Tony Judt
The Nation
Este artigo foi publicado na edição de 19 de julho de 2004. |
Tradução / Quando Edward Said morreu, em setembro de 2003, após batalhar por uma década contra a leucemia, era provavelmente o intelectual mais conhecido do mundo. Orientalismo, seu controvertido relato da apropriação do Oriente pela literatura e pelo pensamento europeu moderno, gerou uma subdisciplina acadêmica por conta própria: um quarto de século após sua publicação, a obra continua a provocar irritação, veneração e imitação. Mesmo que seu autor não tivesse feito mais nada, restringindo-se a lecionar na Universidade Columbia, em Nova York - onde trabalhou de 1963 até sua morte -, ele ainda teria sido um dos acadêmicos mais influentes do final do século XX.
Mas ele não viveu confinado. Desde 1967, cada vez com mais paixão e ímpeto, Edward Said tornou-se também um comentarista eloquente e onipresente da crise do Oriente Médio e defensor da causa dos palestinos. O engajamento moral e político não chegou a constituir um deslocamento da atenção intelectual de Said - sua crítica à incapacidade do Ocidente em entender a humilhação palestina ecoa, afinal, em seus estudos sobre o conhecimento e ficção do século XIX, presentes em Orientalismo e em obras subsequentes (notadamente Cultura e Imperialismo, publicada em 1993). Mas isso transformou o professor de literatura comparada em Columbia num intelectual notório, adorado ou execrado com igual intensidade por milhões de leitores.
Foi um destino irônico para um homem que não se encaixava em quase nenhum dos modelos que admiradores e inimigos lhe atribuíam. Edward Said passou a vida inteira tangenciando as várias causas com as quais foi associado. O "porta-voz" involuntário da maioria dos árabes muçulmanos da Palestina era cristão anglicano, nascido em 1935, filho de um batista de Nazaré. O crítico intransigente da condescendência imperial foi educado em algumas das últimas escolas coloniais que treinavam a elite nativa nos impérios europeus; por muitos anos falou com mais facilidade inglês e francês do que árabe, sendo um exemplo destacado da educação ocidental com a qual jamais se identificaria totalmente.
Edward Said foi o herói idolatrado por uma geração de relativistas culturais em universidades de Berkeley a Mumbai, para quem o "orientalismo" estava por trás de tudo, desde a construção de carreiras no obscurantismo “pós-colonial” até denúncias de "cultura ocidental" no currículo acadêmico. Mas o próprio Said não tinha tempo para essas bobagens. A noção de que tudo não passava de efeito linguístico lhe parecia superficial e "fácil". Os direitos humanos, como observou em mais de uma ocasião, "não são entidades culturais ou gramaticais e, quando violados, tornam-se tão reais quanto qualquer coisa que possamos encontrar".
Quanto à versão popular de seu pensamento, segundo a qual Edward Said lia escritores (ocidentais) apenas como subprodutos do privilégio colonial, ele foi bem explícito: "Não acredito que os autores sejam automaticamente determinados por ideologia, classe ou história econômica." Quando se tratava de questões de leitura ou escrita, Said era um humanista tradicional assumido, "apesar do descarte desdenhoso do termo pelos sofisticados críticos pós-modernos". Se algo o deprimia nos jovens acadêmicos de literatura era a excessiva familiaridade deles com a "teoria", a expensas da arte da leitura atenta do texto. Ademais, apreciava a discordância intelectual, vendo a tolerância do dissenso e mesmo da discórdia dentro da comunidade acadêmica como condição necessária para sua própria sobrevivência - minhas dúvidas sobre a tese central de Orientalismo não impediram nossa amizade. Esta era uma postura que muitos de seus admiradores distantes, para quem a liberdade acadêmica é no máximo um valor contingente, sentiam dificuldade em compreender.
Este mesmo impulso humanista, sentido em profundidade, colocava Edward Said em conflito com outro tique ocasional dos intelectuais engajados: o endosso entusiástico da violência – normalmente a uma distância segura e sempre à custa alheia. O "Professor do Terror", como os inimigos tentaram definir Said, era na verdade um crítico coerente da violência política em todas as suas formas. Ao contrário de Jean-Paul Sartre, um intelectual comparativamente influente da geração anterior, Said testemunhou em primeira mão demonstrações de força física - sua sala na universidade foi destruída e saqueada, e ele e seus familiares receberam ameaças de morte. Enquanto Sartre não hesitava em defender o assassinato político como eficaz e purificador, Said jamais se identificou com o terrorismo, por mais que simpatizasse com os motivos e sentimentos que o impulsionavam. Os fracos, escreveu, devem usar meios que provoquem desconforto em seus opressores - algo que a matança indiscriminada de civis jamais pode alcançar.
A razão para isso não é que Edward Said fosse ordeiro ou pacifista, muito menos alguém a quem faltasse um engajamento profundo. Apesar do sucesso profissional, da paixão pela música (era pianista talentoso, amigo e por vezes colaborador de Daniel Barenboim) e do dom para a amizade, ele era em vários aspectos um homem profundamente enraivecido. Mas, apesar de sua identificação com a causa palestina e os esforços inesgotáveis para promovê-la e explicá-la, faltava a Said o tipo de filiação cega a um país ou a uma ideia que permite ao ativista ou ao ideólogo submeter todos os meios a um único fim.
Em vez disso, ele tangenciava ligeiramente suas afinidades. Nesta era de pessoas deslocadas, ele não chegava nem a ser um exilado típico, uma vez que a maioria dos homens e mulheres forçados a abandonar seus países em nosso tempo tem um lugar para o qual poderiam voltar (ou ir): uma terra natal recordada - muitas vezes com falsas lembranças - que ancora o indivíduo ou a comunidade transportada no tempo, mesmo que não o faça no espaço. Os palestinos não têm nem isso. Nunca houve uma Palestina formalmente constituída e, portanto, falta à identidade palestina a referência anterior.
Em consequência, como Said reveladoramente observou poucos meses antes de sua morte: "Ainda não fui capaz de entender o que significa amar um país." Esta é a condição característica do cosmopolita desenraizado. Não ter um país para amar é inseguro e desconfortável: pode fazer com que caia sobre sua cabeça a hostilidade ansiosa das pessoas para quem o desenraizamento indica independência corrosiva do espírito. Mas é uma condição libertadora: o mundo que se vê talvez não seja tão tranquilizador quanto o visto pelos patriotas e nacionalistas, mas a pessoa enxerga mais longe. Como Said escreveu em 1993: "Não tenho paciência com a posição de que 'nós' devemos nos preocupar única ou principalmente com o que é 'nosso'."
Esta é a voz autêntica de um crítico independente, falando a verdade ao poder... e aportando uma voz dissidente nos conflitos. Como Said escreveu no Al-Ahram em maio de 2001: "A nós não cabe decidir se os intelectuais israelenses fracassaram ou não em sua missão. O que nos interessa é o estado lamentável do discurso e da análise no mundo árabe." Esta também é a voz do "intelectual nova-iorquino" independente, uma espécie que se aproxima rapidamente da extinção - graças em larga medida ao mesmo conflito no Oriente Médio no qual tantos optaram por escolher um lado e identificá-lo com "nós" e "nosso". Edward Said não era de modo algum um "porta-voz" convencional de um lado do conflito.
