando para nosso diálogo anterior, é claro, Volcker foi nomeado por Carter e era um economista alinhado ao Partido Democrata na tradição de muita gente antes dele. Então, eu penso que era dado como adquirido que isso tinha que ser feito, que era apenas o remédio que o povo estadunidense tinha que tomar. E acho que isso nos traz de volta para esse novo consenso neoliberal e centrado no mercado de que os mercados não poderiam ser governados, de que as economias não poderiam mais ser governadas do modo como eram governadas durante os anos 1960. Não acho que eles colocassem isso em questão. Como observo no livro, Carter sabia o que Volcker iria fazer, sabia que isso não iria ser bom para ele, e tinha pessoas no seu governo que pensavam que era uma má ideia e que depois continuaram acreditando que era uma má ideia.
Mas ele fez isso de todo modo e eu penso que, de certa forma, é sintomático do meu argumento de que a facção que liderava o Partido Democrata e a ciência econômica profissional eram profundamente interdependentes. Então, o entendimento convencional ou ortodoxo da economia que tinha emergido na ciência econômica ou estava se tornando dominante nos anos 1980 foi dado como adquirido nos círculos democratas. E então, a pergunta é: após colocar esse trem em movimento, como você responde às demandas de seu eleitorado?
Talvez parte do que está acontecendo aí seja que, embora Clinton falasse em uma linguagem da ciência econômica o tempo todo em seu famoso jeito wonky [de um nerd], se olharmos para sua campanha, uma das coisas que podemos notar, em comparação com a campanha de JFK [John F. Kennedy], por exemplo, é que os economistas credenciados não eram, nem de perto, tão importantes ou tão influentes em sua campanha como eram outros tipos de figuras. Um dos tipos de figuras que se torna influente nos anos Clinton e na campanha de Clinton é algo que tinha estado em andamento por algum tempo, que é a ascensão de conselheiros estratégicos — conselheiros que estavam fazendo pesquisas e grupos focais.
DD
Pessoas como James Carville, que disse de forma célebre: It’s the economy, stupid. [É a economia, estúpido.]
SLM
Certo, exatamente. Então, a linguagem econômica de Clinton muitas vezes vinha de pessoas que, na verdade, não eram economistas, o que é notável, em contraste, por exemplo, com a linguagem econômica de JFK, que é, em grande parte, uma linguagem que ele aprendera diretamente com economistas keynesianos. Acho que isso é sintomático desse rompimento e desilusão com os economistas e com a ciência econômica que está enraizado nos anos Carter. Mesmo quando temos o DLC nos anos Clinton, temos muita linguagem mencionando os economistas e a economia, mas, na verdade, se olharmos para as redes partidárias, os economistas não são, nem de perto, tão proeminentes e influentes como são em anos anteriores. Sua jurisdição meio que se restringe. Então, eles podem falar sobre o que fazer, por exemplo, com a política de taxas de juros e sobre matérias relacionadas com os mercados internacionais e coisas dessas, mas seus múltiplos papéis que descrevi na era do economista-teórico keynesiano — as figuras que carregam a ética keynesiana, em que eles são estrategistas e redatores de discursos e conselheiros económicos — ficam circunscritos.
DD
E que tinham se instalado sob Franklin D. Roosevelt e permanecido meio que institucionalmente intactos mesmo durante os anos Eisenhower, através de grupos como Americans for Democratic Action. E então, seguem no centro da política e da formulação de políticas públicas para JFK e Lyndon B. Johnson.
SLM
Certo. Então uma das coisas que realço no livro é que, na verdade, isso confere um certo sabor keynesiano até mesmo para o governo Eisenhower, mesmo sendo um governo republicano. Eu acho que o argumento quando chegamos nos anos da Terceira Via não é tanto que os economistas já não tenham mais influência, é apenas que seu papel foi circunscrito e transformado.
E isso teve uma conexão direta com o fato de que economistas proeminentes olhavam o mundo de forma muito diferente e não poderiam mais oferecer o tipo de aconselhamento econômico que pudesse ser conciliado com demandas políticas estratégicas. Há um argumento no livro de que existe uma afinidade ou uma relação funcional entre, por um lado, economistas que são conselheiros em redes democratas ou em redes dos partidos de centro-esquerda, que veem o mundo em termos de mercados e que acreditam em realizar intervenções e processos de formulação de políticas públicas unicamente para garantir políticas que sejam amigáveis ao mercado, e, por outro lado, a ascensão do que vem a ser referido nos anos 1990 como “spin”, a ascensão de especialistas políticos que se preocupam unicamente em retorcer [spinning] mensagens impopulares de modo a ganhar eleições. Uma coisa meio que precisava da outra.
DD
Como um obcecado em estudos sobre os anos 90, um dos argumentos que você faz que eu acho realmente interessante é que a eleição de Clinton em 1992 foi, obviamente, uma grande vitória para o DLC. Clinton tinha sido o líder do DLC, mas esse não foi o único momento decisivo para a neoliberalização do partido. Foi realmente importante a Revolução Republicana de 1994, quando os republicanos com Newt Gingrich retomaram a Câmara dos Deputados pela primeira vez em quarenta anos.
SLM
Sim, penso que isso é algo que, às vezes, as pessoas não percebem, especialmente por causa dos anos Reagan. Todo mundo acha que, quando Reagan chegou ao poder, isso foi meio que o fim para os democratas. Mas, na verdade, eles dominavam a Câmara até aos anos Clinton. Clinton permaneceu relativamente popular, exceto que a participação eleitoral estava caindo. E o poder democrata no Congresso também estava afundando.
DD
Foi uma conjuntura enorme nessa briga de facções dentro do Partido Democrata. O DLC disse que os republicanos tinham vencido porque Clinton e os democratas eram demasiado liberais [demasiado à esquerda]. Os liberais, por contraste, disseram que foi por causa do Tratado de Livre-Comércio da América do Norte [North American Free Trade Agreement] (NAFTA), que, como você observa, foi vendido para Clinton não por economistas, mas por conselheiros sem experiência em economia. E os liberais argumentaram que isso tinha alienado os trabalhadores sindicalizados e os eleitores da classe trabalhadora. Qual era o equilíbrio de poder dento do partido no começo do governo Clinton? Porque eu acho que tendemos a pensar nisso como tendo uma conclusão neoliberal inevitável. Mas qual era o equilíbrio de poder nesse momento, e como a facção neoliberalizada prevaleceu tão decisivamente após 1994?
SLM
A minha abordagem sobre isso é que o equilíbrio de poder no Congresso ainda estava, essencialmente, não do lado dos Novos Democratas, mas sim do lado dos liberais e velhos liberais pró-sindicatos do New Deal.
DD
E os democratas na Câmara, em particular, eram vistos como uma espécie de porta-bandeiras da facção liberal.
SLM
Certo. Clinton é lembrado hoje como um porta-bandeira da Terceira Via estadunidense. Mas seu atrativo, se olharmos para a forma como ele foi recrutado pelo DLC, existe porque ele é entendido como uma das novas figuras principais da Nova Política. Isso ainda é chamado de liberalismo naquele momento. E um dos atrativos de Clinton, em particular, era que eles pensavam que ele conseguiria atrair tanto os velhos liberais como os Novos Democratas, ou as pessoas que os Novos Democratas queriam atrair. Mas ele também conseguiria meio que conciliar isso com os velhos liberais no governo Clinton.
DD
E todo o tipo de fascínio nostálgico dos hippies da geração baby boomer com Bill Clinton, o cara legal que tocava saxofone, do qual me lembro quando era criança.
