18 de fevereiro de 2024

Como o futebol formou a classe trabalhadora

Na Inglaterra pré-moderna, os camponeses organizavam jogos de futebol em terrenos fechados. Hoje, os torcedores se reuniram para comprar times de proprietários corruptos. O belo jogo sempre moldou a cultura das classes populares, apesar das influências financeiras.

Bartolomeo Sala

Jacobin

Meninos jogando futebol em Londres em 8 de abril de 1950. (Haywood Magee/Picture Post/Hulton Archive/Getty Images)

Tradução / As As provas da natureza desagradável do futebol moderno são infindáveis: milhares de trabalhadores migrantes que morreram enquanto construíam estádios com ar-condicionado no Qatar para a última edição da Copa do Mundo; o Manchester City vencendo a Liga dos Campeões devido a 115 violações das leis de fair play financeiro da UEFA; empresas de private equity que estão de olho nos dois maiores clubes de Milão para que possam demolir o San Siro e lucrar com a construção de novos estádios; o Barcelona vendeu centenas de milhões em ativos – para não falar de pedaços reais do Camp Nou – para financiar o mesmo estilo de gestão imprudente que desorganizou o clube, dentro e fora de campo. Inegavelmente, este lindo jogo tem se tornado, cada vez mais, especialmente feio.

Em A People’s History of Football (Uma História Popular do Futebol, em tradução livre), o jornalista independente francês e correspondente do Le Monde Diplomatique, Mickaël Correia, argumenta que as coisas nem sempre foram assim – ou pelo menos não de uma forma tão grotescamente indefensável. O esporte mais popular do mundo tem uma história alternativa, “antiestablishment”, que Correia procura desvelar e defender. Embora se concentre no “aspecto subversivo” do futebol, Correia não é um romântico. “O futebol globalizado”, ele nos lembra logo no início do livro, “tornou-se… a personificação dos piores excessos do capitalismo desenfreado.”

A People’s History of Football deixou neste leitor a sensação melancólica de que uma visão alternativa e popular do jogo está desaparecendo rapidamente. Agora é inimaginável que um jogador, como fez o meio-campista brasileiro Sócrates em 1984, justificasse sua transferência para um clube italiano dizendo que isso lhe daria a oportunidade de ler Antonio Gramsci no original. No final do ano passado, o Tribunal de Justiça Europeu anunciou que as tentativas de proibir a Superliga – uma proposta para uma liga livre de rebaixamentos composta pelas equipes mais ricas – eram contrárias às leis estabelecidas. Esse é o cenário que parece se consolidar: os campos de futebol se transformaram em centros comerciais e os torcedores em consumidores passivos.

Correia não ignora estes fatos inconvenientes. No entanto, ele oferece como contraponto um relato em longue durée das origens subversivas do esporte. No final da Idade Média e no período da Renascença, o futebol popular – ou a sua versão francesa soule, na Normandia e na Bretanha – causou pânico moral, provocando a repreensão das autoridades eclesiásticas e dos senhores locais. Nesta forma antiga, as freguesias rivais se enfrentavam nos campos ao redor em um jogo cujo único objetivo era levar a bola para a praça da cidade rival. Ossos quebrados e concussões eram ocorrências comuns, mas o que incomodava os poderes constituídos era que esses “jogos rudes” muitas vezes evoluíam para atos de rebelião contra a ordem estabelecida. Correia relata um episódio registado em 1638 em Ely, Inglaterra, em que camponeses organizaram um jogo “com o objetivo de destruir deliberadamente os diques construídos para drenar os pântanos e convertê-los em terras aráveis”; a 110 quilômetros de distância, em West Haddon, os habitantes locais “se opuseram ao cercamento de 2.000 acres de terras comuns” e organizaram um jogo de futebol como “pretexto para destruir e queimar as novas cercas”.

Ele deixa claro como o desaparecimento deste tipo de futebol – mais parecido com uma festa popular do que com um esporte propriamente dito – está intimamente ligado à ascensão da modernidade, à monopolização do poder coercitivo nas mãos de Estados cada vez mais centralizados, bem como à privatização de terras agrícolas e a transformação dos terrenos comuns em “cercamentos” explorados pela crescente nobreza fundiária. O fato de o futebol ter as suas raízes nestes atos de rebelião explica o estranho sentido de ritual carnavalesco que persiste no jogo moderno, apesar do domínio que os interesses corporativos continuam a exercer sobre ele. O futebol ainda é o que o historiador Eric Hobsbawm descreveu como “a religião leiga do proletariado” e o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini chamou de “o último ritual sagrado do nosso tempo”.

O futebol ressurgiu como um passatempo politicamente significativo no final do século XIX. Foi inicialmente adotado como um instrumento para disciplinar rapazes desordeiros em escolas “públicas” britânicas – termo elegante para “privadas” – como Eton, o campo de treino de elite de vinte dos cinquenta e cinco primeiros-ministros britânicos. Aí, o jogo desenvolveu regras claramente definidas, concebidas, argumenta Correia, para incutir nos futuros membros da classe dominante um sentido de competição e sobriedade vital para as aspirações imperialistas britânicas. Só mais tarde é que o lindo jogo passou a ser associado à cultura da classe trabalhadora.

