Fernanda Mena
Folha de S.Paulo
"Trabalhar e morrer." A frase fatalista, vista em cartazes nas manifestações que levaram milhões às ruas da França contra a controversa reforma da Previdência de Emmanuel Macron, exagera um sentimento comum entre os franceses, que pode, segundo analistas, jogar o país no colo da ultradireita.
Ao elevar a idade mínima para a aposentadoria de 62 para 64 anos, a reforma imposta pelo governo mexe em um sistema de segurança social que é motivo de orgulho nacional e reduz o horizonte dos franceses de usufruir do benefício com qualidade em uma terceira fase da vida.
Manifestantes segura um recorte com a figura de Emmanuel Macron na praça da Concórdia, em Paris - Gonzalo Fuentes - 17.mar.2023/Reuters |
"A proteção social francesa é relativamente generosa na comparação internacional, assim como o nível das pensões", explica Anne-Marie Guillemard, especialista em trabalho e previdência da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), em Paris, e professora emérita de sociologia da Universidade de Paris Cité. "E os franceses são muito apegados a esse sistema, que permite aos aposentados manter um nível de vida similar ao de quando estavam ativos."
A França sustenta o maior gasto público do planeta, de cerca de 55% de seu Produto Interno Bruno (PIB), e tem a terceira maior despesa global com aposentadorias (14,7% do PIB). O imaginário da "melhor idade" na vida pós-trabalho, no entanto, deriva em boa parte de um outro número: 60. Foi essa a idade mínima para o benefício previdenciário estabelecida pela reforma de 1982, do então presidente François Mitterrand, do Partido Socialista. Até então, os franceses só podiam se aposentar aos 65 anos.
Essa mudança radical concedeu aos franceses cinco anos a mais de benefício e um novo panorama de aposentadoria, impulsionado pelos discursos de Mitterrand sobre um tempo em que os trabalhadores poderiam "enfim, viver" e finalmente "considerar as pessoas que amam e conhecer a França e o mundo".
Oito anos depois, diante de um relatório técnico sobre dificuldades que rondavam o sistema de pensões, impactado pelas mudanças demográficas e pelo aumento do desemprego, a medida começou seu longo caminho de reversão.
"Estamos onde estamos hoje porque cometemos erros que outros países não cometeram", disse Éric Ciotti, presidente do Republicanos, partido que apoiou Macron na sua jornada pela aprovação do texto.
Diante da falta de apoio à reforma na Assembleia, na última quinta (16), a primeira-ministra Elisabeth Borne anunciou, sob vaias e protestos de deputados, que o governo utilizaria um dispositivo constitucional para prescindir da votação parlamentar e aprovar a medida impopular.
Ao evocar o artigo 49.3, apelidado de "número maldito" pelos franceses, o governo atropelou os deputados e, junto com eles, o próprio eleitorado, majoritariamente contrário tanto à reforma quanto ao uso do dispositivo que forçou sua aprovação.
"O ressentimento social criado com essa reforma é muito forte", explica a socióloga Guillemard à Folha. "É uma reforma injusta porque utiliza parâmetros de idade, e não de tempo de contribuição, o que faz com que os grandes perdedores das mudanças previstas sejam as classes mais modestas."
Para ela, ao prejudicar os trabalhadores mais pobres, "sem demandar nada aos aposentados ou aos trabalhadores melhor qualificados, a reforma chocou as pessoas, levando até mesmo aposentados e jovens para as ruas, que agora acham que vão perder a vida trabalhando sem ganhar nada no final".
Esse ressentimento não só é uma pólvora num cenário social já explosivo como pode ter consequências políticas perigosas para a França, afirma o cientista político Bruno Palier, diretor de pesquisas do Instituto de Estudos Políticos de Paris (SciencePo). "Muitas pessoas vão se vingar no voto", diz.
Segundo Palier, ao afetar de maneira desproporcional, e sem compensação, as classes médias pouco qualificadas, que já se sentem os grandes perdedores das mais recentes mudanças econômicas globais, a reforma age diretamente no principal reservatório de votos dos partidos populistas da ultradireita, como o Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen —derrotada por Macron no segundo turno da última eleição.
"O governo tem também usado argumentos falaciosos para justificar a reforma ou suas consequências, o que alimenta a retórica antielite e antissistema dos populistas de direita, que se baseiam na ideia de que 'eles mentem para nós'."
Soma-se a isso o fato de o governo ter aprovado a medida sem legitimidade democrática e a despeito das mobilizações, argumenta Palier, o que alimenta o sentimento de que esses trabalhadores não são ouvidos pelas autoridades que estão no poder e ecoa discursos típicos de partidos como o de Le Pen.