SLM
Eu caracterizaria isso nos primeiros anos de governo, antes da chegada de Gingrich, como um governo que, em certo sentido, tinha se tornado uma base de poder para os Novos Democratas no DLC, mas mesmo dentro do governo ainda tinha muitas pessoas que se entendiam como liberais do New Deal clássicos, atuando na senda de FDR [Franklin D. Roosevelt]. E então, havia tensões dentro da Casa Branca de Clinton entre aqueles dois tipos de grupos. Essas tensões se expressavam, especialmente, em divergências acerca de questões do que fazer com relação a equilibrar o orçamento e quão importante seria reduzir o déficit versus financiar vários programas sociais.
E então, no Congresso, especialmente na Câmara, as forças democratas dominantes ainda eram o que o DLC teria considerado velhos liberais, que eram profundamente keynesianos em seus argumentos e entendimentos sobre déficit e gasto público. Então, quando Clinton entra na Casa Branca e traz esse novo governo, existe uma ruptura entre os Novos Democratas e os velhos liberais. No início, parece que os Novos Democratas estão meio que preocupados que talvez os velhos liberais ainda tenham vencido, que eles venham a prevalecer em sua influência sobre Clinton.
Então, há uma série de disputas políticas que começa com o déficit, e depois existe a questão da NAFTA, que foi disputada dentro da Casa Branca por essas duas facções, em que havia pessoas como Robert Reich, que defendia uma menor preocupação em equilibrar o orçamento e cortar o déficit e, em vez disso, fazer coisas para ajudar os trabalhadores, versus pessoas como Larry Summers, que era mais um falcão do déficit.
E então, a história que eu conto é que, na verdade, de certa forma, quando Gingrich chega na Câmara com uma clara maioria republicana, na perspectiva dos Novos Democratas na Casa Branca isso pode ser aproveitado para derrotar decisivamente os velhos liberais. É uma forma de reforçar sua posição. Então, conto a história de como isso se desenrola e, antes de mais, como a redução do déficit e o equilíbrio fiscal prevalecem sobre coisas como investimentos massivos em infraestrutura e políticas pró-emprego dessa natureza.
E depois sobre a NAFTA, inicialmente, a forma como Clinton a vendeu, especialmente para o movimento sindical, foi que ela levaria em consideração as demandas trabalhistas. Também tinha grupos ambientalistas. Só que a NAFTA, tal como realmente surgiu, levou em consideração algumas preocupações desses grupos ambientalistas, mas não incluiu as políticas que o movimento sindical queria.
Isso foi visto dentro da Casa Branca como uma vitória dos Novos Democratas. E depois, ocorre a crise do peso mexicano e essa mesmas pessoas se organizam para encontrar formas de resgatar o México a um custo de 20 bilhões de dólares. Então, a história que eu conto é uma espécie de transição de poder para a facção dos Novos Democratas do Partido Democrata ao longo da Casa Branca de Clinton. De certa forma, a ascensão de Gingrich e dos republicanos na Câmara alimentou isso, especialmente porque os Novos Democratas eram favoráveis ao tipo de reformas do Estado de Bem-Estar Social que Gingrich defendia — o tipo de política “from welfare to workfare” [do bem-estar para o trabalho]. A famosa reivindicação de Clinton de “acabar com o Estado de Bem-Estar Social como o conhecemos” foi, na verdade, um conjunto de políticas dos republicanos, mas os Novos Democratas as adotaram alegremente porque as viam como algo que iria cimentar o seu poder dentro do Partido Democrata.
DD
Então, qual a decorrência aqui para as análises convencionais sobre a esquerda hoje — é que os democratas neoliberalizados olharam para os republicanos e depois triangularam? E foi assim que tivemos a virada do partido para a direita? Sua análise é compatível com isso? Ou complica isso?
SLM
De certa forma, conta essa história de um modo diferente. O que me interessa é o que está, na verdade, por baixo disso. Como chegamos a essa triangulação? Porque triangulação é esse termo que eu acho que está mais intimamente associado a um dos mais notórios conselheiros estratégicos de Clinton, Dick Morris. Então, a virada de Clinton para a estratégia, pelo menos se lermos os relatos de membros da Casa Branca de Clinton, é algo que ocorre depois que Gingrich e os republicanos assumem. É uma fonte de frustração para membros do governo Clinton, especialmente aqueles velhos liberais que veem Dick Morris como sinônimo de estratégia — ou seja, ele não tem nenhum tipo de lealdade com o liberalismo do New Deal, é apenas um puro estrategista. Ele atua unicamente para retorcer [spinning] as coisas de modo a garantir que Clinton mantenha o poder.
Existe essa angústia dentro das redes de assessoria do governo Clinton sobre o crescente aconselhamento de Clinton com Dick Morris. Mas penso que uma das coisas mais interessantes é que as pessoas que estão mais preocupadas com isso são os velhos liberais. Então, da perspectiva dos Novos Democratas, essa virada para a estratégia, de certa forma, favoreceu seus interesses. Foi o repúdio final ao liberalismo do New Deal. Então, o que eu quero acrescentar a essa história da ascensão da estratégia e da triangulação e tudo mais é que o que está acontecendo por baixo disso é um conjunto de lutas de facções em que ocorre uma mudança dentro das redes democratas, não apenas para longe dos economistas keynesianos, mas também para longe da “franja”, que, por acaso, é uma larga maioria da população votante, e em vez disso, em direção a esse encontro de uma trindade de conselheiros nas redes dos Novos Democratas: um deles é o wonk ou especialista político baseado em think tanks [grupos de reflexão]; um deles é composto por conselheiros estratégicos como Dick Morris; e o outro é o TFE, ou economista orientado para as finanças transnacionais [transnational finance-oriented economist], que ainda é um tipo de economista democrata, mas tem um modo muito diferente de pensar sobre o mundo.
DD
E você escreve que os partidos de esquerda, criando seus próprios think tanks, levam à ascensão do wonk político, e que isso realmente foi uma resposta ao sucesso que os neoliberais tiveram na criação de think tanks de livre mercado.
SLM
Eu caracterizo isso meio que em termos de sociologia organizacional como um caso do que se chamaria de isomorfismo mimético, ou seja, uma estratégia competitiva e organizacional em que novas organizações são fundadas e copiam as estratégias bem-sucedidas das organizações existentes. Não só através da ciência econômica profissional, que é uma via pela qual há uma certa influência do que eu chamo de projeto neoliberal, meio que o lado intelectual do neoliberalismo, mas também existe outra via, que é a criação de think tanks de livre mercado, que realmente começam a proliferar a partir do final dos anos 1970, e especialmente nas décadas de 1980 e 1990. E houve uma resposta ao sucesso observado desses think tanks — espaços como o American Enterprise Institute e a Heritage Foundation nos Estados Unidos ou o Institute of Economic Affairs em Londres — em termos de tentar estabelecer um novo eleitor democrata ou trabalhista ou progressista. A esperança era que eles fornecessem recursos que facilitassem uma política e uma formulação de políticas públicas bem sucedidas, da mesma forma que os think tanks de livre mercado estavam fazendo para os neoconservadores. É uma rede muito mais pequena, mas uma das coisas que faço no livro é dizer que o novo mundo de “think tanks progressistas” não é, de longe, tão grande como a rede de think tanks de livre mercado e eu acho que grande parte da explicação para isso provavelmente tem a ver com dinheiro, mas isso caminha historicamente lado-a-lado com a proliferação de think tanks de livre mercado. Em outras palavras, eles co-evoluem, ele se co-desenvolvem.
DD
Percorremos um caminho tão longo com Biden nomeando Neera Tanden para chefiar o Departamento de Gestão e Orçamento da Casa Branca [Office of Management and Budget].
SLM
Sim, o Center for American Progress é uma conquista culminante do esforço para construir think tanks progressistas nos Estados Unidos.
DD
Você usa apenas a palavra “progressista” para definir o Center for American Progress e escreve que os promotores da Terceira Via em todos os lugares adotaram o termo “progressista”, em parte, por causa da influência dos Estados Unidos, onde a palavra “socialista” era inaceitável. Mas hoje nos Estados Unidos o termo “progressista” se refere tipicamente a Elizabeth Warren, Bernie Sanders ou Alexandria Ocasio-Cortez, meio que uma ampla faixa da ala mais esquerda do partido, em contraste específico com o setor dominante dos democratas neoliberalizados.