O diário Süddeutsche Zeitung, de Munique, pôs como título do obituário de Said a expressão Der Unbequeme, o Homem Desconfortável. Mas sua contribuição mais duradoura foi provocar desconforto nos outros. Para os palestinos, Edward Said era uma Cassandra desvalorizada e frequentemente irritante a criticar os líderes por sua incompetência – ou coisa pior. Said era um para-raios para seus críticos, atraindo medo e afrontas. Inapelavelmente, aquele homem arguto e requintado era retratado como se fosse o demônio: a encarnação corpórea de todas as ameaças – reais ou imaginárias – a Israel e também aos judeus. Para a comunidade judaica norte-americana, atulhada de símbolos de vitimização, aquele senhor articulado e provocador servia para lembrar a Israel suas próprias vítimas. E por sua mera presença em Nova York, Edward Said era um árabe irônico, cosmopolita, a denunciar o paroquialismo de seus críticos.
Seus ensaios de dezembro de 2000 até março de 2003 passam pelo final da década dos Acordos de Oslo, pelo início da Segunda Intifada, pela derrocada final do “processo de paz”, devido à reocupação da Cisjordânia e de Gaza por Israel, pelos massacres de 11 de setembro de 2001, pela retaliação americana no Afeganistão e pela longa preparação para o ataque dos Estados Unidos contra o Iraque – 28 meses turbulentos e assassinos. Durante esse período, Edward Said escreveu abundantemente, com insistência, sobre o alarmante estado das coisas no Oriente Médio, redigindo pelo menos um artigo por mês, com frequência mais do que isso, apesar da piora de sua condição médica (à qual não há referência nesses escritos até agosto de 2002, quando ocorre uma alusão passageira, fortuita).
Todos os ensaios, menos um, foram colaborações para um jornal em árabe, do Cairo, chamado Al-Ahram. Esses escritos são, portanto, uma oportunidade para os leitores ocidentais de Edward Said conhecerem o que ele diz ao público árabe. Eles mostram que Said, em seus anos derradeiros, abordava insistentemente três temas: a necessidade urgente de contar ao mundo (e acima de tudo aos americanos) a verdade a respeito do tratamento dado aos palestinos por Israel; a urgência paralela de levar os palestinos e outros árabes a reconhecerem e aceitarem a realidade de Israel e se entenderem com os israelenses, especialmente a oposição israelense; e o dever de falar francamente sobre os fracassos da liderança árabe.
Acima de tudo, Said se preocupava em falar e criticar os árabes como ele. Os regimes árabes, especialmente o da Organização para a Libertação da Palestina, recebiam as críticas mais fortes: pela cupidez, corrupção, má vontade e incredulidade. Isso pode parecer quase injusto – afinal de contas, os Estados Unidos detêm o poder efetivo; e Israel vinha e vem promovendo o massacre dos palestinos compatriotas de Edward Said – mas ele aparentemente considerava importante contar a verdade para e sobre seu próprio povo, em vez de cair na “flexibilidade servil em relação a seu próprio lado, que desfigurou a história dos intelectuais desde tempos imemoriais”.
No decorrer dos ensaios, Said refaz a lista dos abusos israelenses, uma recordação triste, deprimente, de como o governo de Ariel Sharon vem sugando o sangue dos palestinos confinados em suas comunidades: abusos contra civis, antes considerados crimes mesmo em época de guerra, tornaram-se um comportamento aceito por um governo ostensivamente em paz. No relato de Edward Said, esses abusos não são um subproduto acidental e lamentável do retorno ao poder de um general beligerante, irredentista, mas sim a previsível – e, no caso de Said, prevista – consequência do engajamento, sem queixas, dos palestinos no demorado “processo de paz”.
Para aqueles entre nós que se entusiasmaram com Oslo e acompanharam com esperança seu desdobramento no decorrer dos anos 90, a crítica desencantada de Said é deprimente. Em retrospecto, porém, fica difícil negar que ele estava certo, e nós, errados. Do modo imaginado pelo partido da paz israelense e elogiado por muitos outros – inclusive palestinos –, o processo de Oslo deveria servir para criar confiança e respeito entre os dois lados. Questões litigiosas – governo de Jerusalém, o direito de retorno aos refugiados palestinos, o problema dos assentamentos israelenses – seriam tratadas “mais tarde”, nas “negociações do status final”. Enquanto isso, a OLP ganharia experiência e credibilidade na administração de um território palestino autônomo, e os israelenses ficariam em paz. Um dia, dois estados – um judeu, outro palestino – viveriam próximos, em situação de estabilidade, com sua segurança garantida pela comunidade internacional.
Essa era a premissa por trás da Declaração de Princípios, assinada no jardim da Casa Branca em setembro de 1993. Mas a questão toda tinha falhas profundas. Como Said nos lembra, não havia dois “lados” nas negociações: havia Israel, um Estado moderno estável, com um aparato militar invejável (segundo algumas estimativas, atualmente o quarto mais forte do mundo), ocupando terra já habitada, conquistada 26 anos antes, numa guerra. E havia os palestinos, uma comunidade dispersa, desalojada, sem exército nem território próprios. Havia um ocupante e os ocupados. Na visão de Said, a única vantagem que os palestinos tinham era sua incômoda realidade. Estavam lá, não iam sumir, não deixariam que os israelenses esquecessem o que haviam feito a eles.
Sem ter nada de que pudessem abrir mão, os palestinos não tinham o que negociar. “Tratar” com o ocupante, no final das contas, é se render – ou colaborar. Foi por isso que Said descreveu a Declaração Inicial de 1993 como “uma Versalhes palestina”, e renunciou antecipadamente ao seu lugar no Conselho Nacional Palestino. Se os israelenses precisavam de algo dos palestinos, Said raciocinou, então as coisas que os palestinos queriam – soberania total, retorno às fronteiras de 1967, “direito de retorno”, uma parcela de Jerusalém – deveriam estar à mesa desde o início, e não em algum estágio final indeterminado. E havia também a questão da “boa-fé” de Israel.
Quando a Declaração Inicial foi assinada, havia no máximo 32 750 unidades habitacionais nos assentamentos na Cisjordânia e em Gaza. Em outubro de 2001, havia 53 121 – um aumento de 62%, e o crescimento continuava. De 1992 a 1996, sob os governos trabalhistas de Yitzhak Rabin e Shimon Peres, a população nos assentamentos da Cisjordânia aumentou em 48%, e em Gaza, 61%. Para dizer o mínimo, a progressiva apropriação por Israel de terras e recursos palestinos dificilmente segue o espírito dos Acordos de Oslo, cujo artigo 31 (cláusula 7) declara explicitamente que “nenhum dos lados deve iniciar ou adotar qualquer medida que altere o status da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, até o desfecho das negociações do status permanente”.
Enquanto isso, mesmo autorizando a OLP a administrar os distritos palestinos restantes, Israel construía uma rede de estradas “judaicas” que cruzavam a mesma região, e dava aos colonos e outros israelenses acesso exclusivo aos assentamentos distantes (e com pouca água), protegidos por instalações militares permanentes. A operação foi estimulada, em parte, por uma noção israelense anacrônica, que confunde terra com segurança; em parte por uma escatologia irredentista pós-67 (invocando o Velho Testamento como uma espécie de contrato imobiliário com um Deus partidário); e em parte pelo duradouro entusiasmo sionista pela ampliação territorial como um fim em si. Do ponto de vista palestino, o efeito foi tornar o “processo de Oslo” um lento e agonizante exercício de estrangulamento, no qual Gaza em particular transformou-se numa prisão virtual com policiais palestinos, enquanto o exército de Israel montava guarda do outro lado da cerca.
