3 de novembro de 2022

Herança maldita é a do governo Bolsonaro, não a de FHC, diz Appy

Ex-secretário de Lula nega que tenha recebido convite para novo governo: "Só se discute equipe depois que se define o ministro da Fazenda"

Eduardo Cucolo

Folha de S.Paulo

A herança de Jair Bolsonaro (PL) na área fiscal será um dos maiores desafios para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). De um lado, o presidente eleito terá de encontrar espaço para cumprir promessas de campanha, sob risco de perda de popularidade e de governabilidade já no início de mandato. De outro, precisa passar aos mercados sinais de responsabilidade na gestão das contas públicas.

A situação é bem diferente da encontrada há 20 anos pelo economista Bernard Appy, que na época ocupou um dos cargos mais importantes no Ministério da Fazenda e hoje é visto como um dos nomes cotados para tocar uma reforma do sistema tributário no governo petista.

O economista Bernard Appy, diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal) - Reinaldo Canato-10.abr.2019/Folhapress

Em entrevista à Folha, Appy, que é diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal) e autor de uma das propostas de reforma tributária que estão no Congresso, afirma que verdadeira herança maldita é a que será deixada pela atual governo: medidas de aumento de despesa e redução de receitas com impacto de quase 4% do PIB (Produto Interno Bruto), cerca de R$ 350 bilhões. Também fala sobre especulações sobre cargo no novo governo.

Como estão as conversas com a equipe do presidente eleito? Há algum convite para participar do governo? Não recebi nenhum convite. Nem faria sentido. Só se discute equipe depois que se define o ministro da Fazenda. Não tem nada. Quem decide a equipe é o ministro da Fazenda.

O sr. foi secretário-executivo do Ministério da Fazenda no primeiro governo Lula e também coordenou reformas no segundo mandato. É possível fazer um paralelo em relação às dificuldades que o governo vai enfrentar em 2023 e a situação de 20 anos atrás? Desde o final de 2021, em termos anualizados, as medidas de aumento de despesa ou redução de receitas adotadas pelo governo federal, mas com impacto sobre União, estados e municípios, chegam a quase 4% do PIB. Isso está sendo compensado pela alta arrecadação vinculada à alta do preço de commodities, sobretudo de petróleo. Se o petróleo voltar à normalidade, claramente vai aparecer uma deterioração do resultado fiscal.

Você tem o desafio de cumprir promessas de campanha e, na situação política do Brasil hoje, o novo governo não pode correr o risco de ter uma perda de popularidade muito grande no início, porque seria ruim para a governabilidade. Ao mesmo tempo, a situação internacional dificulta ter uma política fiscal que seja vista como irresponsável. É só ver o que aconteceu no Reino Unido. Eu diria que é uma situação bastante desafiadora.

Em 2003, havia desconfiança do mercado em relação ao novo governo, e adotou-se uma política econômica bem ortodoxa. Em 2003, você tinha um fator que não existe hoje, e que era extremamente relevante, que era uma situação das contas externas muito frágil, reservas internacionais muito baixas, e não tinha como correr o risco de ter uma fuga de capital. O impacto na época seria maior do que hoje.

Por outro lado, não existia esse grau de desajuste fiscal que a gente está vendo hoje. A herança maldita é a herança do governo Bolsonaro. Não tem nada a ver com a herança do Fernando Henrique. No caso do governo Fernando Henrique, o grosso do ajuste fiscal já tinha sido feito. Foi feita uma parcela adicional em 2003. Agora, a gente está herdando um conjunto de medidas que em um ano aumentou despesas e reduziu receitas na ordem de 4% do PIB.

Uma agenda de reformas sendo tocada já nesse primeiro ano de governo pode ajudar a dar uma perspectiva positiva para as contas públicas, pelo menos no médio prazo? Uma agenda que aumente o potencial de crescimento, e portanto a arrecadação, não em proporção do PIB, mas em termos reais, junto com uma medida crível de controle das despesas, teria o efeito de gerar uma percepção maior de solvência do país no longo prazo.