Então, o termo sempre me pareceu inconsistente e confuso, inclusive por causa de seus antecedentes na Era Progressista, que não é uma coisa com que eu particularmente queira me associar. Mas seu livro me deixou ainda mais confuso sobre seu uso coloquial. Como você avalia a estranha trajetória desse termo?
SLM
O modo como eu penso sobre coisas como essa é parecido, na verdade, com a forma como penso sobre um termo como “neoliberalismo”. Na linguagem política, coisas assim são usadas como se fossem uma categoria que possui uma essência estável e que representa a mesma coisa ao longo do tempo e do espaço, o que obviamente não é verdade. O que o progressismo hoje significa é diferente do que significava nos anos do DLC e de Clinton. A linguagem do progressismo tem circulado desde o início do século XX. Então, o modo como eu penso sobre os termos progressismo e neoliberalismo e realmente qualquer desses -ismos é que, para entender realmente de onde eles vêm e ver sua trajetória, temos que olhá-los como coisas que são objeto de disputa. Isso meio que delimita uma coisa a ser definida, e depois temos várias pessoas e vários grupos que se empenham e se orientam para fazer valer uma definição vencedora do termo.
Quando pensamos sobre isso dessa forma — de modo que não é uma única coisa fundamental que simplesmente viaja pelo tempo, mas sim uma categoria que é definida, principalmente, através da disputa sobre seu significado —, então a gente coloca diferentes questões, tais como: ok, então quem são os concorrentes? E quem está vencendo? Mas você está certo. Uma das coisas que eu realço no livro — e essa é uma história que está fundamentada em meu conhecimento de como a Terceira Via se internacionalizou, especialmente o eixo entre Blair e Clinton — é como Clinton vence em 1992, depois o New Labour [Novos Trabalhistas] pega emprestada diretamente essa linguagem política e adota uma parte da maquinaria estratégica da campanha de Clinton, e depois vence em 1997. Então, existe um entendimento que emerge de que esse é o novo caminho a seguir para a política da centro-esquerda, e eles querem atrair Clinton para uma discussão mais internacional, especialmente europeia, sobre as perspectivas políticas da centro-esquerda e da Terceira Via. E eles não podem fazer isso usando a categoria “socialismo”; simplesmente, não teria como Clinton poder estar envolvido em algo desse tipo.
Existe esse processo pelo qual a linguagem do progressismo começa a substituir a linguagem do socialismo e da social-democracia na política europeia à medida em que a Terceira Via se torna uma rede política transnacional. Há novos eventos, há conferências, e tudo isso assume essa linguagem do progressismo, que quase se torna um sinônimo de Terceira Via. Então, essa é uma vertente de diferentes redes de pessoas e organizações que estão investidas nessa categoria do progressismo.
Mas agora o progressismo está associado a figuras como Elizabeth Warren. Então, nos Estados Unidos, penso que agora, com as pessoas que estão realmente vencendo em seu esforço para definir o que o termo significa, está muito mais à esquerda do que Clinton, Blair e o DLC teriam imaginado. Em outras palavras, esses termos viajam. E então, o único modo que eu conheço de lidar com isso, analítica e historicamente, é não dar por garantido que esses termos tenham qualquer tipo de essência eterna, mas sim tratá-los como essas coisas históricas que são definidas e empurradas em diferentes direções ao longo do tempo por diferentes grupos ou redes.
Neoliberalização europeia
DD
Obviamente, não conseguimos fazer justiça a todo o seu incrível livro, mas para uma perspectiva comparativa útil quero revisar brevemente um pouco da neoliberalização dos partidos de esquerda na Europa. Na Alemanha, a virada neoliberal do SPD veio quando o líder do partido, Gerhard Schröder, se tornou chanceler em 1998. No ano seguinte, um dos líderes do partido e ministro da Fazenda, Oskar Lafontaine, se demitiu em protesto pela virada do partido à direita. E o que se seguiu foi uma rápida neoliberalização, incluindo a infame Lei Hartz IV em 2002, que acabou com o seguro-desemprego de longo prazo para os trabalhadores alemães. Ocorreram enormes protestos por toda a antiga Alemanha Oriental. Lafontaine partiu para ajudar a fundar o partido de esquerda Die Linke (A Esquerda) e o SPD caiu, desde o período do governo Merkel, em uma certa marginalização permanente, mesmo com a extrema-direita da AfD, o partido Alternativa para a Alemanha, ganhando tanta força. Por que o SPD virou para a direita naquele momento e quais foram as consequências?
SLM
Então, a história do SPD é difícil e parte do motivo pelo qual é diferente dos outros caso no livro se deve ao lugar da Alemanha na integração europeia, especialmente a integração de mercado. A Alemanha não é apenas um importante impulsionador de todo o processo de integração, mas também se torna na sede do Banco Central Europeu (BCE) quando é criado. E os banqueiros centrais ligados ao Banco Central, todo o tipo de relações de autoridade nessas redes, isso muda para que o BCE se torne nessa autoridade monetária superior, cujas principais figuras de autoridade não são apenas presidentes dos Bancos Centrais, mas também economistas credenciados, e veem o mundo em termos de mercados da forma que eu descrevi como o tipo de imaginação do TFE [economista orientado para as finanças transnacionais].
Parte do que está acontecendo ali é que o equilíbrio de poder entre as bases de formulação de políticas econômicas e financeiras na Alemanha muda de um modo que não ocorre, por exemplo, no Reino Unido. O Reino Unido nunca adotou o Euro. Mas depois, tem essa história interessante sobre os descendentes de Willy Brandt. Lafontaine e Schröder e outro cara, Rudolf Scharping, são conhecidos como “os netos de Brandt”. São a geração seguinte após Brandt. A outra coisa que devo observar é que, no muito tumultuado final dos anos 1960 e início dos anos 1970, o SPD excluiu sua ala jovem de uma forma bastante eficaz. Excluiu esse tipo de facções rebeldes e radicais. E então, Lafontaine, Schröder e Scharping são os que sobreviveram a esse processo, mas são dessa geração. E, a princípio, é meio de entendido que Lafontaine parece ser o modernizador, mas depois, quando Schröder se torna chanceler, fica claro que Lafontaine, como ministro da Fazenda, está claramente mais à esquerda e é posto de lado como alguém que promove essa “velha economia”, porque ele quer fazer coisas como harmonizar a tributação em toda a Europa. Ele quer que o Ministério da Fazenda ainda tenha alguma influência nas decisões sobre as taxas de juros, apesar de o BCE já estar em funcionamento nessa época, tal como o Euro, e então o racha interno no partido se torna “os modernizadores versus os tradicionalistas”. Lafontaine se torna o tradicionalista e Schröder se torna a encarnação do modernizador.
Com Lafontaine defendendo essas políticas, que são colocadas de lado como sendo políticas da velha economia que não são mais viáveis, ele finalmente se demite em frustração e é uma grande deserção. É uma deserção sem precedentes e de alto perfil que abala um pouco o partido. É entendida na época como uma vitória dos modernizadores no governo de Schröder, da mesma forma que há uma vitória dos Novos Democratas nos anos de Clinton. O que vemos no rescaldo do caso alemão é a implementação das reformas Hartz. Em todos os casos europeus e em todos os casos também analisados, existe um avanço proativo da liberalização das finanças. Isso é verdade na Suécia, é verdade no Reino Unido, e ainda, no caso britânico, a autonomização do Banco de Inglaterra — e, por extensão, do Tesouro — para ter mais poder sobre a definição das taxas de juros, entre outras coisas.