Então, em 2000, chegaram as tão adiadas “negociações do status permanente”: primeiro em Camp David e depois, por desespero, em Taba, no Sinai. Edward Said, claro, não tinha tempo para a visão convencional americana de que o presidente Clinton e o primeiro-ministro Ehud Barak virtualmente entregaram o ouro e, mesmo assim, a ingrata OLP e seu líder Yasser Arafat recusaram a dádiva. Isso não ocorreu por Said ser partidário de Arafat, e sim porque a oferta original em Camp David foi – como Tanya Reinhart descreveu no diário israelense Yediot Ahronot, em julho de 2000 – uma “fraude” inegável. Os palestinos receberiam 50% de sua própria terra, fracionada em cantões separados e frequentemente isolados; Israel anexaria 10% da terra; os restantes 40% seriam deixados “indefinidos” – e indefinidamente sob o governo de Israel.
Seis meses depois, em Taba, ofereceram aos palestinos um acordo territorial melhorado, certamente o máximo que podiam esperar de um governo israelense. Mas o Estado palestino resultante continuaria sendo totalmente dependente de Israel e vulnerável aos seus caprichos; as dificuldades dos refugiados palestinos não foram tratadas amplamente; e na questão da disputa por Jerusalém, os israelenses não mudaram a postura. Na verdade, as concessões de Israel de última hora ainda continham o que Said chama diplomaticamente de “condições, qualificações e vínculos (como as propriedades eternamente prometidas e fisicamente inalcançáveis num romance de Jane Austen)…”.
Enquanto isso, Barak continuava a expandir a população dos próprios assentamentos que seus negociadores reconheciam como maior impedimento para um acordo. Mesmo que os líderes da OLP quisessem levar os acordos de Taba à população, teriam dificuldade em fazê-lo – a Segunda Intifada, que explodira após a visita meticulosamente programada de Sharon ao Monte do Templo, fora um desastre para os palestinos, mas nascera de anos – os anos de Oslo – de frustração e humilhação. Com essas bases, somadas a seus interesses, Arafat orientou os palestinos a não assinarem.
Taba e especialmente Camp David foram os frutos amargos de Oslo. E, na visão de Edward Said, o erro da OLP em se envolver no processo desde o início foi bem ilustrado por sua inevitável rejeição do desfecho, desacreditando retroativamente toda a estratégia de negociação. Em um artigo para o Al-Ahram, em junho de 2002, Said criticou severamente os apparatchiks da OLP e seu líder, que por um tempo exerceram bem o poder de governantes “à Vichy” da Palestina ocupada, sob o olhar benevolente de Israel. Eles eram e são “um exemplo de brutalidade, autocracia e inimaginável corrupção”.
Então, o que se poderia fazer? Se a liderança palestina é corrupta e incompetente; se os governos israelenses não cumprem nem os compromissos formalmente assumidos, e menos ainda os desejos de seus interlocutores; se há tanto medo e ódio dos dois lados, como deveria ser implementada a solução dos dois estados, uma vez que israelenses, palestinos e a comunidade internacional – inclusive os norte-americanos – finalmente a aceitaram, em princípio? Aqui, novamente, Edward Said seguiu na contramão de quase todo o mundo.
Em 1980, quando ele pressionou pela primeira vez, publicamente, por uma solução com dois estados, Said foi atacado e insultado por todos os lados, inclusive pelo próprio movimento Al Fatah, de Arafat. Então, em 1988, o Conselho Nacional Palestino finalmente aceitou que o melhor desfecho possível seria mesmo a divisão da Palestina em dois estados – um israelense, outro palestino – reproduzindo a insistência de Said de que não havia alternativa para a autodeterminação territorial recíproca, tanto para os judeus quanto para os árabes. Mas, conforme os anos iam passando, com metade dos territórios expropriados, com a comunidade palestina destroçada e o suposto território palestino reduzido a um punhado de enclaves isolados, olivais arrasados e casas demolidas, onde adultos humilhados perdiam rapidamente a iniciativa para adolescentes alienados e furiosos, Said tirou uma conclusão cada vez mais inevitável.
Israel não pretende deixar a Cisjordânia nunca, ou pelo menos não de um modo que permita à região uma condição coerente, governável. Que tipo de Estado a Cisjordânia e Gaza poderiam constituir? Quem, a não ser uma máfia criminosa, desejaria assumir a tarefa de “governar” a área? A “Palestina” imaginada pela OLP era uma fantasia – e uma fantasia bem pouco atraente. Para o bem ou para o mal, só haveria um Estado real nas terras da Palestina histórica: Israel. Isso não era utopia; se tratava meramente de pragmatismo ponderado e desprovido de ilusão. A abordagem genuinamente realista se apoia em aceitar este fato e pensar seriamente em como tirar o máximo disso. “Muito mais importante do que ter um Estado é o tipo de Estado que teremos.” Em sua última década de vida, Edward Said defendeu com firmeza a criação de um Estado único e secular para israelenses e palestinos.
Que base Edward Said teria para sua fé numa solução com Estado único, uma alternativa secular, inclusiva e democrática para o presente impasse? Em primeiro lugar, a situação é ruim e vem piorando: dois povos, cada um sustentado por sua exclusiva narrativa de vitimização, competem indefinidamente por cima dos corpos de seus filhos mortos pelo mesmo pedaço exíguo de terra. Um deles é um Estado armado, o outro um povo sem Estado. No mais, porém, eles são desanimadoramente similares: o que é, afinal, a história nacional palestina, além de um espelho de censura ao sionismo, um relato de expulsão, diáspora, ressurreição e retorno? Não há maneira de dividir a “terra natal” disputada para mútua satisfação e benefício. Pouca vantagem poderia vir de dois Estados assim, mínimos, mutuamente ressentidos, cada um com uma população dedicada à destruição e anexação do vizinho.
Em segundo lugar, algo fundamental mudou na condição palestina. Por quatro décadas, milhões de palestinos árabes – em Israel, nos territórios ocupados, nos campos de refugiados espalhados pelo mundo árabe, no exílio por todas as partes – eram praticamente invisíveis. Sua própria existência foi por muito tempo negada pelos políticos israelenses; as lembranças de sua expulsão foram removidas dos registros oficiais e ela não é mencionada nos livros de história; a marca de suas casas, seus vilarejos e de sua terra foi arrancada do próprio solo. Said ressaltou que este é o motivo pelo qual ele segue contando a mesma história: “Não parece haver nada no mundo que a sustente; a não ser que se continue contando, ela vai cair e desaparecer simplesmente.” Contudo, “é muito difícil apoiar, por cinco décadas, uma causa que sofre contínuas derrotas”. Era como se os palestinos não tivessem existência, exceto quando alguém cometia um ato de atrocidade terrorista – a esta altura era tudo o que eles eram, sua origem era incerta e sua violência, inexplicável.
Dessa forma o “direito de retorno” ocupa um lugar central em todas as exigências palestinas – não porque uma pessoa séria possa supor que Israel receberia “de volta” milhões de refugiados e seus descendentes, mas pela necessidade profundamente sentida de reconhecimento: uma admissão de que a expulsão inicial ocorreu, que um erro primordial foi cometido. Era isso que tanto incomodava Said a respeito de Oslo: parecia desculpar ou perdoar os israelenses pela ocupação e por todo o resto. Mas “Israel não pode ser desculpado e sair da mesa sem sequer uma exigência retórica [grifo meu] de reparar o que fez”. É preciso prestar atenção.