O sr. tem conduzido debates em torno da reforma tributária do consumo há pelo menos 15 anos. Avalia que o próximo governo tem condições de aprová-la? Se o governo estiver disposto a colocar capital político para aprovar a reforma, as chances são grandes. Tem dois trabalhos relevantes: político e de comunicação. É preciso mostrar para os parlamentares e para a sociedade os efeitos positivos da reforma, o que talvez não tenha sido feito da forma ideal até agora. Com um grau razoável de concessões, tem como aprovar essa reforma. Se for prioridade para o governo.

Mas é preciso ver também qual vai ser a disposição dos novos governadores. Tinha-se obtido um consenso inédito de todos os secretários de Fazenda em torno da reforma tributária. Tem aí uma nova rodada de negociação. Há o apoio dos pequenos e médios municípios, e a resistência dos grandes municípios, mas tudo pode ser resolvido com uma boa negociação.

O plano de governo do presidente eleito destaca a questão da reindustrialização do país. A reforma tributária pode ajudar nessa questão? Todos os setores da economia são beneficiados pela reforma, mas o mais beneficiado é o industrial. Não porque vai ser favorecido, mas porque é o mais prejudicado pelas distorções do sistema tributário atual, distorções que oneram investimentos e reduzem a competitividade da produção brasileira tanto no mercado doméstico como nas exportações. Uma boa reforma da tributação do consumo corrige essas distorções.

Como a reforma se encaixa no plano do futuro governo de aumento na tributação dos mais ricos? Adotando uma alíquota uniforme na tributação de bens e serviços, você teria um efeito distributivo positivo, porque hoje no Brasil serviços são menos tributados do que bens, e ricos consomem muito mais serviços do que os pobres. Como proporção do consumo, rico paga menos imposto que pobre no Brasil.

Além disso, a reforma prevê um sistema de devolução do imposto para as famílias de baixa renda, que a gente chama de isenção personalizada. Em vez de isentar o produto, você isenta a pessoa. Com um limite, para não ter fraude. Esses dois componentes têm um efeito distributivo bastante positivo. Fora isso, tem a discussão da tributação da renda, que é muito importante também.

A questão do Imposto de Renda, com correção da tabela e tributação de lucros e dividendos, deveria caminhar junto com a reforma do consumo? São reformas complementares. Do ponto de vista político, tratar das duas simultaneamente é positivo. Não tem nenhuma contradição entre a reforma do consumo, da tributação da renda e, eventualmente, da folha de salários também.

O Centro de Cidadania Fiscal tem defendido que existe espaço para aumentar a tributação da renda no Brasil, e esse espaço deveria ser utilizado para desonerar a folha de pagamentos na faixa de até um salário mínimo. É uma medida que tem impacto positivo na formalização, o que faz com o trabalhador se torne mais produtivo.

Um projeto do Ministério da Economia que trata do Imposto de Renda já foi aprovado pela Câmara, mas parou no Senado e foi muito criticado por tributaristas e pelas empresas. Essa proposta resolve a questão? É um projeto com muitos problemas. Um dos mais sérios é que ele passou com uma previsão de isenção na distribuição de dividendos para empresas com faturamento de até R$ 4,8 milhões por ano. Você tem casos em que sócios dessas empresas, que já pagam hoje pouquíssimo Imposto de Renda, por exemplo, no caso de empresas pejotizadas e profissionais liberais de alta renda, pagariam ainda menos com essa mudança. Adicionalmente, isso cria um incentivo para fragmentação de empresas.

A forma como passou esse projeto na Câmara é muito ruim do ponto de vista distributivo, porque agravaria a baixa tributação de pessoas que já têm altíssima renda hoje. Do jeito que está esse projeto, não deveria ser aprovado.

RAIO-X

Bernard Appy, 60, diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal). Economista e ex-secretário-executivo e de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2009). Foi diretor de Estratégia e Planejamento da BM&F Bovespa (atual B3) e sócio-diretor da LCA Consultores.

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