Uma das coisas que, na verdade, acontecem sob os auspícios de partidos da centro-esquerda na Europa é essa liberalização das finanças que, depois, tem o efeito de introduzir a mesma globalização que os políticos da Terceira Via dizem ser essa força além do nosso controle. Mas uma das coisas interessantes, então, é que eles assumem o poder e realmente tornam isso realidade.
DD
Criando dessa forma o próprio tipo de arquitetura político-econômica que conduz à crise da dívida europeia.
SLM
Com o avanço da liberalização financeira, eles também se abrem para crises financeiras interligadas e massivas. E, de novo, eu não quero que essa seja uma história de culpa. Acho que é importante entender as orientações dos agentes no terreno. Como no caso de Gordon Brown, penso que ele realmente acreditava que autonomizar o Banco de Inglaterra era a coisa certa a fazer e, possivelmente, a única coisa a fazer. Mas o efeito dessas crenças, que eram crenças muito semelhantes ao que entendemos como neoliberalismo, foi que eles criaram o mundo que tornou possível a última crise financeira. Eles contribuíram para esse processo de uma forma realmente importante.
DD
Eu quero fazer uma pergunta sobre o SAP, porque esse partido vira primeiro para o neoliberalismo, o que é surpreendente para mim, pois ainda pensamos que os social-democratas suecos estão mais à esquerda do que o Partido Democrata atual. E você escreve que, mais do que em qualquer outro país, a neoliberalização dos social-democratas suecos foi impulsionada por um conflito dentro da disciplina de economia que depois moldou um conflito entre o partido e a Confederação Sindical Sueca, ou LO, e esse conflito realmente se cristalizou em torno da famosa proposta do economista Rudolf Meidner, apoiada pelos sindicatos, de criar essas coisas chamadas “fundos salariais”, sobre os quais eu falei no passado no podcast, que gradualmente socializariam a propriedade das empresas suecas.
Então, isso é visto por muitos na esquerda hoje como esse momento de uma das últimas grandes esperanças de um caminho parlamentar para o socialismo de verdade, e você escreve que normalmente se relata que o Plano Meidner falhou porque havia uma enorme mobilização empresarial e conservadora contra ele. Mas você argumenta que “um fato decisivo para o rompimento do SAP com Meidner a partir de 1976 foi a perda do apoio aos economistas da LO pela corrente dominante da profissão, expressa na oposição aberta de economistas social-democratas bem conhecidos.”
Como esse conflito sobre a ciência econômica e sobre o Plano Meidner em particular empurrou, em última instância, o SAP para o neoliberalismo nos anos 1980 — um período em que o primeiro-ministro do SAP era Olof Palme, que antes de ser assassinado em 1986 fez questão de atacar o neoliberalismo em termos retóricos e que realmente ainda é considerado um leão da esquerda europeia pré-neoliberal?
SLM
Uma das coisas a notar sobre o caso sueco é o poder incrível do Partido Social-Democrata em todo o período do pós-guerra ali. É basicamente o partido que governa por quase todo aquele tempo, com poucas pausas. Então, uma das coisas que separa o caso sueco ou do Partido Social-Democrata Sueco dos outros casos nos anos 1980 é que eles estão no governo, em contraste com [a centro-esquerda no] Reino Unido e os anos Reagan nos EUA, por exemplo. E também é diferente no sentido de que uma das coisas que vemos com frequência na literatura sobre a história da ciência econômica no caso sueco é que a política sueca é realmente “intensiva em economistas”.
Em outras palavras, isso remonta à história da Escola de Estocolmo e à virada precoce do SAP para gastos deficitários para lidar com os problemas da Grande Depressão. A partir daí, existe uma interseção excepcionalmente profunda, talvez até mais profunda do que qualquer um dos casos que eu abordo no livro, entre a ciência econômica profissional e os principais partidos políticos suecos. E então, quando Meidner desenvolveu o plano para os fundos salariais, ele estava trabalhando em uma tradição bem estabelecida e que tinha sido incrivelmente influente na formulação da política econômica sueca e nos assuntos de governança econômica. Uma das coisas que eu sugiro é que o que mudou foi a posição de fundo dos economistas da LO.
“A partir da Grande Depressão, existe uma interseção excepcionalmente profunda, talvez até mais profunda do que qualquer um dos casos que eu abordo no livro, entre a ciência econômica profissional e os principais partidos políticos suecos.”
Em outras palavras, os economistas dos sindicatos conseguiram desempenhar um papel incomum na vida política e na elaboração de políticas públicas suecas, embora não fossem acadêmicos. E então, como a ciência econômica é meio politizada na Suécia, tal como em outros lugares, há outros economistas social-democratas suecos nos anos 1980 que se opõem aos fundos salariais.
Em outras palavras, é muito claro — e eles falam publicamente sobre isso. Eles fazem uma série de intervenções públicas de peso nos principais jornais suecos e há debates sobre isso. De certa forma, podemos contar a história da neoliberalização do Partido Social-Democrata Sueco em termos da política de facções dentro do partido, que realmente é uma luta travada entre diferentes tipos de economistas social-democratas.
É uma história que realmente, de certa forma, é reminescente da história que eu conto sobre Hilferding, a oposição entre lideranças partidárias que estão mais do lado intelectual do partido e lideranças partidárias que estão mais ancoradas nas lideranças sindicais. Só que as instituições são muito diferentes.
O mito do "eleitor mediano"
DD
E, tanto no caso do SAP como no de Hilferding, e obviamente esta é uma avaliação política subjetiva, poderíamos argumentar que eram as pessoas ligadas ao movimento sindical e não à intelectualidade do partido que estavam certas. O que isso revela sobre esse problema da relação entre intelectuais do partido e movimento sindical, um problema que vem sendo identificado há muito tempo, como você refere, desde o famoso argumento de Robert Michels sobre “a lei de ferro da oligarquia”?
SLM
Sim, esse é um problema espinhoso sobre o qual existe meio que uma controvérsia. Talvez isso ocorra, na verdade, em todos os partidos ou em toda a política? Existe uma tensão potencial entre fazer as coisas com base em princípios, e isso pode incluir princípios baseados nos compromissos intelectuais de alguém, versus a estratégia, que provavelmente envolverá ceder nesses princípios ou compromissos intelectuais de alguém. Então, existe uma longa tensão entre essas duas coisas que é especialmente profunda nas discussões sobre a esquerda e na intelectualidade marxista, porque as pessoas que estão sendo representadas são grupos que historicamente não estão representados, ou que são menos poderosos, com menos recursos.
Então, se a atuação baseada em princípios prevalecer sobre a disposição estratégica de negociar entre grupos, incluindo eleitorados, depois você tem um problema muito difícil. Isso vem desde o teórico italiano Antonio Gramsci, que fala sobre o intelectual orgânico. O que ele realmente está falando é sobre intelectuais que estão ancorados na classe trabalhadora, que têm uma posição de classe específica. E o que eu argumento no livro é que, na verdade, o que os intelectuais fazem no contexto dos partidos políticos, se estiverem atuando corretamente, é uma intermediação. Em outras palavras, eles se movem entre as lideranças do partido, os eleitos, os governantes e os eleitores na base, e fornecem essa conexão comunicativa entre ambos em que eles estão ancorados nos eleitores o suficiente para meio que falar em nome de sua experiência e ajudá-los a sustentar sua própria compreensão sobre sua experiência e sua identidade política. Mas eles também conseguem levar essa compreensão para a elaboração de políticas públicas.
A forma como penso sobre isso é que temos sempre intelectuais na vida política, porque uma das coisas que os partidos fazem é falar em nome das pessoas. E não estão falando apenas através das vozes das pessoas. Há um processo intelectual em que os partidos estão interpretando a situação das pessoas, o que elas querem e o que vai funcionar em seu interesse.