Ainda no século XIX, Liverpool, Manchester United, Arsenal e West Ham surgiram de sindicatos de estivadores, metalúrgicos, trabalhadores têxteis e mineiros. Correia mostra como essa cultura da classe trabalhadora inglesa do século XIX fazia parte de um novo modo de vida com símbolos e rituais próprios e distintivos. Embora geralmente difamado pela mídia, deu origem ao hooliganismo e à cultura dos ultras no Reino Unido e na Itália nas décadas de 1970 e 1980. Mais tarde, formou a base popular para tentativas de clubes de divisões inferiores, como Northampton Town F.C. e A.F.C. Wimbledon, de recomprar seus clubes depois que eles foram praticamente destruídos por empresários duvidosos em busca de dinheiro rápido.

Embora atento às suas origens britânicas, Correia trata o futebol como um fenômeno global, assumido por pessoas e grupos oprimidos em todo o mundo. Uma parte considerável de A People’s History of Football se concentra em histórias individuais de clubes específicos, torcidas organizadas e jogadores de futebol que, em diferentes momentos, atuaram como símbolo de resistência à reação e à repressão política. Ele cita o exemplo do Barcelona, ​​cujo lema més que un club (mais que um clube) surgiu durante a ditadura franquista entre 1939-1975. Na ocasião, o clube era um dos únicos redutos onde uma identidade catalã fortemente reprimida podia ser expressa e partilhada.

Correia dedica um capítulo inteiro à Democracia Corinthiana do Brasil, uma experiência de democracia direta liderada por jogadores de esquerda do Corinthians F.C., como Sócrates. O movimento instituiu um regime de autogestão no clube de futebol corintiano que ostentava abertamente a ideologia diretiva da junta militar que governou o país de 1964 a 1985. As camisas listradas em preto e branco do time, adornadas com os dizeres “Democracia Corinthiana”, se tornaram icônicas, e o Corinthians, que em seu auge também conquistou dois campeonatos estaduaisconsecutivos, liderou a ala cultural da luta pelo fim da ditadura.

Mais recentemente, no Oriente Médio, o futebol desempenhou um papel importante na mobilização das pessoas durante a Primavera Árabe. Tanto na Praça Tahrir, no Egito, como na Praça Taksim, na Turquia, os ultras atuaram quase como um braço armado organizado da resistência popular durante as fases iniciais das revoltas. Os precursores da tradição política mais recente do futebol do Oriente Médio podem, segundo Correia, ser encontrados na decisão tomada pelos jogadores argelinos em 1957 de boicotar a seleção francesa e fundar sua própria equipe nacional renegada. A França só os reconheceu como equipe após o fim da guerra de independência, o que desempenhou um papel crucial para dar visibilidade à luta argelina.

Passando da Europa da Idade Média para a Inglaterra do século XIX, o Brasil do século XX e o Oriente Médio, A People’s History of Football adota uma abordagem decididamente dispersa da história. Isto, no entanto, tem o mérito de capturar a natureza multifacetada deste lindo jogo, cujas dimensões contraditórias – religião proletária, veículo de investimento para os ultra ricos – são difíceis de unir.

É certo que alguns dos melhores capítulos de A People’s History são aqueles em que Correia não adota uma abordagem “estritamente” política, mas antes, trata o futebol como uma lente de aumento e um catalisador para as lutas que fermentam em diferentes partes da sociedade. Ele escreve de forma convincente sobre a Mão de Deus – o infame gol de mão de Diego Maradona nas quartas de final da Copa do Mundo do México de 1986 – que classifica como um ato de justiça poética contra os ingleses na Guerra das Malvinas. Este episódio, nos diz ele, resume perfeitamente a viveza criolla , a mistura particularmente argentina de inteligência, astúcia e desrespeito pelas regras que surge quando é preciso lutar para sair de circunstâncias desfavoráveis.

Ao contar a história do futebol como uma ferramenta de resistência popular, tanto de forma literal como metafórica, A People’s History of Football insiste de forma consistente no ponto de que, em última análise, o poder e o dinheiro controlam o jogo atualmente. Momentos em que a política invade o campo, por mais emocionantes que sejam, são exceções. Para que este espírito tomasse o futebol, seria necessário ocorrer uma mudança massiva na propriedade e no modelo de negócio do esporte. Correia é especialmente tímido em oferecer soluções ou caminhos a seguir; a sua história abraça contradições e ambiguidades: o futebol, na sua opinião, é um campo de batalha onde se repete incessantemente a eterna luta entre as forças populares e as elites econômicas e políticas. Nele, as probabilidades estão ligeiramente inclinadas a favor dos últimos. Embora não ofereça um plano real de como o lindo jogo pode ser devolvido às pessoas comuns, A People’s History fornece evidências de momentos breves e fugazes em que tal objetivo parecia possível.

Colaborador

Bartolomeo Sala é escritor freelance e leitor de livros baseado em Londres. Seus escritos foram publicados na Frieze, Vittles e também no Brooklyn Rail.

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