12 de novembro de 2024

As rãs

"Quando ouvimos a notícia, a primeira sensação foi de surpresa, depois perplexidade, e então tristeza."

Mo Yan



Para ser franco, devo confessar que, embora jamais tenha me pronunciado sobre o assunto, no fundo me oponho ao casamento deles. Meu pai, meus irmãos e cunhadas compartilham a mesma opinião. Achamos que Hao Mão Grande não tem nada a ver com a minha tia. Desde muito pequenos esperávamos que ela um dia se casasse com alguém. O relacionamento com Wang Xiaoti foi motivo de orgulho para nós e, no entanto, terminou da maneira mais triste. Depois, teve o Yang Lin, que não correspondia ao nosso ideal tanto quanto o anterior, mas, como se tratava de um alto funcionário, era passável. Ela até podia se casar com Qin He, seu admirador obcecado, mesmo ele, comparado a Hao Mão Grande… Já estávamos preparados para a possibilidade de ela ficar para sempre solteira, chegamos a conversar sobre quem cuidaria dela no fim da vida. De repente, ela se casou com aquele homem. Naquela altura, Leoazinha e eu ainda morávamos em Pequim. Quando ouvimos a notícia, a primeira sensação foi de surpresa, depois perplexidade, e então tristeza.

O episódio “Filhos do luar” era sobre o artesão Hao Mão Grande, mas a verdadeira protagonista foi minha tia. Ela ocupou o centro das imagens em todos os instantes, do momento em que os jornalistas foram recebidos no pátio até a excursão pelo ateliê e pelo depósito dos bonecos de barro. Falava, gesticulava, fazia caras e bocas, enquanto Mão Grande permanecia sentado com grande serenidade atrás da bancada de trabalho, com um olhar vago e o rosto sem expressão, parecia um cavalo velho e sonolento. Será que, ao chegar ao ápice de sua criação artística, todos os mestres oleiros se tornam cavalos velhos e sonolentos? Ouvi tanto o nome desse grande mestre, mas, quando paro para fazer as contas, vejo que nos encontramos poucas vezes. Desde que cruzei com ele no escuro, na noite do banquete para festejar a entrada do meu sobrinho na Aeronáutica, esta era a primeira vez que o via, depois de tantos anos, ainda assim pela tela da TV. O cabelo e a barba estavam inteiramente brancos, mas seu rosto continuava corado e brilhante, mantinha uma postura muito serena, assumia o ar distraído de uma divindade taoista. Foi nesse programa que ficamos sabendo, de modo inesperado, o motivo do casamento de minha tia com esse homem.

Ela acende um cigarro, traga profundamente e fala num tom quase desolado: “Casamento é uma coisa predeterminada. Digo isso a vocês, jovens, não com intenção de pregar idealismo — já fui uma completa materialista —, mas, quando o assunto é casamento, não tem como não acreditar no destino. Perguntem a ele”, aponta para Hao Mão Grande, imóvel como uma estátua, “se alguma vez sonhou se casar comigo”.

“Em 1997, quando completei sessenta anos”, continuou minha tia, “meus superiores falaram para eu me aposentar. Claro que eu não queria fazer isso, mas já não tinha como argumentar, visto que deveria ter me aposentado cinco anos antes. O diretor do Posto de Saúde, vocês todos conhecem, era o filho do Huang Pele, da aldeia Hexi, o Huang Jun, aquele ingrato, que tinha o apelido de Pepino. Também fui eu que puxei esse bastardo do ventre de sua mãe. Dizem que fez medicina, mas não era capaz nem de achar um coração ou um pulmão com o estetoscópio, nem de achar uma veia para aplicar uma injeção, e muito menos de tomar o pulso, como ele podia ser diretor de um posto de saúde? Para enfiá-lo na escola de saúde, eu falei muito bem dele para o secretário Shen da Saúde Pública, mas depois, com o poder na mão, ele não reconhecia mais ninguém. Esse homem não sabia nada além de suas duas especialidades: primeira, puxar saco para obter favores e, segunda, deflorar as moças.”