Existe um processo de tradução que ocorre e essa tradução pode ser eficaz. Pode articular efetivamente os interesses das pessoas, ou pode não representar realmente esses grupos de todo. Podemos ter intelectuais que representam os mercados, que não são grupos de nenhum tipo. E essas figuras não têm a capacidade intermediária de tradução e comunicação que os intelectuais que falam em nome dos eleitorados têm. Em outras palavras, se o principal intelectual intermediário nas redes dos partidos de esquerda é um intelectual que fala pelos interesses dessas forças não territoriais por aí chamadas “mercados”, então o que ele está realmente fazendo é limitar a margem desses partidos para lidar diretamente com as preocupações, experiências e problemas do eleitorado. Logo, o que temos, em vez disso, é um ponto de partida em que a liderança do partido começa atuando com base em uma aceitação da necessidade de representar os interesses dos mercados.
DD
Então por que os partidos de esquerda neoliberalizados se viraram para spin doctors [especialistas em comunicação e em retorcer a informação ao seu favor], em vez de entender que o motivo pelo qual eles precisavam de estrategistas era que suas políticas econômicas não eram populares e que eles estavam, de fato, erodindo sua base de apoio na classe trabalhadora? Qual é a causa principal para isso?
SLM
Eu acho que uma das causas principais que sustentam isso é o que, por vezes, chamo de atomização da política. E efetivamente falo no livro sobre a profissionalização da política. Em outras palavras, quando avançamos de FDR para Clinton, o que vemos é que os políticos da geração de Clinton se movem nesse mundo político que é completamente diferente do mundo político nacional nos anos FDR.
Não estou dizendo aqui que um é melhor do que o outro. Estou simplesmente dizendo que é diferente e uma das principais coisas que são diferentes é a medida em que o mundo da política democrata está profissionalizado. Então, existem todos esses think tanks diferentes, que se especializam em produzir recomendações políticas específicas sobre questões políticas específicas. E tem um mundo de consultores políticos que realmente não existe antes dos anos 1970 e 1980, e isso se torna incrivelmente dominante no mundo.
O papel dos consultores políticos hoje é impossível de negar. Até poderíamos ver, se fossemos olhar para a trajetória dos debates presidenciais, o grau em que os debates se tornam um espetáculo em que depois as pessoas estão comentando sobre quem ganhou. Não é deixado simplesmente aos eleitores decidir tranquilamente quem ganha o debate. Temos o representante de uma candidatura e o consultor da outra candidatura e eles estão debatendo depois. Então, é essa câmara de eco e vemos isso nos anos Clinton. Vemos isso se desenvolvendo na Suécia nos anos 1990. Vemos isso se desenvolvendo na Alemanha. Vemos isso se desenvolvendo no Reino Unido, esse mundo profissionalizado da política em que você, se for um político como Blair ou Clinton, está imerso nesse tipo de mundo: uma política profissionalizada que está isolada de tudo o resto e se torna internamente referencial.
E então, eles se movem em um mundo onde as possibilidades políticas — o senso comum desse mundo, a linguagem que pode ser usada — se tornam muito restringidas. Por que ocorre a eles que, subitamente, precisam desse tipo de pessoas mentirosas para vender suas políticas econômicas para pessoas que não vão gostar delas?
A resposta mais simples é que falamos de pessoas como quaisquer outras. E tendemos a interpretar o significado das coisas de acordo com nossa experiência imediata. Avaliamos o que é possível e o que é impensável de acordo com o que faz sentido no nosso mundo, esse mundo fechado onde os parâmetros da discussão política e do debate sobre políticas públicas estão tão restringidos e são crescentemente controlados ou dominados por profissionais que, na verdade, não estão preocupados com a longevidade de um determinado partido político em termos de desenvolver grandes técnicas de gestão econômica.
DD
Dick Morris é um exemplo disso.
SLM
Certo. São contratados para ajudar os políticos a ganhar eleições e permanecer no poder e vencer em certos assuntos. Basicamente, há toda essa camada de redes que fazem toda essa interpretação do que é possível e priorizam ganhar eleições em vez de governar no interesse dos eleitores.
DD
E o que é irônico é que o trabalho deles é criar uma ponte com os eleitores, quando, na verdade, eles são fundamentalmente parte dessa máquina que está criando o fosso entre os eleitores e o partido. Existe essa ideia prevalecente, até mesmo no próprio relato dos promotores da Terceira Via, de que a virada neoliberal dos partidos de esquerda estava simplesmente seguindo os eleitores para o centro. E isso é algo que acho que você escreve que é replicado na noção da ciência política do eleitor mediano.
Mas você escreve que esse não é, de todo, o caso e tem muitos dados e gráficos no seu livro. Muitos mesmo. O apoio aos partidos de esquerda, na verdade, caiu após os promotores da Terceira Via terem transformado seus partidos. A participação eleitoral também caiu e o apoio a partidos de esquerda radical e de extrema-direita subiu. E você escreve que, dessa forma, “políticas da terceira via significaram a auto-sabotagem dos partidos de centro-esquerda que, então, tiveram que depender de Relações Públicas para vencer eleições”. Partidos de esquerda neoliberalizados disseram que o antigo modelo não funcionava em uma economia recém-globalizada, mas você escreve que, na verdade, em cada um desses casos foram os promotores da Terceira Via que ajudaram a criar as condições econômicas, especialmente da globalização, às quais eles alegavam que estavam respondendo. E, enquanto nos Estados Unidos a densidade sindical começou a cair nos anos 1960, o declínio chegou muito mais tarde no Reino Unido e na Alemanha e nunca chegou na Suécia. De fato, você escreve que a virada neoliberal da Suécia veio quando a densidade sindical estava crescendo.
Então, você argumenta que, de fato, o fator-chave aqui foi esse divórcio entre sindicatos e partidos de esquerda, mas que foi a neoliberalização dos partidos de esquerda — e não condições externas, fora de seu controle ou puramente econômicas — que conduziu o processo. Foi algo político. Como essas relações causais foram viradas de cabeça para baixo?
SLM
Uma das primeiras coisas que você mencionou foi essa ideia do eleitor mediano ou “o centro”. O DLC está preocupado em reconstruir o apelo do partido para a classe média ou para o mainstream. Então, isso se revela, se olharmos para isso agora, historicamente falando, uma corrida dos partidos de centro-esquerda nos anos da Terceira Via para o “centro” — mas não havia ninguém realmente lá.
“A ideia do ‘eleitor mediano’ vem de uma ideia de mercado da política democrata em que os partidos ou os políticos são fornecedores e os eleitores são demandantes.”
A ideia do “eleitor mediano” vem de uma ideia de mercado da política democrata em que os partidos ou os políticos são fornecedores e os eleitores são demandantes e os partidos irão convergir para a posição mediana ou “o eleitor mediano”, o que funciona bem matemática e abstratamente. Mas, na prática, como uma categoria estatística, o eleitor mediano realmente não existe de nenhum modo estável. Essa é uma invenção da imaginação social-científica. É semelhante à substituição dos interesses econômicos das pessoas pela imaginação do mercado. É substituir os eleitores reais por essa categoria do eleitor mediano.
DD
Uma abstração.
SLM
Certo. E depois, isso permite que as pessoas configurem todo o tipo de coisas. Então, no caso do DLC, quando eles dão um rosto para essa abstração, qual é o rosto? É o homem branco da classe média ou da classe trabalhadora. Esse é o eleitor mediano. É um termo que está desligado das efetivas realidades políticas ou dos efetivos interesses dos eleitores. E eu penso que isso pode, na verdade, obscurecer a própria compreensão dos políticos sobre o seu lugar na História, sobre as consequências ou implicações das decisões que eles tomaram. Porque eles podem sempre afirmar: “Mas não tivemos escolha. Não tivemos escolha. Não tivemos escolha.”