Mas, claro, agora estão prestando atenção. A imensa maioria da opinião pública mundial, fora dos Estados Unidos, vê hoje a tragédia palestina, em larga medida, como os próprios palestinos se veem. Eles são os nativos de Israel, uma comunidade original excluída da nacionalidade em sua própria terra: despojados e expelidos, ilegalmente desapropriados, confinados a bantustões, privados de muitos direitos fundamentais e expostos diariamente à injustiça e à violência. Hoje os israelenses bem informados não têm mais como usar a alegação de que os árabes foram embora, em 1948, por sua livre e espontânea vontade, ou por ordem de déspotas estrangeiros, como faziam antigamente. Benny Morris, um dos mais importantes estudiosos israelenses do assunto, recentemente lembrou aos leitores do diário israelense Haaretz que os soldados do seu país não só expulsaram palestinos em 1948-9, numa precoce e incompleta tentativa de limpeza étnica: eles cometeram crimes de guerra no processo, inclusive o estupro e assassinato de mulheres e crianças.
Morris, obviamente, não vê nada de errado neste registro – ele o trata como um dano colateral que acompanha a construção de um Estado. Mas ele nos leva ao terceiro fator para considerar que Said possa ter razão a respeito da possibilidade de um Estado único. Assim como a causa dos palestinos começou a encontrar simpatia na opinião pública, e está assumindo a dianteira moral, a posição internacional de Israel afundou precipitadamente. Por muitos anos, o problema insuperável dos palestinos era que eles foram expulsos, colonizados, ocupados e em geral maltratados não por colonos franceses ou africâneres holandeses, e sim, nas palavras de Edward Said, pelos “cidadãos judeus de Israel, sobreviventes do Holocausto nazista, com uma trágica história de genocídio e perseguição”.
Ser vítima das vítimas é uma situação impossível – que não melhora nada, como Said apontou, diante da propensão árabe em sair da sombra do Holocausto ao minimizá-lo, ou mesmo negá-lo. Mas, quando se fala em maltratar os outros, nem mesmo as vítimas têm alvará eterno. As acusações de que os poloneses frequentemente perseguiam judeus antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial não podem ser mais satisfatoriamente afastadas invocando-se os 3 milhões de poloneses, vítimas de Hitler. Mutatis mutandis, o mesmo se aplica a Israel atualmente. Até a vitória militar de 1967, e até alguns anos depois, a imagem internacional dominante de Israel era a apresentada pelos sionistas de esquerda seus fundadores, bem como pelos muitos admiradores na Europa e em outras partes: um pequeno país corajoso rodeado por inimigos, onde o deserto floresceu e a população nativa foi apagada da foto.
Após a invasão do Líbano, e com mais intensidade depois da Primeira Intifada, no final dos anos 80, a imagem pública de Israel foi se deteriorando paulatinamente. Hoje temos um quadro medonho: um lugar onde jovens de 18 anos com fuzis M-16 sorriem com desdém enquanto maltratam idosos indefesos (“medidas de segurança”); onde escavadeiras regularmente demolem prédios inteiros (“punição coletiva”); onde helicópteros disparam foguetes contra ruas residenciais (“assassinatos seletivos”); onde colonos subsidiados se divertem em piscinas construídas no meio de gramados, ignorando as crianças árabes que a poucos metros dali apodrecem e sofrem nas piores favelas do planeta; e onde generais da reserva e ministros do governo falam abertamente em engarrafar os palestinos “como baratas tontas numa garrafa” (Rafael Eitan) e em limpar a terra do câncer árabe.
Mas ele não viveu confinado. Desde 1967, cada vez com mais paixão e ímpeto, Edward Said tornou-se também um comentarista eloquente e onipresente da crise do Oriente Médio e defensor da causa dos palestinos. O engajamento moral e político não chegou a constituir um deslocamento da atenção intelectual de Said - sua crítica à incapacidade do Ocidente em entender a humilhação palestina ecoa, afinal, em seus estudos sobre o conhecimento e ficção do século XIX, presentes em Orientalismo e em obras subsequentes (notadamente Cultura e Imperialismo, publicada em 1993). Mas isso transformou o professor de literatura comparada em Columbia num intelectual notório, adorado ou execrado com igual intensidade por milhões de leitores.
Foi um destino irônico para um homem que não se encaixava em quase nenhum dos modelos que admiradores e inimigos lhe atribuíam. Edward Said passou a vida inteira tangenciando as várias causas com as quais foi associado. O "porta-voz" involuntário da maioria dos árabes muçulmanos da Palestina era cristão anglicano, nascido em 1935, filho de um batista de Nazaré. O crítico intransigente da condescendência imperial foi educado em algumas das últimas escolas coloniais que treinavam a elite nativa nos impérios europeus; por muitos anos falou com mais facilidade inglês e francês do que árabe, sendo um exemplo destacado da educação ocidental com a qual jamais se identificaria totalmente.
Edward Said foi o herói idolatrado por uma geração de relativistas culturais em universidades de Berkeley a Mumbai, para quem o "orientalismo" estava por trás de tudo, desde a construção de carreiras no obscurantismo “pós-colonial” até denúncias de "cultura ocidental" no currículo acadêmico. Mas o próprio Said não tinha tempo para essas bobagens. A noção de que tudo não passava de efeito linguístico lhe parecia superficial e "fácil". Os direitos humanos, como observou em mais de uma ocasião, "não são entidades culturais ou gramaticais e, quando violados, tornam-se tão reais quanto qualquer coisa que possamos encontrar".
Quanto à versão popular de seu pensamento, segundo a qual Edward Said lia escritores (ocidentais) apenas como subprodutos do privilégio colonial, ele foi bem explícito: "Não acredito que os autores sejam automaticamente determinados por ideologia, classe ou história econômica." Quando se tratava de questões de leitura ou escrita, Said era um humanista tradicional assumido, "apesar do descarte desdenhoso do termo pelos sofisticados críticos pós-modernos". Se algo o deprimia nos jovens acadêmicos de literatura era a excessiva familiaridade deles com a "teoria", a expensas da arte da leitura atenta do texto. Ademais, apreciava a discordância intelectual, vendo a tolerância do dissenso e mesmo da discórdia dentro da comunidade acadêmica como condição necessária para sua própria sobrevivência - minhas dúvidas sobre a tese central de Orientalismo não impediram nossa amizade. Esta era uma postura que muitos de seus admiradores distantes, para quem a liberdade acadêmica é no máximo um valor contingente, sentiam dificuldade em compreender.
Este mesmo impulso humanista, sentido em profundidade, colocava Edward Said em conflito com outro tique ocasional dos intelectuais engajados: o endosso entusiástico da violência – normalmente a uma distância segura e sempre à custa alheia. O "Professor do Terror", como os inimigos tentaram definir Said, era na verdade um crítico coerente da violência política em todas as suas formas. Ao contrário de Jean-Paul Sartre, um intelectual comparativamente influente da geração anterior, Said testemunhou em primeira mão demonstrações de força física - sua sala na universidade foi destruída e saqueada, e ele e seus familiares receberam ameaças de morte. Enquanto Sartre não hesitava em defender o assassinato político como eficaz e purificador, Said jamais se identificou com o terrorismo, por mais que simpatizasse com os motivos e sentimentos que o impulsionavam. Os fracos, escreveu, devem usar meios que provoquem desconforto em seus opressores - algo que a matança indiscriminada de civis jamais pode alcançar.
A razão para isso não é que Edward Said fosse ordeiro ou pacifista, muito menos alguém a quem faltasse um engajamento profundo. Apesar do sucesso profissional, da paixão pela música (era pianista talentoso, amigo e por vezes colaborador de Daniel Barenboim) e do dom para a amizade, ele era em vários aspectos um homem profundamente enraivecido. Mas, apesar de sua identificação com a causa palestina e os esforços inesgotáveis para promovê-la e explicá-la, faltava a Said o tipo de filiação cega a um país ou a uma ideia que permite ao ativista ou ao ideólogo submeter todos os meios a um único fim.