Nesse ponto, ela batia no peito com a mão, sapateava no chão. “Boba que eu era, coloquei a raposa no galinheiro, ajudei o malfeitor em seu malfeito! Ele abusou de quase todas as moças do hospital. Wang Xiaomei, da aldeia Wang, tinha dezessete anos, tranças grossas, rosto oval e pele de porcelana. Quando piscava, seus longos cílios se moviam como asas de borboleta, os olhos grandes pareciam saber falar. Todo mundo que a conhecia dizia que, se fosse descoberta por Zhang Yimou, aquela moça seria muito mais famosa que Gong Li ou Zhang Ziyi. Mas, em vez do renomado diretor de cinema, quem a descobriu primeiro foi Pepino, aquele pervertido. Foi até a aldeia Wang e, com uma lábia capaz de fazer morto levantar do túmulo, ele conseguiu convencer os pais da moça a deixá-la estudar ginecologia comigo no posto de saúde. Isso foi o que ele prometeu, mas Wang Xiaomei não apareceu um dia sequer na minha seção. O safado do Pepino dominou-a completamente. Mantinha a moça sempre a seu lado, não bastava fazer aquilo à noite, também faziam em plena luz do dia, muitos já tinham visto. Quando se fartava daquilo, ele ia para a cidade gastar o dinheiro público em banquetes para quem estivesse no poder, mexer os pauzinhos para ver se o transferiam para o governo distrital. Já viram a cara daquele sem-vergonha? Meio metro de cara de asno, lábios roxos, sangue brotando entre os dentes e um bafo podre, mas tão podre que quando abria a boca era capaz de fazer cavalo desmaiar. E uma pessoa assim ainda queria virar secretário adjunto distrital da Saúde Pública? Ele levava Wang Xiaomei de acompanhante, chegava a dar a moça de presente para os convidados. Um pecado, um pecado mesmo!

“Um dia, o sujeito de repente me chamou para a sala dele”, continuou minha tia, “a mulherada do hospital tinha medo de entrar na sala dele, mas eu, naturalmente, não tinha medo nenhum. Levei um bisturi no bolso, pronta para castrar aquele filho da puta. Serviu chá para mim, todo sorrisos, me cobriu de elogios. ‘Diretor Huang’, interrompi, ‘se tiver algo a dizer, diga logo, não precisa fazer rodeios.’ Ele deu um sorriso amarelo e disse: ‘Tia!’, agora se atrevia a me chamar de tia! ‘Vim ao mundo por suas mãos, tia, a senhora me viu crescer. Sou praticamente carne da sua carne, não sou?...’ ‘Quem sou eu’, respondi, ‘o senhor é um ilustre diretor de hospital e eu, uma simples ginecologista, eu não suportaria a honra de tê-lo como filho, não é? Pode ir direto ao assunto.’ Ele deu outro sorriso amarelo, e sem vergonha nenhuma, continuou: ‘Cometi um erro comum dos quadros dirigentes — não me contive e engravidei Wang Xiaomei’. ‘Meus parabéns! Wang Xiaomei está com seu nobre descendente, a diretoria do nosso hospital terá um sucessor!’ ‘Tia, pare de brincadeira, há dias não consigo comer nem dormir de tanta preocupação.’ — Até aquela besta tinha momentos em que não conseguia comer nem dormir! — ‘Ela está me pressionando para que eu me divorcie, senão vai me denunciar ao Comitê Disciplinar Distrital.’ ‘Mas para quê?’, eu disse, ‘não é comum vocês, altos funcionários, terem amante? Compre uma casa para ela, pague uma pensão para sustentá-la e pronto!’ ‘Tia, isso é hora de rir de mim? Ter uma ou mais amantes não é algo que se admita à luz do dia. Ainda por cima, onde vou arrumar dinheiro para comprar uma casa para ela?’ ‘Então peça o divórcio.’ Ele fechou aquela cara de jumento: ‘Tia, a senhora sabe muito bem, meu sogro e meus cunhados carniceiros são todos uns facínoras, quando ficarem sabendo, vão acabar comigo’. ‘Mas o senhor é diretor de hospital, alto funcionário!’ ‘Pare, tia! Sou apenas o humilde chefe de um posto de saúde de aldeia, para a senhora isso não é nada. Chega de me ironizar, me ajude a achar uma saída, por favor.’ ‘Que saída eu tenho?’ ‘Wang Xiaomei idolatra a senhora’, continuou, ‘ela me disse isso inúmeras vezes. Ela pode não dar ouvidos a ninguém, mas a senhora ela escuta.’ ‘O que quer que eu faça?’ ‘Podia conversar com ela para convencê-la a tirar o bebê?’ ‘Pepino’, eu disse com ódio, ‘jamais voltarei a fazer essas coisas contra o céu e a razão! Ao longo da minha vida, abortei com minhas mãos nada menos de dois mil bebês! Não quero mais fazer isso. Pode contar que vai ser pai de novo! E digo mais: Wang Xiaomei é uma moça bonita, com certeza vai ter um bebê lindo, isso não é maravilhoso? Vá dizer a ela que, quando chegar a hora, eu faço o parto!’