Essa é a realidade deles e eu não consigo persuadi-los de que não é assim. E não estou certa do que isso faria de bom. É a história de uma substituição progressiva de uma comunicação bidirecional significativa com eleitores e eleitorados por abstrações do eleitor mediano e do mercado. Não foi uma decisão estratégica fazer isso. Mas era isso que estava acontecendo. E então o que acontece depois, e fui influenciada especialmente pelo cientista político Peter Mair, é esse vazio. Ele tem um artigo, “Ruling the Void”, sobre governos e partidos que estão governando em nome de interesses de um terreno democrático que está basicamente esvaziado de pessoas. Onde você tem declínio da participação eleitoral, declínio da filiação partidária e sinais crescentes de alienação. É uma política que foi prejudicial a curto prazo, mas que também é prejudicial a longo prazo. Porque, quando você tem esse partidos bem estabelecidos, em que a experiência das pessoas com eles é que falam cada vez menos para elas de um modo substancial, não dá para voltar atrás. Não dá para voltar atrás e dizer: “Nos desculpem, agora somos realmente a favor de investir em infraestrutura e na indústria nacional. E somos a favor dos sindicatos.” Não dá para voltar atrás. Existe uma memória geracional. Você perdeu a confiança delas.
DD
Essa é, então, a história de fundo do colapso da “red wall” [muralha vermelha] do Partido Trabalhista nas eleições de 2019, ou da Virgínia Ocidental, ou da “iron range” [faixa de ferro] do Minnesota ou do Vale do Mahoning no Ohio? Porque, no caso britânico, a derrota dos trabalhistas foi atribuída a Corbyn por ser demasiado de esquerda. Mas será que uma forma mais apropriada de olhar para isso é que foi, de fato, a virada neoliberal dos trabalhistas, iniciada décadas antes, que realmente lançou as bases para essa perda histórica? Foi esse rompimento neoliberalizado do Partido Trabalhista com sua base sindical que acabou minando o apelo anti-neoliberal de Corbyn?
Parece que, no Reino Unido e nos Estados Unidos, a neoliberalização dos partidos de esquerda desempenhou esse papel decisivo em refazer os termos do debate, refazer as subjetividades políticas das pessoas, refazer as relações políticas, de tal forma que não existe mais um mecanismo institucionalizado no qual uma política de esquerda, baseada nos sindicatos e na classe trabalhadora, possa ocorrer.
SLM
Sim, eu acho que o que você está falando com o colapso da “red wall” dos trabalhistas é que, em 2019, os conservadores venceram em lugares como as Midlands [Terras Médias] e o Norte, lugares que haviam sido áreas sólidas dos trabalhistas por várias gerações. Mas tem essa coisa que acontece com o New Labour e depois, que é que — não importa o que aconteça, não importa qual seja o resultado eleitoral, não importa como os trabalhistas se saiam — o argumento dominante é sempre: “Ele foram demasiado para a esquerda”. É impermeável à experiência. Não importa se eles ganham, não importa se eles perdem. O argumento é sempre: “Se eles ganham, é porque foram o suficiente para o centro. Se eles perdem é porque foram demasiado para a esquerda.”
Parte do que está ocorrendo é que as pessoas, quando fazem esse argumento, estão pensando em termos de posições políticas. Mas muito do que estou argumentando aqui é que, em parte, se tratade posições políticas; mas, em parte, se trata de até que ponto os partidos estão organizados de modo a que eles realmente comuniquem com as pessoas e facilitem a comunicação entre os partidos e as pessoas que eles querem representar ou que efetivamente representam. Poderíamos argumentar que a história do resultado de 2019 no Reino Unido teve a ver com as políticas pró-mercado, que basicamente o Partido Trabalhista minou sua própria base quando fez isso.
Mas acho que o argumento que estou fazendo é um pouco diferente, que é realmente mais próximo do argumento de Peter Mair, que é o seguinte: o que está subjacente a essa extração das raízes [ideológicas] do partido é um colapso de sua capacidade de comunicar de forma substancial com seu eleitorado. No processo, o que eles fazem é substituir os eleitores por esses imaginários — o imaginário do mercado, o imaginário do eleitor mediano — e depois acabam fazendo o que parece para as pessoas na base um tipo de política de isca e anzol, em que eles argumentam convictamente: “Isto é o que as pessoas querem. Esta é a solução. E vai funcionar no interesse de vocês.” Mas não funcionou no interesse delas.
E o mesmo vale para a Virgínia Ocidental. A Virgínia Ocidental costumava ser um estado de voto democrata azul-sólido [o azul é a cor do Partido Democrata], especialmente entre trabalhadores das minas de carvão. E isso colapsou. Em parte, tem a ver as políticas públicas e seu falhanço; mas, em parte, tem a ver com a política de isca e anzol. Os eleitores não confiam nos democratas, mesmo que os democratas digam: “Somos pró-sindicatos”, mesmo que eles digam: “Vamos cuidar de vocês, vamos ajudá-los a encontrar novas oportunidades, vamos investir em novas atividades que vão fornecer oportunidades de emprego e vamos realizar cursos de formação”. As pessoas não acreditam neles. Não dá para simplesmente pressionar um botão político e falar as frases certas ou as palavras certas, ou dar a lista certa de políticas e trazer essas pessoas de volta.
DD
Sim. Bernie e Corbyn estão lutando contra a política que criou esse vazio. Mas o vazio está lá e eles não são credíveis nesse contexto.
SLM
Eu ainda acho — e aqui vou falar especialmente sobre o caso estadunidense porque é aquele que conheço melhor — que existe um certo tipo de surdez tonal. Ainda existe essa ideia de que “basta pressionar os botões certos, basta falar a coisa certa, basta fornecer a lista certa de políticas e também basta esperar que a demografia mude em nossa direção…” como se, quanto mais o eleitorado se tornasse diversificado, com mais eleitores não-brancos, mais as coisas simplesmente se moveriam em nossa direção. Como se tivesse algo em nascer na categoria hispânica do Censo que significasse que você seria geneticamente um eleitor democrata. Isso é um absurdo.
Mas existe essa ideia de que a combinação da análise da demografia com as inclinações políticas que eles atribuem a certas categorias demográficas — e depois se eles simplesmente derem ênfase para certas questões políticas — vai, de alguma forma, restabelecer a confiança e as pessoas vão voltar [para os democratas]. Mas, desde o início, a experiência dos eleitores é uma coisa totalmente diferente. É uma relação. É uma cultura. É uma linguagem. É uma identidade. Isso se reflete em todo o tipo de coisas fora de suas decisões de voto em um dia de eleição.
E, tanto no caso do SAP como no de Hilferding, e obviamente esta é uma avaliação política subjetiva, poderíamos argumentar que eram as pessoas ligadas ao movimento sindical e não à intelectualidade do partido que estavam certas. O que isso revela sobre esse problema da relação entre intelectuais do partido e movimento sindical, um problema que vem sendo identificado há muito tempo, como você refere, desde o famoso argumento de Robert Michels sobre “a lei de ferro da oligarquia”?
SLM
Sim, esse é um problema espinhoso sobre o qual existe meio que uma controvérsia. Talvez isso ocorra, na verdade, em todos os partidos ou em toda a política? Existe uma tensão potencial entre fazer as coisas com base em princípios, e isso pode incluir princípios baseados nos compromissos intelectuais de alguém, versus a estratégia, que provavelmente envolverá ceder nesses princípios ou compromissos intelectuais de alguém. Então, existe uma longa tensão entre essas duas coisas que é especialmente profunda nas discussões sobre a esquerda e na intelectualidade marxista, porque as pessoas que estão sendo representadas são grupos que historicamente não estão representados, ou que são menos poderosos, com menos recursos.