Em vez disso, ele tangenciava ligeiramente suas afinidades. Nesta era de pessoas deslocadas, ele não chegava nem a ser um exilado típico, uma vez que a maioria dos homens e mulheres forçados a abandonar seus países em nosso tempo tem um lugar para o qual poderiam voltar (ou ir): uma terra natal recordada - muitas vezes com falsas lembranças - que ancora o indivíduo ou a comunidade transportada no tempo, mesmo que não o faça no espaço. Os palestinos não têm nem isso. Nunca houve uma Palestina formalmente constituída e, portanto, falta à identidade palestina a referência anterior.
Em consequência, como Said reveladoramente observou poucos meses antes de sua morte: "Ainda não fui capaz de entender o que significa amar um país." Esta é a condição característica do cosmopolita desenraizado. Não ter um país para amar é inseguro e desconfortável: pode fazer com que caia sobre sua cabeça a hostilidade ansiosa das pessoas para quem o desenraizamento indica independência corrosiva do espírito. Mas é uma condição libertadora: o mundo que se vê talvez não seja tão tranquilizador quanto o visto pelos patriotas e nacionalistas, mas a pessoa enxerga mais longe. Como Said escreveu em 1993: "Não tenho paciência com a posição de que 'nós' devemos nos preocupar única ou principalmente com o que é 'nosso'."
Esta é a voz autêntica de um crítico independente, falando a verdade ao poder... e aportando uma voz dissidente nos conflitos. Como Said escreveu no Al-Ahram em maio de 2001: "A nós não cabe decidir se os intelectuais israelenses fracassaram ou não em sua missão. O que nos interessa é o estado lamentável do discurso e da análise no mundo árabe." Esta também é a voz do "intelectual nova-iorquino" independente, uma espécie que se aproxima rapidamente da extinção - graças em larga medida ao mesmo conflito no Oriente Médio no qual tantos optaram por escolher um lado e identificá-lo com "nós" e "nosso". Edward Said não era de modo algum um "porta-voz" convencional de um lado do conflito.
O diário Süddeutsche Zeitung, de Munique, pôs como título do obituário de Said a expressão Der Unbequeme, o Homem Desconfortável. Mas sua contribuição mais duradoura foi provocar desconforto nos outros. Para os palestinos, Edward Said era uma Cassandra desvalorizada e frequentemente irritante a criticar os líderes por sua incompetência – ou coisa pior. Said era um para-raios para seus críticos, atraindo medo e afrontas. Inapelavelmente, aquele homem arguto e requintado era retratado como se fosse o demônio: a encarnação corpórea de todas as ameaças – reais ou imaginárias – a Israel e também aos judeus. Para a comunidade judaica norte-americana, atulhada de símbolos de vitimização, aquele senhor articulado e provocador servia para lembrar a Israel suas próprias vítimas. E por sua mera presença em Nova York, Edward Said era um árabe irônico, cosmopolita, a denunciar o paroquialismo de seus críticos.
Seus ensaios de dezembro de 2000 até março de 2003 passam pelo final da década dos Acordos de Oslo, pelo início da Segunda Intifada, pela derrocada final do “processo de paz”, devido à reocupação da Cisjordânia e de Gaza por Israel, pelos massacres de 11 de setembro de 2001, pela retaliação americana no Afeganistão e pela longa preparação para o ataque dos Estados Unidos contra o Iraque – 28 meses turbulentos e assassinos. Durante esse período, Edward Said escreveu abundantemente, com insistência, sobre o alarmante estado das coisas no Oriente Médio, redigindo pelo menos um artigo por mês, com frequência mais do que isso, apesar da piora de sua condição médica (à qual não há referência nesses escritos até agosto de 2002, quando ocorre uma alusão passageira, fortuita).
Todos os ensaios, menos um, foram colaborações para um jornal em árabe, do Cairo, chamado Al-Ahram. Esses escritos são, portanto, uma oportunidade para os leitores ocidentais de Edward Said conhecerem o que ele diz ao público árabe. Eles mostram que Said, em seus anos derradeiros, abordava insistentemente três temas: a necessidade urgente de contar ao mundo (e acima de tudo aos americanos) a verdade a respeito do tratamento dado aos palestinos por Israel; a urgência paralela de levar os palestinos e outros árabes a reconhecerem e aceitarem a realidade de Israel e se entenderem com os israelenses, especialmente a oposição israelense; e o dever de falar francamente sobre os fracassos da liderança árabe.
Acima de tudo, Said se preocupava em falar e criticar os árabes como ele. Os regimes árabes, especialmente o da Organização para a Libertação da Palestina, recebiam as críticas mais fortes: pela cupidez, corrupção, má vontade e incredulidade. Isso pode parecer quase injusto – afinal de contas, os Estados Unidos detêm o poder efetivo; e Israel vinha e vem promovendo o massacre dos palestinos compatriotas de Edward Said – mas ele aparentemente considerava importante contar a verdade para e sobre seu próprio povo, em vez de cair na “flexibilidade servil em relação a seu próprio lado, que desfigurou a história dos intelectuais desde tempos imemoriais”.
No decorrer dos ensaios, Said refaz a lista dos abusos israelenses, uma recordação triste, deprimente, de como o governo de Ariel Sharon vem sugando o sangue dos palestinos confinados em suas comunidades: abusos contra civis, antes considerados crimes mesmo em época de guerra, tornaram-se um comportamento aceito por um governo ostensivamente em paz. No relato de Edward Said, esses abusos não são um subproduto acidental e lamentável do retorno ao poder de um general beligerante, irredentista, mas sim a previsível – e, no caso de Said, prevista – consequência do engajamento, sem queixas, dos palestinos no demorado “processo de paz”.
Para aqueles entre nós que se entusiasmaram com Oslo e acompanharam com esperança seu desdobramento no decorrer dos anos 90, a crítica desencantada de Said é deprimente. Em retrospecto, porém, fica difícil negar que ele estava certo, e nós, errados. Do modo imaginado pelo partido da paz israelense e elogiado por muitos outros – inclusive palestinos –, o processo de Oslo deveria servir para criar confiança e respeito entre os dois lados. Questões litigiosas – governo de Jerusalém, o direito de retorno aos refugiados palestinos, o problema dos assentamentos israelenses – seriam tratadas “mais tarde”, nas “negociações do status final”. Enquanto isso, a OLP ganharia experiência e credibilidade na administração de um território palestino autônomo, e os israelenses ficariam em paz. Um dia, dois estados – um judeu, outro palestino – viveriam próximos, em situação de estabilidade, com sua segurança garantida pela comunidade internacional.
Essa era a premissa por trás da Declaração de Princípios, assinada no jardim da Casa Branca em setembro de 1993. Mas a questão toda tinha falhas profundas. Como Said nos lembra, não havia dois “lados” nas negociações: havia Israel, um Estado moderno estável, com um aparato militar invejável (segundo algumas estimativas, atualmente o quarto mais forte do mundo), ocupando terra já habitada, conquistada 26 anos antes, numa guerra. E havia os palestinos, uma comunidade dispersa, desalojada, sem exército nem território próprios. Havia um ocupante e os ocupados. Na visão de Said, a única vantagem que os palestinos tinham era sua incômoda realidade. Estavam lá, não iam sumir, não deixariam que os israelenses esquecessem o que haviam feito a eles.
