André Roncaglia
Professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP
Folha de S.Paulo
As perdas humanas e materiais, incalculáveis até o momento, seriam motivo de uma reflexão mais profunda sobre a forma como ocupamos o solo e lidamos com a natureza. Todavia, o negacionismo político se uniu ao seu homônimo climático de forma desavergonhada para ocultar uma causa central dessa tragédia: o desmonte dos instrumentos de planejamento e monitoramento do Estado pela mercantilização do espaço (urbano e rural).
Em seu livro "A Grande Transformação" (1944), Karl Polanyi nos alertou que "deixar o destino do solo e das pessoas para o mercado seria equivalente a aniquilá-los". A natureza "seria reduzida aos seus elementos, bairros e paisagens contaminados, rios poluídos... [e] o poder de produzir alimentos e matérias-primas destruído". Oitenta anos depois, insistimos na ilusão de dominar a natureza pela força da tecnologia, com a desculpa do progresso.
Bairro São José, em Lajeado (RS), nesta quinta (16) - Nelson Almeida/AFP |
A mão invisível do mercado desregula o termostato natural da Terra, produzindo um "mal público global" por excelência. Inescapável e regressiva, a mudança climática agride mais os mais pobres, menos preparados para lidar com ela.
A defesa convicta (e errônea) de que o Estado não deve se endividar para não onerar as gerações futuras com maior carga tributária fecha os olhos para os custos intertemporais do descaso ambiental e da ocupação desordenada do solo, sob a égide dos lucros imobiliários e do agronegócio.
Essa miopia interessada custa caro: cada R$ 1 gasto em prevenção ambiental economiza R$ 15 em recuperação pós-desastre. No caso gaúcho, a (des)proporção deve ser ainda maior.
Aqui entra o mote neoliberal "nunca desperdice uma crise séria", que aparece nas exortações de "não é hora de apontar culpados" e "não politizemos esta tragédia".
Instrumentaliza-se a união nacional para compartilhar os custos do descaso com adaptação e monitoramento climáticos. Convoca-se, então, o "Estado socorrista", desequipado e subfinanciado pela aversão à tributação da riqueza concentrada nas mansões e fazendas —em áreas de preservação, inclusive— e nas licitações milionárias de obras que atentam contra o meio ambiente e fragilizam a população urbana.
Tal irresponsabilidade se apoia na excepcionalidade das crises, que suspende a rigidez dos orçamentos públicos equilibrados e das dívidas com a União e mobiliza doações de compatriotas de todas as regiões. Vale até evocar o Plano Marshall, como fez o governador Eduardo Leite (PSDB), em ato falho que confessa sua cumplicidade na tragédia ao liderar o nocivo desmonte da política ambiental do estado.
A percepção do custo (humano e material) evitável se diluirá no pano de fundo da reconstrução do estado, ocultando as causas dessa tragédia amplamente anunciada. Há indícios de que a desfaçatez neoliberal não desperdiçará esta crise.
Primeiro, a gratidão seletiva de autoridades a bilionários esbanjando doações —módicas, frente à magnitude da catástrofe. Segundo o site Matinal, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), pretende reconstruir a cidade com a "parceria" —sem necessidade de licitação— da consultoria Alvarez & Marsal, famigerada por sugerir cortes no funcionalismo da cidade de Nova Orleans após o furacão Katrina, entre outras barbaridades relatadas pelo jornal New York Times. "Tudo deve mudar para que tudo fique como está".
Num país com 7,4 mil km de litoral, em que pululam praias artificiais em condomínios de luxo, soluções inteligentes, verdes e inclusivas —como as cidades-esponjas— parecem uma realidade distante.
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