“Deixei ele falando sozinho”, disse minha tia, “saí feliz, mas, assim que cheguei a minha sala e tomei um copo d’água, veio uma tristeza. O canalha do Pepino bem que merecia ficar sem descendentes e Wang Xiaomei, com aquele corpo, grávida de um canalha desses, é uma pena. Se tem uma coisa que aprendi com todos os partos que eu fiz”, minha tia continuou, “é o seguinte: a índole de uma pessoa depende menos da educação e mais da genética. Podem criticar minha teoria de classes por consanguinidade, mas foi o que a prática me ensinou. O descendente de uma pessoa má como Pepino pode até crescer num templo, mas vai ser um monge tarado. Por mais que eu sinta pena de Wang Xiaomei, não vou tentar convencê-la, não posso deixar Pepino se safar tão fácil, mesmo que acrescente a este mundo um monge tarado. No fim, ainda acabei fazendo o aborto de Wang Xiaomei.

“Foi Wang Xiaomei que me pediu”, explicou a tia. “Ela se ajoelhou na minha frente, abraçou minhas pernas, sujou minha calça com lágrimas e meleca de nariz. Chorava muito. ‘Tia, por favor, tia. Fui eu que caí nessa, ele me enganou. Agora, mesmo que me fizesse uma bela proposta de casamento, não me casaria com aquele monstro. Tia, por favor, faça o aborto para mim, não quero esse maldito bebê...’ 

“E foi por isso”, minha tia acendeu outro cigarro e deu uma tragada violenta, uma fumaça espessa cobria seu rosto, “que eu fiz. Wang Xiaomei era uma rosa prestes a desabrochar e ele a deflorou, jogou-a na desonra.” Ergueu o braço para enxugar as lágrimas. “Jurei que nunca mais faria uma cirurgia dessas. Não aguento mais. A mulher pode estar com um macaco peludo na barriga que não faço mais nada. Quando ouvi o barulho da bomba a vácuo, senti uma mão gigante agarrar meu coração e apertar cada vez mais forte. Doía tanto que fiquei coberta de suor, vi estrelas. Quando a cirurgia terminou, caí no chão esgotada...

“Pois é, na minha idade a gente muitas vezes se perde na própria fala. Estou falando há tanto tempo e ainda não contei por que me casei com Hao Mão Grande. Anunciaram minha aposentadoria no dia 15 do sétimo mês do calendário lunar. O canalha do Pepino ainda queria me segurar mais, queria que eu me aposentasse sem deixar as funções. Disse que me daria oitocentos iuanes por mês. Bah! Cuspi na cara dele. ‘Seu pilantra, já me esfalfei de trabalhar, agora chega, nesses anos todos, de cada dez iuanes do faturamento deste posto de saúde, ganhei oito. Mulheres e crianças de todas as aldeias da região vinham fazer consulta neste posto por minha causa. Se eu quisesse ficar rica, poderia ganhar oitocentos ou mil por dia! Agora você quer me comprar com oitocentos por mês? Até um trabalhador braçal cobra mais do que isso! Trabalhei duro a vida inteira, não quero mais, quero descansar, quero passar a minha velhice no Nordeste de Gaomi.’ Foi assim que ofendi o canalha de Pepino, nos últimos anos, ele procurou me ferrar de todas as maneiras. Quer ferrar comigo? ‘Já passei por muita coisa nessa vida! Não tremi diante dos malditos japoneses quando moça, vou lá ter medo agora de você, seu moleque, depois dos setenta anos?’… Ah sim, deixe-me voltar ao tema principal.