Sem ter nada de que pudessem abrir mão, os palestinos não tinham o que negociar. “Tratar” com o ocupante, no final das contas, é se render – ou colaborar. Foi por isso que Said descreveu a Declaração Inicial de 1993 como “uma Versalhes palestina”, e renunciou antecipadamente ao seu lugar no Conselho Nacional Palestino. Se os israelenses precisavam de algo dos palestinos, Said raciocinou, então as coisas que os palestinos queriam – soberania total, retorno às fronteiras de 1967, “direito de retorno”, uma parcela de Jerusalém – deveriam estar à mesa desde o início, e não em algum estágio final indeterminado. E havia também a questão da “boa-fé” de Israel.
Quando a Declaração Inicial foi assinada, havia no máximo 32 750 unidades habitacionais nos assentamentos na Cisjordânia e em Gaza. Em outubro de 2001, havia 53 121 – um aumento de 62%, e o crescimento continuava. De 1992 a 1996, sob os governos trabalhistas de Yitzhak Rabin e Shimon Peres, a população nos assentamentos da Cisjordânia aumentou em 48%, e em Gaza, 61%. Para dizer o mínimo, a progressiva apropriação por Israel de terras e recursos palestinos dificilmente segue o espírito dos Acordos de Oslo, cujo artigo 31 (cláusula 7) declara explicitamente que “nenhum dos lados deve iniciar ou adotar qualquer medida que altere o status da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, até o desfecho das negociações do status permanente”.
Enquanto isso, mesmo autorizando a OLP a administrar os distritos palestinos restantes, Israel construía uma rede de estradas “judaicas” que cruzavam a mesma região, e dava aos colonos e outros israelenses acesso exclusivo aos assentamentos distantes (e com pouca água), protegidos por instalações militares permanentes. A operação foi estimulada, em parte, por uma noção israelense anacrônica, que confunde terra com segurança; em parte por uma escatologia irredentista pós-67 (invocando o Velho Testamento como uma espécie de contrato imobiliário com um Deus partidário); e em parte pelo duradouro entusiasmo sionista pela ampliação territorial como um fim em si. Do ponto de vista palestino, o efeito foi tornar o “processo de Oslo” um lento e agonizante exercício de estrangulamento, no qual Gaza em particular transformou-se numa prisão virtual com policiais palestinos, enquanto o exército de Israel montava guarda do outro lado da cerca.
Então, em 2000, chegaram as tão adiadas “negociações do status permanente”: primeiro em Camp David e depois, por desespero, em Taba, no Sinai. Edward Said, claro, não tinha tempo para a visão convencional americana de que o presidente Clinton e o primeiro-ministro Ehud Barak virtualmente entregaram o ouro e, mesmo assim, a ingrata OLP e seu líder Yasser Arafat recusaram a dádiva. Isso não ocorreu por Said ser partidário de Arafat, e sim porque a oferta original em Camp David foi – como Tanya Reinhart descreveu no diário israelense Yediot Ahronot, em julho de 2000 – uma “fraude” inegável. Os palestinos receberiam 50% de sua própria terra, fracionada em cantões separados e frequentemente isolados; Israel anexaria 10% da terra; os restantes 40% seriam deixados “indefinidos” – e indefinidamente sob o governo de Israel.
Seis meses depois, em Taba, ofereceram aos palestinos um acordo territorial melhorado, certamente o máximo que podiam esperar de um governo israelense. Mas o Estado palestino resultante continuaria sendo totalmente dependente de Israel e vulnerável aos seus caprichos; as dificuldades dos refugiados palestinos não foram tratadas amplamente; e na questão da disputa por Jerusalém, os israelenses não mudaram a postura. Na verdade, as concessões de Israel de última hora ainda continham o que Said chama diplomaticamente de “condições, qualificações e vínculos (como as propriedades eternamente prometidas e fisicamente inalcançáveis num romance de Jane Austen)…”.
Enquanto isso, Barak continuava a expandir a população dos próprios assentamentos que seus negociadores reconheciam como maior impedimento para um acordo. Mesmo que os líderes da OLP quisessem levar os acordos de Taba à população, teriam dificuldade em fazê-lo – a Segunda Intifada, que explodira após a visita meticulosamente programada de Sharon ao Monte do Templo, fora um desastre para os palestinos, mas nascera de anos – os anos de Oslo – de frustração e humilhação. Com essas bases, somadas a seus interesses, Arafat orientou os palestinos a não assinarem.
Taba e especialmente Camp David foram os frutos amargos de Oslo. E, na visão de Edward Said, o erro da OLP em se envolver no processo desde o início foi bem ilustrado por sua inevitável rejeição do desfecho, desacreditando retroativamente toda a estratégia de negociação. Em um artigo para o Al-Ahram, em junho de 2002, Said criticou severamente os apparatchiks da OLP e seu líder, que por um tempo exerceram bem o poder de governantes “à Vichy” da Palestina ocupada, sob o olhar benevolente de Israel. Eles eram e são “um exemplo de brutalidade, autocracia e inimaginável corrupção”.
Então, o que se poderia fazer? Se a liderança palestina é corrupta e incompetente; se os governos israelenses não cumprem nem os compromissos formalmente assumidos, e menos ainda os desejos de seus interlocutores; se há tanto medo e ódio dos dois lados, como deveria ser implementada a solução dos dois estados, uma vez que israelenses, palestinos e a comunidade internacional – inclusive os norte-americanos – finalmente a aceitaram, em princípio? Aqui, novamente, Edward Said seguiu na contramão de quase todo o mundo.
Em 1980, quando ele pressionou pela primeira vez, publicamente, por uma solução com dois estados, Said foi atacado e insultado por todos os lados, inclusive pelo próprio movimento Al Fatah, de Arafat. Então, em 1988, o Conselho Nacional Palestino finalmente aceitou que o melhor desfecho possível seria mesmo a divisão da Palestina em dois estados – um israelense, outro palestino – reproduzindo a insistência de Said de que não havia alternativa para a autodeterminação territorial recíproca, tanto para os judeus quanto para os árabes. Mas, conforme os anos iam passando, com metade dos territórios expropriados, com a comunidade palestina destroçada e o suposto território palestino reduzido a um punhado de enclaves isolados, olivais arrasados e casas demolidas, onde adultos humilhados perdiam rapidamente a iniciativa para adolescentes alienados e furiosos, Said tirou uma conclusão cada vez mais inevitável.
Israel não pretende deixar a Cisjordânia nunca, ou pelo menos não de um modo que permita à região uma condição coerente, governável. Que tipo de Estado a Cisjordânia e Gaza poderiam constituir? Quem, a não ser uma máfia criminosa, desejaria assumir a tarefa de “governar” a área? A “Palestina” imaginada pela OLP era uma fantasia – e uma fantasia bem pouco atraente. Para o bem ou para o mal, só haveria um Estado real nas terras da Palestina histórica: Israel. Isso não era utopia; se tratava meramente de pragmatismo ponderado e desprovido de ilusão. A abordagem genuinamente realista se apoia em aceitar este fato e pensar seriamente em como tirar o máximo disso. “Muito mais importante do que ter um Estado é o tipo de Estado que teremos.” Em sua última década de vida, Edward Said defendeu com firmeza a criação de um Estado único e secular para israelenses e palestinos.