Então, se a atuação baseada em princípios prevalecer sobre a disposição estratégica de negociar entre grupos, incluindo eleitorados, depois você tem um problema muito difícil. Isso vem desde o teórico italiano Antonio Gramsci, que fala sobre o intelectual orgânico. O que ele realmente está falando é sobre intelectuais que estão ancorados na classe trabalhadora, que têm uma posição de classe específica. E o que eu argumento no livro é que, na verdade, o que os intelectuais fazem no contexto dos partidos políticos, se estiverem atuando corretamente, é uma intermediação. Em outras palavras, eles se movem entre as lideranças do partido, os eleitos, os governantes e os eleitores na base, e fornecem essa conexão comunicativa entre ambos em que eles estão ancorados nos eleitores o suficiente para meio que falar em nome de sua experiência e ajudá-los a sustentar sua própria compreensão sobre sua experiência e sua identidade política. Mas eles também conseguem levar essa compreensão para a elaboração de políticas públicas.
A forma como penso sobre isso é que temos sempre intelectuais na vida política, porque uma das coisas que os partidos fazem é falar em nome das pessoas. E não estão falando apenas através das vozes das pessoas. Há um processo intelectual em que os partidos estão interpretando a situação das pessoas, o que elas querem e o que vai funcionar em seu interesse.
Existe um processo de tradução que ocorre e essa tradução pode ser eficaz. Pode articular efetivamente os interesses das pessoas, ou pode não representar realmente esses grupos de todo. Podemos ter intelectuais que representam os mercados, que não são grupos de nenhum tipo. E essas figuras não têm a capacidade intermediária de tradução e comunicação que os intelectuais que falam em nome dos eleitorados têm. Em outras palavras, se o principal intelectual intermediário nas redes dos partidos de esquerda é um intelectual que fala pelos interesses dessas forças não territoriais por aí chamadas “mercados”, então o que ele está realmente fazendo é limitar a margem desses partidos para lidar diretamente com as preocupações, experiências e problemas do eleitorado. Logo, o que temos, em vez disso, é um ponto de partida em que a liderança do partido começa atuando com base em uma aceitação da necessidade de representar os interesses dos mercados.
DD
Então por que os partidos de esquerda neoliberalizados se viraram para spin doctors [especialistas em comunicação e em retorcer a informação ao seu favor], em vez de entender que o motivo pelo qual eles precisavam de estrategistas era que suas políticas econômicas não eram populares e que eles estavam, de fato, erodindo sua base de apoio na classe trabalhadora? Qual é a causa principal para isso?
SLM
Eu acho que uma das causas principais que sustentam isso é o que, por vezes, chamo de atomização da política. E efetivamente falo no livro sobre a profissionalização da política. Em outras palavras, quando avançamos de FDR para Clinton, o que vemos é que os políticos da geração de Clinton se movem nesse mundo político que é completamente diferente do mundo político nacional nos anos FDR.
Não estou dizendo aqui que um é melhor do que o outro. Estou simplesmente dizendo que é diferente e uma das principais coisas que são diferentes é a medida em que o mundo da política democrata está profissionalizado. Então, existem todos esses think tanks diferentes, que se especializam em produzir recomendações políticas específicas sobre questões políticas específicas. E tem um mundo de consultores políticos que realmente não existe antes dos anos 1970 e 1980, e isso se torna incrivelmente dominante no mundo.
O papel dos consultores políticos hoje é impossível de negar. Até poderíamos ver, se fossemos olhar para a trajetória dos debates presidenciais, o grau em que os debates se tornam um espetáculo em que depois as pessoas estão comentando sobre quem ganhou. Não é deixado simplesmente aos eleitores decidir tranquilamente quem ganha o debate. Temos o representante de uma candidatura e o consultor da outra candidatura e eles estão debatendo depois. Então, é essa câmara de eco e vemos isso nos anos Clinton. Vemos isso se desenvolvendo na Suécia nos anos 1990. Vemos isso se desenvolvendo na Alemanha. Vemos isso se desenvolvendo no Reino Unido, esse mundo profissionalizado da política em que você, se for um político como Blair ou Clinton, está imerso nesse tipo de mundo: uma política profissionalizada que está isolada de tudo o resto e se torna internamente referencial.
E então, eles se movem em um mundo onde as possibilidades políticas — o senso comum desse mundo, a linguagem que pode ser usada — se tornam muito restringidas. Por que ocorre a eles que, subitamente, precisam desse tipo de pessoas mentirosas para vender suas políticas econômicas para pessoas que não vão gostar delas?
A resposta mais simples é que falamos de pessoas como quaisquer outras. E tendemos a interpretar o significado das coisas de acordo com nossa experiência imediata. Avaliamos o que é possível e o que é impensável de acordo com o que faz sentido no nosso mundo, esse mundo fechado onde os parâmetros da discussão política e do debate sobre políticas públicas estão tão restringidos e são crescentemente controlados ou dominados por profissionais que, na verdade, não estão preocupados com a longevidade de um determinado partido político em termos de desenvolver grandes técnicas de gestão econômica.
DD
Dick Morris é um exemplo disso.
SLM
Certo. São contratados para ajudar os políticos a ganhar eleições e permanecer no poder e vencer em certos assuntos. Basicamente, há toda essa camada de redes que fazem toda essa interpretação do que é possível e priorizam ganhar eleições em vez de governar no interesse dos eleitores.
DD
E o que é irônico é que o trabalho deles é criar uma ponte com os eleitores, quando, na verdade, eles são fundamentalmente parte dessa máquina que está criando o fosso entre os eleitores e o partido. Existe essa ideia prevalecente, até mesmo no próprio relato dos promotores da Terceira Via, de que a virada neoliberal dos partidos de esquerda estava simplesmente seguindo os eleitores para o centro. E isso é algo que acho que você escreve que é replicado na noção da ciência política do eleitor mediano.
Mas você escreve que esse não é, de todo, o caso e tem muitos dados e gráficos no seu livro. Muitos mesmo. O apoio aos partidos de esquerda, na verdade, caiu após os promotores da Terceira Via terem transformado seus partidos. A participação eleitoral também caiu e o apoio a partidos de esquerda radical e de extrema-direita subiu. E você escreve que, dessa forma, “políticas da terceira via significaram a auto-sabotagem dos partidos de centro-esquerda que, então, tiveram que depender de Relações Públicas para vencer eleições”. Partidos de esquerda neoliberalizados disseram que o antigo modelo não funcionava em uma economia recém-globalizada, mas você escreve que, na verdade, em cada um desses casos foram os promotores da Terceira Via que ajudaram a criar as condições econômicas, especialmente da globalização, às quais eles alegavam que estavam respondendo. E, enquanto nos Estados Unidos a densidade sindical começou a cair nos anos 1960, o declínio chegou muito mais tarde no Reino Unido e na Alemanha e nunca chegou na Suécia. De fato, você escreve que a virada neoliberal da Suécia veio quando a densidade sindical estava crescendo.
Então, você argumenta que, de fato, o fator-chave aqui foi esse divórcio entre sindicatos e partidos de esquerda, mas que foi a neoliberalização dos partidos de esquerda — e não condições externas, fora de seu controle ou puramente econômicas — que conduziu o processo. Foi algo político. Como essas relações causais foram viradas de cabeça para baixo?
SLM
Uma das primeiras coisas que você mencionou foi essa ideia do eleitor mediano ou “o centro”. O DLC está preocupado em reconstruir o apelo do partido para a classe média ou para o mainstream. Então, isso se revela, se olharmos para isso agora, historicamente falando, uma corrida dos partidos de centro-esquerda nos anos da Terceira Via para o “centro” — mas não havia ninguém realmente lá.
“A ideia do ‘eleitor mediano’ vem de uma ideia de mercado da política democrata em que os partidos ou os políticos são fornecedores e os eleitores são demandantes.”
A ideia do “eleitor mediano” vem de uma ideia de mercado da política democrata em que os partidos ou os políticos são fornecedores e os eleitores são demandantes e os partidos irão convergir para a posição mediana ou “o eleitor mediano”, o que funciona bem matemática e abstratamente. Mas, na prática, como uma categoria estatística, o eleitor mediano realmente não existe de nenhum modo estável. Essa é uma invenção da imaginação social-científica. É semelhante à substituição dos interesses econômicos das pessoas pela imaginação do mercado. É substituir os eleitores reais por essa categoria do eleitor mediano.