“Se quiserem saber por que me casei com o Velho Hao, preciso começar pela história com a rã. Na noite em que anunciaram minha aposentadoria, alguns velhos colegas de trabalho me convidaram para jantar num restaurante. Fiquei bêbada naquela noite — na verdade não bebi muito, o problema foi a qualidade da bebida. O dono daquele restaurante, Xie Passarinho, filho do Xie Cem Patas, um daqueles bebês-batata-doce nascidos em 1963, ofereceu uma garrafa da mais fina aguardente de cereais para me homenagear. Mas aquela droga de bebida era falsificada. Bastou meio cálice para eu ficar tonta, tudo girava. Meus companheiros de mesa foram caindo um para cada lado, o próprio Xie Passarinho ficou de boca espumando e olhos revirados.”


Minha tia voltou trocando as pernas, queria chegar ao dormitório do posto de saúde, mas, sem saber como, acabou indo parar num brejo. Era um atalho sinuoso por entre juncos da altura de uma pessoa. Poças d’água brilhavam ao luar, como se fossem de vidro. Sapos e rãs coaxavam, quando uns paravam, outros começavam, se alternavam como numa competição de canto. A certa altura, soaram coaxos por toda parte, coac-coac-coac, o barulho cercava, concentrava-se, subia até o céu. De repente, tudo parou e foi silêncio por toda parte, só se escutava o estrilar de insetos. Minha tia disse que, em décadas de carreira médica, perdeu a conta de quantas vezes andou à noite sem nunca sentir medo. Naquela noite, porém, ficou aterrorizada. Normalmente, o som de uma rã é descrito como o de um tambor, mas naquela noite, as rãs choravam, parecia o choro reunido de milhares de recém-nascidos. Ela adorava o choro dos recém-nascidos, para uma obstetra, o choro de um bebê é a música mais linda do mundo! No entanto, aqueles coaxos de rã guardavam um ressentimento, uma decepção, como uma denúncia de inúmeras almas de bebês vitimados. Num instante o álcool que ela havia ingerido virou suor frio na pele. “Não pensem vocês que eu estava alucinando, com a mente embriagada. O álcool saiu com o suor, ficou só a dor de cabeça, mas a mente estava completamente lúcida. Percorria o caminho lamacento tentando fugir daquela emboscada de coaxos. Mas fugir para onde? Por mais rápido que corresse, buá-buá-buá, aqueles choros dolentes e amofinados atacavam de todos os lados.” Ela queria correr, mas não conseguia mexer as pernas. A lama, como um chiclete cuspido, fazia a sola de seu sapato grudar no chão. Precisava de toda sua força para levantar um pé, fios prateados prendiam o sapato ao chão. Ela cortava esses fios, mas outros apareciam a cada passo. Abandonou o sapato e seguiu descalça pelo caminho enlameado. Mas os pés descalços sentiam mais ainda a aderência da lama, aqueles fios prateados pareciam ter ventosas que agarravam seu pé, querendo separar a pele da carne. Minha tia contou que se ajoelhou no chão, como se fosse uma rã gigante, e rastejou para a frente enquanto a lama do caminho grudava nos joelhos, nas pernas, nas palmas. Ela rastejava desesperada, a todo custo, arrastava-se para a frente. Nesse instante, disse minha tia, das profundezas do denso juncal, por entre as folhas cintilantes das alfaces￾d’água, pularam inúmeras rãs. Umas de pele verde, outras douradas, umas grandes como um ferro de passar, outras pequenas como um caroço de tâmara, umas de olhos dourados, outras de olhos avermelhados. Vieram como ondas, sitiaram minha tia por todos os lados, coaxando raivosas. Minha tia sentiu as bocas duras bicando sua pele, as patas arranhando seu corpo como se tivessem garras afiadas. Pularam sobre suas costas, no pescoço, na cabeça, e pareciam criar um peso tão grande que a fez desmoronar no chão. Minha tia explicou que o pavor maior não vinha dessas bicadas ou arranhões, mas sim do asco insuportável causado pelo contato daquelas barrigas pegajosas e frias com a sua pele. “Não paravam de mijar em mim, ou quem sabe era o sêmen que eliminavam.” Ela de repente se lembrou de uma lenda que minha avó contava sobre a peça que uma rã pregou num ser humano: certa noite, uma moça foi sentar-se na beira do rio para se refrescar e adormeceu sem perceber. Ela sonhou que fazia sexo com um rapaz vestido de verde-esmeralda. Acordou grávida e deu à luz um monte de rãzinhas. Minha tia diz que, quando se lembrou disso, ela se levantou num impulso, foi o terror que lhe deu essa força extraordinária. Ela viu os bichos que estavam parados em suas costas caírem no chão um após outro como pedaços de barro. Mas ainda havia muitas rãs agarradas na sua roupa e nos seus cabelos, duas até mordiam os lóbulos das orelhas como um par de brincos horrendos. Saiu correndo, sem saber por que a aderência do chão desaparecera de repente. Enquanto corria, se sacudia e, com as duas mãos, tentava arrancar as rãs de seu corpo. Cada vez que agarrava uma rã, gritava e a jogava para longe com força. Quando tentou tirar as duas rãs penduradas nos lóbulos, quase arrancou as orelhas junto. Os bichos chupavam seus lóbulos com a firmeza de dois bebês famintos no peito da mãe.