Que base Edward Said teria para sua fé numa solução com Estado único, uma alternativa secular, inclusiva e democrática para o presente impasse? Em primeiro lugar, a situação é ruim e vem piorando: dois povos, cada um sustentado por sua exclusiva narrativa de vitimização, competem indefinidamente por cima dos corpos de seus filhos mortos pelo mesmo pedaço exíguo de terra. Um deles é um Estado armado, o outro um povo sem Estado. No mais, porém, eles são desanimadoramente similares: o que é, afinal, a história nacional palestina, além de um espelho de censura ao sionismo, um relato de expulsão, diáspora, ressurreição e retorno? Não há maneira de dividir a “terra natal” disputada para mútua satisfação e benefício. Pouca vantagem poderia vir de dois Estados assim, mínimos, mutuamente ressentidos, cada um com uma população dedicada à destruição e anexação do vizinho.
Em segundo lugar, algo fundamental mudou na condição palestina. Por quatro décadas, milhões de palestinos árabes – em Israel, nos territórios ocupados, nos campos de refugiados espalhados pelo mundo árabe, no exílio por todas as partes – eram praticamente invisíveis. Sua própria existência foi por muito tempo negada pelos políticos israelenses; as lembranças de sua expulsão foram removidas dos registros oficiais e ela não é mencionada nos livros de história; a marca de suas casas, seus vilarejos e de sua terra foi arrancada do próprio solo. Said ressaltou que este é o motivo pelo qual ele segue contando a mesma história: “Não parece haver nada no mundo que a sustente; a não ser que se continue contando, ela vai cair e desaparecer simplesmente.” Contudo, “é muito difícil apoiar, por cinco décadas, uma causa que sofre contínuas derrotas”. Era como se os palestinos não tivessem existência, exceto quando alguém cometia um ato de atrocidade terrorista – a esta altura era tudo o que eles eram, sua origem era incerta e sua violência, inexplicável.
Dessa forma o “direito de retorno” ocupa um lugar central em todas as exigências palestinas – não porque uma pessoa séria possa supor que Israel receberia “de volta” milhões de refugiados e seus descendentes, mas pela necessidade profundamente sentida de reconhecimento: uma admissão de que a expulsão inicial ocorreu, que um erro primordial foi cometido. Era isso que tanto incomodava Said a respeito de Oslo: parecia desculpar ou perdoar os israelenses pela ocupação e por todo o resto. Mas “Israel não pode ser desculpado e sair da mesa sem sequer uma exigência retórica [grifo meu] de reparar o que fez”. É preciso prestar atenção.
Mas, claro, agora estão prestando atenção. A imensa maioria da opinião pública mundial, fora dos Estados Unidos, vê hoje a tragédia palestina, em larga medida, como os próprios palestinos se veem. Eles são os nativos de Israel, uma comunidade original excluída da nacionalidade em sua própria terra: despojados e expelidos, ilegalmente desapropriados, confinados a bantustões, privados de muitos direitos fundamentais e expostos diariamente à injustiça e à violência. Hoje os israelenses bem informados não têm mais como usar a alegação de que os árabes foram embora, em 1948, por sua livre e espontânea vontade, ou por ordem de déspotas estrangeiros, como faziam antigamente. Benny Morris, um dos mais importantes estudiosos israelenses do assunto, recentemente lembrou aos leitores do diário israelense Haaretz que os soldados do seu país não só expulsaram palestinos em 1948-9, numa precoce e incompleta tentativa de limpeza étnica: eles cometeram crimes de guerra no processo, inclusive o estupro e assassinato de mulheres e crianças.
Morris, obviamente, não vê nada de errado neste registro – ele o trata como um dano colateral que acompanha a construção de um Estado. Mas ele nos leva ao terceiro fator para considerar que Said possa ter razão a respeito da possibilidade de um Estado único. Assim como a causa dos palestinos começou a encontrar simpatia na opinião pública, e está assumindo a dianteira moral, a posição internacional de Israel afundou precipitadamente. Por muitos anos, o problema insuperável dos palestinos era que eles foram expulsos, colonizados, ocupados e em geral maltratados não por colonos franceses ou africâneres holandeses, e sim, nas palavras de Edward Said, pelos “cidadãos judeus de Israel, sobreviventes do Holocausto nazista, com uma trágica história de genocídio e perseguição”.
Ser vítima das vítimas é uma situação impossível – que não melhora nada, como Said apontou, diante da propensão árabe em sair da sombra do Holocausto ao minimizá-lo, ou mesmo negá-lo. Mas, quando se fala em maltratar os outros, nem mesmo as vítimas têm alvará eterno. As acusações de que os poloneses frequentemente perseguiam judeus antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial não podem ser mais satisfatoriamente afastadas invocando-se os 3 milhões de poloneses, vítimas de Hitler. Mutatis mutandis, o mesmo se aplica a Israel atualmente. Até a vitória militar de 1967, e até alguns anos depois, a imagem internacional dominante de Israel era a apresentada pelos sionistas de esquerda seus fundadores, bem como pelos muitos admiradores na Europa e em outras partes: um pequeno país corajoso rodeado por inimigos, onde o deserto floresceu e a população nativa foi apagada da foto.
Após a invasão do Líbano, e com mais intensidade depois da Primeira Intifada, no final dos anos 80, a imagem pública de Israel foi se deteriorando paulatinamente. Hoje temos um quadro medonho: um lugar onde jovens de 18 anos com fuzis M-16 sorriem com desdém enquanto maltratam idosos indefesos (“medidas de segurança”); onde escavadeiras regularmente demolem prédios inteiros (“punição coletiva”); onde helicópteros disparam foguetes contra ruas residenciais (“assassinatos seletivos”); onde colonos subsidiados se divertem em piscinas construídas no meio de gramados, ignorando as crianças árabes que a poucos metros dali apodrecem e sofrem nas piores favelas do planeta; e onde generais da reserva e ministros do governo falam abertamente em engarrafar os palestinos “como baratas tontas numa garrafa” (Rafael Eitan) e em limpar a terra do câncer árabe.
Israel depende profundamente dos Estados Unidos para obter dinheiro, armas e apoio diplomático. Um ou dois países compartilham inimigos comuns com Israel, um punhado de países compram seus armamentos, e outros tantos são cúmplices de fato ao ignorar tratados internacionais e fabricar armas nucleares secretamente. Mas, fora de Washington, Israel não tem amigos – nas Nações Unidas não consegue nem apoio dos aliados mais incondicionais dos Estados Unidos. Apesar da incompetência política e diplomática da OLP (bem documentada nos escritos de Said), apesar dos reveses inegáveis do mundo árabe em geral – “parado na beira da estrada por onde marcha a humanidade” –, apesar dos sofisticados esforços de Israel para divulgar seu lado da história, o Estado judeu hoje é amplamente visto como uma – a – principal ameaça à paz mundial. Após 42 anos de ocupação militar, Israel nada ganhou em termos de segurança, perdeu tudo em termos de civilidade doméstica e respeito internacional, e abandonou sua posição de superioridade moral para sempre.
O recente reconhecimento das reivindicações palestinas e o crescente descrédito do projeto sionista (inclusive entre muitos israelenses) podem dar a impressão de que está mais difícil do que nunca imaginar judeus e árabes vivendo harmoniosamente num único país. E, assim como uma minoria de palestinos talvez guarde para sempre ressentimento em relação a seus vizinhos judeus, existe o risco de que alguns israelenses jamais perdoem os palestinos pelo que fizeram a eles. Mas, como Said compreendeu, o sentimento de abandono dos palestinos e a insistência dos israelenses na retidão moral de seu caso eram empecilhos para uma solução de seu dilema comum. Nenhum lado poderia, nessas condições, “enxergar” o outro. Como George Orwell observou em Notes on Nationalism (Notas sobre o Nacionalismo): “Se alguém guarda em qualquer canto da mente crenças ou ódios nacionalistas, certos fatos, embora sejam em certo sentido verdadeiros, são inadmissíveis.”