"Sabemos que Marine Le Pen obteve, nas eleições presidenciais de 2022, 57% dos votos dos assalariados e 67% dos votos dos trabalhadores braçais. E sabemos que 33% dessas categorias se abstiveram de votar. E esse estoque de votos pode ficar disponível e se engajar nas próximas eleições num contexto de maior ressentimento social", explica.
Para se desviar desse ressentimento, diz o cientista político, a esquerda francesa teria de superar dificuldades, entre elas sua própria divisão interna. "Foi o que fizeram Joe Biden e Lula ao entenderem que precisavam falar diretamente com os trabalhadores."
A França sustenta o maior gasto público do planeta, de cerca de 55% de seu Produto Interno Bruno (PIB), e tem a terceira maior despesa global com aposentadorias (14,7% do PIB). O imaginário da "melhor idade" na vida pós-trabalho, no entanto, deriva em boa parte de um outro número: 60. Foi essa a idade mínima para o benefício previdenciário estabelecida pela reforma de 1982, do então presidente François Mitterrand, do Partido Socialista. Até então, os franceses só podiam se aposentar aos 65 anos.
Essa mudança radical concedeu aos franceses cinco anos a mais de benefício e um novo panorama de aposentadoria, impulsionado pelos discursos de Mitterrand sobre um tempo em que os trabalhadores poderiam "enfim, viver" e finalmente "considerar as pessoas que amam e conhecer a França e o mundo".
Oito anos depois, diante de um relatório técnico sobre dificuldades que rondavam o sistema de pensões, impactado pelas mudanças demográficas e pelo aumento do desemprego, a medida começou seu longo caminho de reversão.
"Estamos onde estamos hoje porque cometemos erros que outros países não cometeram", disse Éric Ciotti, presidente do Republicanos, partido que apoiou Macron na sua jornada pela aprovação do texto.
Diante da falta de apoio à reforma na Assembleia, na última quinta (16), a primeira-ministra Elisabeth Borne anunciou, sob vaias e protestos de deputados, que o governo utilizaria um dispositivo constitucional para prescindir da votação parlamentar e aprovar a medida impopular.
Ao evocar o artigo 49.3, apelidado de "número maldito" pelos franceses, o governo atropelou os deputados e, junto com eles, o próprio eleitorado, majoritariamente contrário tanto à reforma quanto ao uso do dispositivo que forçou sua aprovação.
"O ressentimento social criado com essa reforma é muito forte", explica a socióloga Guillemard à Folha. "É uma reforma injusta porque utiliza parâmetros de idade, e não de tempo de contribuição, o que faz com que os grandes perdedores das mudanças previstas sejam as classes mais modestas."
Para ela, ao prejudicar os trabalhadores mais pobres, "sem demandar nada aos aposentados ou aos trabalhadores melhor qualificados, a reforma chocou as pessoas, levando até mesmo aposentados e jovens para as ruas, que agora acham que vão perder a vida trabalhando sem ganhar nada no final".
Esse ressentimento não só é uma pólvora num cenário social já explosivo como pode ter consequências políticas perigosas para a França, afirma o cientista político Bruno Palier, diretor de pesquisas do Instituto de Estudos Políticos de Paris (SciencePo). "Muitas pessoas vão se vingar no voto", diz.
Segundo Palier, ao afetar de maneira desproporcional, e sem compensação, as classes médias pouco qualificadas, que já se sentem os grandes perdedores das mais recentes mudanças econômicas globais, a reforma age diretamente no principal reservatório de votos dos partidos populistas da ultradireita, como o Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen —derrotada por Macron no segundo turno da última eleição.
"O governo tem também usado argumentos falaciosos para justificar a reforma ou suas consequências, o que alimenta a retórica antielite e antissistema dos populistas de direita, que se baseiam na ideia de que 'eles mentem para nós'."
Soma-se a isso o fato de o governo ter aprovado a medida sem legitimidade democrática e a despeito das mobilizações, argumenta Palier, o que alimenta o sentimento de que esses trabalhadores não são ouvidos pelas autoridades que estão no poder e ecoa discursos típicos de partidos como o de Le Pen.
"Sabemos que Marine Le Pen obteve, nas eleições presidenciais de 2022, 57% dos votos dos assalariados e 67% dos votos dos trabalhadores braçais. E sabemos que 33% dessas categorias se abstiveram de votar. E esse estoque de votos pode ficar disponível e se engajar nas próximas eleições num contexto de maior ressentimento social", explica.
Para se desviar desse ressentimento, diz o cientista político, a esquerda francesa teria de superar dificuldades, entre elas sua própria divisão interna. "Foi o que fizeram Joe Biden e Lula ao entenderem que precisavam falar diretamente com os trabalhadores."
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