Corria, gritava, mas não conseguia se livrar das rãs que a perseguiam. Em algum momento da corrida, olhou para trás e viu uma cena assustadora: milhares de rãs tinham formado um exército infinito, coaxavam, pulavam, trombavam, empurravam-se numa turva enxurrada que rolava adiante velozmente. Além disso, mais rãs surgiam à beira do caminho, umas formavam um batalhão para impedir a saída da tia, outras pulavam do capim à beira da trilha em ataques surpresa contra ela. A saia folgada de seda preta que ela vestia foi rasgada em tiras pelas rãs na emboscada. Ela via as rãs engolirem os pedaços da saia, engasgarem, se debaterem com as patas dianteiras e rolarem pelo chão mostrando a barriga branca.

Quando chegou à beira do rio e viu a ponte de pedra prateada sob o luar, as rãs já tinham rasgado toda a roupa que trazia no corpo. Ela, quase nua, chegou à pontezinha e encontrou com Hao Mão Grande.

“Naquele momento, não importava mais a vergonha, nem percebi que eu estava praticamente nua”, continuou a tia, “vi uma pessoa sentada no meio da ponte, com uma capa de palha e um chapéu de bambu na cabeça, segurava alguma coisa com um brilho prateado — só mais tarde fiquei sabendo que era um pedaço de barro. Para fazer um boneco de luar, é preciso usar barro colhido ao luar. Naquele instante, nem reconheci quem era, não importava quem era, desde que fosse um ser humano, seria meu salvador.” Ela se lançou ao colo daquela pessoa, tentando enfiar-se sob sua capa de palha. Sentiu no peito o calor dele, enquanto nas costas ainda persistia o frio úmido e asqueroso das rãs. Mal gritou “socorro” e desmaiou.

A longa narrativa criou em nós uma empatia, a imagem da horda de rãs gravada em nossa mente produziu um arrepio na espinha. A câmera focou em Hao Mão Grande, ele continuava sentado ali como estátua, depois mostrou vários bonecos em close, a vista da pontezinha sobre o rio, e voltou a focar o rosto e a boca da tia. Ela continuou: 

“Acordei deitada no kang de Hao Mão Grande, com uma roupa de homem no corpo. Ele me trouxe uma tigela de sopa de feijão-verde. O aroma restaurou minha lucidez. Quando tomei aquela sopa quente, o corpo todo ficou suado, senti dor ou ardência em vários lugares, mas ia desaparecendo a sensação fria, pegajosa e nojenta que me fazia gritar descontroladamente. Fiquei com herpes no corpo inteiro, aquilo ardia, coçava, doía. Logo veio a febre e tive delírios. Só consegui sobreviver graças à sopa de Hao Mão Grande. Minha pele descamou, doíam até os ossos. Já tinha ouvido histórias de descamar a pele, trocar de ossos, e sabia que estava passando por um processo desses, como um renascimento. Depois que me curei, disse a Hao Mão Grande: ‘Vamos nos casar?’.

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