Hoje, apesar de tudo, há uma noção melhor por parte de pessoas dos dois lados a respeito de onde – literalmente – o outro vem. Isso, creio, deriva de uma consciência crescente de que os judeus e árabes ocupam o mesmo espaço, e continuarão a fazê-lo por um bom tempo. Seus destinos estão inapelavelmente emaranhados. Com ou sem cerca, o território hoje governado por Israel só pode ser “limpo” de seus residentes árabes (ou judeus) por um ato de força que a comunidade internacional não pode aceitar. Como Said nota, a “Palestina histórica é hoje uma causa perdida – e isso também vale, pelas mesmas razões, para a Israel histórica”. De um jeito ou de outro, uma entidade institucional única, capaz de conciliar e respeitar as duas comunidades, terá de emergir, embora quando e de que forma ainda pareça obscuro.
O impedimento real para o novo pensamento sobre o Oriente Médio, na visão de Edward Said, não foi Arafat, Sharon ou mesmo os homens-bomba suicidas ou os ultraortodoxos assentamentos. Foram os Estados Unidos. Esse foi o único lugar onde a propaganda oficial israelense foi bem-sucedida além da conta, e onde a propaganda palestina fracassou completamente. Os judeus americanos (assim como os políticos árabes) vivem num “extraordinário autoisolamento de fantasia e mito”. Muitos israelenses têm a consciência terrível do que a ocupação da Cisjordânia e Gaza causou na sua própria sociedade. Mas a maioria dos americanos, inclusive praticamente todos os políticos, não tem a menor ideia disso.
Por esse motivo, Edward Said insiste em seus ensaios na necessidade de que os palestinos levem seu caso ao público americano e não somente, como ele diz, implorem ao presidente americano que lhes “dê” um país. A opinião pública americana tem peso, e Said se desesperava com o antiamericanismo desinformado dos intelectuais e estudantes árabes: “Não é aceitável comparecer a manifestações no Cairo ou em Beirute e denunciar o imperialismo norte-americano (ou o colonialismo sionista, dá no mesmo), sem disposição para compreender que essas sociedades complexas nem sempre estão verdadeiramente representadas nas políticas cruéis ou estúpidas de seus governos.” Mas, como norte-americano, ele se frustrava acima de tudo com a miopia política de seu próprio país: só os EUA podem romper o impasse sanguinário no Oriente Médio, mas “o que os Estados Unidos se recusam a enxergar claramente, dificilmente podem ter esperança de remediar”.
Continua incerto se os Estados Unidos acordarão para suas responsabilidades e oportunidades. Sem dúvida não o farão se não estimularmos um debate sobre Israel e os palestinos, que muitas pessoas preferem evitar, mesmo ao custo de isolar os Estados Unidos – com Israel – do resto do mundo. Para ser eficaz, esse debate precisa ocorrer nos Estados Unidos mesmo, e deve ser conduzido por americanos. Por isso Edward Said era tão singularmente importante. Durante três décadas, virtualmente sozinho, ele abriu caminho para um debate sobre Israel, a Palestina e os palestinos nos Estados Unidos. Ao fazer isso, prestou um serviço público inestimável, correndo risco pessoal considerável. Sua morte abriu um vácuo voraz na vida pública dos americanos. Ele é insubstituível.
O recente reconhecimento das reivindicações palestinas e o crescente descrédito do projeto sionista (inclusive entre muitos israelenses) podem dar a impressão de que está mais difícil do que nunca imaginar judeus e árabes vivendo harmoniosamente num único país. E, assim como uma minoria de palestinos talvez guarde para sempre ressentimento em relação a seus vizinhos judeus, existe o risco de que alguns israelenses jamais perdoem os palestinos pelo que fizeram a eles. Mas, como Said compreendeu, o sentimento de abandono dos palestinos e a insistência dos israelenses na retidão moral de seu caso eram empecilhos para uma solução de seu dilema comum. Nenhum lado poderia, nessas condições, “enxergar” o outro. Como George Orwell observou em Notes on Nationalism (Notas sobre o Nacionalismo): “Se alguém guarda em qualquer canto da mente crenças ou ódios nacionalistas, certos fatos, embora sejam em certo sentido verdadeiros, são inadmissíveis.”
Hoje, apesar de tudo, há uma noção melhor por parte de pessoas dos dois lados a respeito de onde – literalmente – o outro vem. Isso, creio, deriva de uma consciência crescente de que os judeus e árabes ocupam o mesmo espaço, e continuarão a fazê-lo por um bom tempo. Seus destinos estão inapelavelmente emaranhados. Com ou sem cerca, o território hoje governado por Israel só pode ser “limpo” de seus residentes árabes (ou judeus) por um ato de força que a comunidade internacional não pode aceitar. Como Said nota, a “Palestina histórica é hoje uma causa perdida – e isso também vale, pelas mesmas razões, para a Israel histórica”. De um jeito ou de outro, uma entidade institucional única, capaz de conciliar e respeitar as duas comunidades, terá de emergir, embora quando e de que forma ainda pareça obscuro.
O impedimento real para o novo pensamento sobre o Oriente Médio, na visão de Edward Said, não foi Arafat, Sharon ou mesmo os homens-bomba suicidas ou os ultraortodoxos assentamentos. Foram os Estados Unidos. Esse foi o único lugar onde a propaganda oficial israelense foi bem-sucedida além da conta, e onde a propaganda palestina fracassou completamente. Os judeus americanos (assim como os políticos árabes) vivem num “extraordinário autoisolamento de fantasia e mito”. Muitos israelenses têm a consciência terrível do que a ocupação da Cisjordânia e Gaza causou na sua própria sociedade. Mas a maioria dos americanos, inclusive praticamente todos os políticos, não tem a menor ideia disso.
Por esse motivo, Edward Said insiste em seus ensaios na necessidade de que os palestinos levem seu caso ao público americano e não somente, como ele diz, implorem ao presidente americano que lhes “dê” um país. A opinião pública americana tem peso, e Said se desesperava com o antiamericanismo desinformado dos intelectuais e estudantes árabes: “Não é aceitável comparecer a manifestações no Cairo ou em Beirute e denunciar o imperialismo norte-americano (ou o colonialismo sionista, dá no mesmo), sem disposição para compreender que essas sociedades complexas nem sempre estão verdadeiramente representadas nas políticas cruéis ou estúpidas de seus governos.” Mas, como norte-americano, ele se frustrava acima de tudo com a miopia política de seu próprio país: só os EUA podem romper o impasse sanguinário no Oriente Médio, mas “o que os Estados Unidos se recusam a enxergar claramente, dificilmente podem ter esperança de remediar”.
Continua incerto se os Estados Unidos acordarão para suas responsabilidades e oportunidades. Sem dúvida não o farão se não estimularmos um debate sobre Israel e os palestinos, que muitas pessoas preferem evitar, mesmo ao custo de isolar os Estados Unidos – com Israel – do resto do mundo. Para ser eficaz, esse debate precisa ocorrer nos Estados Unidos mesmo, e deve ser conduzido por americanos. Por isso Edward Said era tão singularmente importante. Durante três décadas, virtualmente sozinho, ele abriu caminho para um debate sobre Israel, a Palestina e os palestinos nos Estados Unidos. Ao fazer isso, prestou um serviço público inestimável, correndo risco pessoal considerável. Sua morte abriu um vácuo voraz na vida pública dos americanos. Ele é insubstituível.
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