DD
Uma abstração.
SLM
Certo. E depois, isso permite que as pessoas configurem todo o tipo de coisas. Então, no caso do DLC, quando eles dão um rosto para essa abstração, qual é o rosto? É o homem branco da classe média ou da classe trabalhadora. Esse é o eleitor mediano. É um termo que está desligado das efetivas realidades políticas ou dos efetivos interesses dos eleitores. E eu penso que isso pode, na verdade, obscurecer a própria compreensão dos políticos sobre o seu lugar na História, sobre as consequências ou implicações das decisões que eles tomaram. Porque eles podem sempre afirmar: “Mas não tivemos escolha. Não tivemos escolha. Não tivemos escolha.”
Essa é a realidade deles e eu não consigo persuadi-los de que não é assim. E não estou certa do que isso faria de bom. É a história de uma substituição progressiva de uma comunicação bidirecional significativa com eleitores e eleitorados por abstrações do eleitor mediano e do mercado. Não foi uma decisão estratégica fazer isso. Mas era isso que estava acontecendo. E então o que acontece depois, e fui influenciada especialmente pelo cientista político Peter Mair, é esse vazio. Ele tem um artigo, “Ruling the Void”, sobre governos e partidos que estão governando em nome de interesses de um terreno democrático que está basicamente esvaziado de pessoas. Onde você tem declínio da participação eleitoral, declínio da filiação partidária e sinais crescentes de alienação. É uma política que foi prejudicial a curto prazo, mas que também é prejudicial a longo prazo. Porque, quando você tem esse partidos bem estabelecidos, em que a experiência das pessoas com eles é que falam cada vez menos para elas de um modo substancial, não dá para voltar atrás. Não dá para voltar atrás e dizer: “Nos desculpem, agora somos realmente a favor de investir em infraestrutura e na indústria nacional. E somos a favor dos sindicatos.” Não dá para voltar atrás. Existe uma memória geracional. Você perdeu a confiança delas.
DD
Essa é, então, a história de fundo do colapso da “red wall” [muralha vermelha] do Partido Trabalhista nas eleições de 2019, ou da Virgínia Ocidental, ou da “iron range” [faixa de ferro] do Minnesota ou do Vale do Mahoning no Ohio? Porque, no caso britânico, a derrota dos trabalhistas foi atribuída a Corbyn por ser demasiado de esquerda. Mas será que uma forma mais apropriada de olhar para isso é que foi, de fato, a virada neoliberal dos trabalhistas, iniciada décadas antes, que realmente lançou as bases para essa perda histórica? Foi esse rompimento neoliberalizado do Partido Trabalhista com sua base sindical que acabou minando o apelo anti-neoliberal de Corbyn?
Parece que, no Reino Unido e nos Estados Unidos, a neoliberalização dos partidos de esquerda desempenhou esse papel decisivo em refazer os termos do debate, refazer as subjetividades políticas das pessoas, refazer as relações políticas, de tal forma que não existe mais um mecanismo institucionalizado no qual uma política de esquerda, baseada nos sindicatos e na classe trabalhadora, possa ocorrer.
SLM
Sim, eu acho que o que você está falando com o colapso da “red wall” dos trabalhistas é que, em 2019, os conservadores venceram em lugares como as Midlands [Terras Médias] e o Norte, lugares que haviam sido áreas sólidas dos trabalhistas por várias gerações. Mas tem essa coisa que acontece com o New Labour e depois, que é que — não importa o que aconteça, não importa qual seja o resultado eleitoral, não importa como os trabalhistas se saiam — o argumento dominante é sempre: “Ele foram demasiado para a esquerda”. É impermeável à experiência. Não importa se eles ganham, não importa se eles perdem. O argumento é sempre: “Se eles ganham, é porque foram o suficiente para o centro. Se eles perdem é porque foram demasiado para a esquerda.”
Parte do que está ocorrendo é que as pessoas, quando fazem esse argumento, estão pensando em termos de posições políticas. Mas muito do que estou argumentando aqui é que, em parte, se tratade posições políticas; mas, em parte, se trata de até que ponto os partidos estão organizados de modo a que eles realmente comuniquem com as pessoas e facilitem a comunicação entre os partidos e as pessoas que eles querem representar ou que efetivamente representam. Poderíamos argumentar que a história do resultado de 2019 no Reino Unido teve a ver com as políticas pró-mercado, que basicamente o Partido Trabalhista minou sua própria base quando fez isso.
Mas acho que o argumento que estou fazendo é um pouco diferente, que é realmente mais próximo do argumento de Peter Mair, que é o seguinte: o que está subjacente a essa extração das raízes [ideológicas] do partido é um colapso de sua capacidade de comunicar de forma substancial com seu eleitorado. No processo, o que eles fazem é substituir os eleitores por esses imaginários — o imaginário do mercado, o imaginário do eleitor mediano — e depois acabam fazendo o que parece para as pessoas na base um tipo de política de isca e anzol, em que eles argumentam convictamente: “Isto é o que as pessoas querem. Esta é a solução. E vai funcionar no interesse de vocês.” Mas não funcionou no interesse delas.
E o mesmo vale para a Virgínia Ocidental. A Virgínia Ocidental costumava ser um estado de voto democrata azul-sólido [o azul é a cor do Partido Democrata], especialmente entre trabalhadores das minas de carvão. E isso colapsou. Em parte, tem a ver as políticas públicas e seu falhanço; mas, em parte, tem a ver com a política de isca e anzol. Os eleitores não confiam nos democratas, mesmo que os democratas digam: “Somos pró-sindicatos”, mesmo que eles digam: “Vamos cuidar de vocês, vamos ajudá-los a encontrar novas oportunidades, vamos investir em novas atividades que vão fornecer oportunidades de emprego e vamos realizar cursos de formação”. As pessoas não acreditam neles. Não dá para simplesmente pressionar um botão político e falar as frases certas ou as palavras certas, ou dar a lista certa de políticas e trazer essas pessoas de volta.
DD
Sim. Bernie e Corbyn estão lutando contra a política que criou esse vazio. Mas o vazio está lá e eles não são credíveis nesse contexto.
SLM
Eu ainda acho — e aqui vou falar especialmente sobre o caso estadunidense porque é aquele que conheço melhor — que existe um certo tipo de surdez tonal. Ainda existe essa ideia de que “basta pressionar os botões certos, basta falar a coisa certa, basta fornecer a lista certa de políticas e também basta esperar que a demografia mude em nossa direção…” como se, quanto mais o eleitorado se tornasse diversificado, com mais eleitores não-brancos, mais as coisas simplesmente se moveriam em nossa direção. Como se tivesse algo em nascer na categoria hispânica do Censo que significasse que você seria geneticamente um eleitor democrata. Isso é um absurdo.
Mas existe essa ideia de que a combinação da análise da demografia com as inclinações políticas que eles atribuem a certas categorias demográficas — e depois se eles simplesmente derem ênfase para certas questões políticas — vai, de alguma forma, restabelecer a confiança e as pessoas vão voltar [para os democratas]. Mas, desde o início, a experiência dos eleitores é uma coisa totalmente diferente. É uma relação. É uma cultura. É uma linguagem. É uma identidade. Isso se reflete em todo o tipo de coisas fora de suas decisões de voto em um dia de eleição.
Colaboradores
Daniel Denvir é o autor de All-American Nativism (a ser lançado em breve pela Verso Books), um escritor residente no The Appeal, e anfitrião do "The Dig" na Jacobin Radio.
Stephanie L. Mudge é professora associada de sociologia na Universidade da California em Davis e autora de Leftism Reinvented: Western Parties from Socialism to Neoliberalism.
Nenhum comentário:
Postar um comentário